Diamantino, Ronaldo, o pobre burro Balthazar de Bresson, a partir de O Idiota, de Dostoiévski, ou um novo Dom Sebastião. Suposições à parte, deixemo-nos com Carloto Cotta para o derradeiro ícone português. Resposta de Gabriel Abrantes sobre o ponto de partida para esta sua primeira longa-metragem – de novo ao lado de Daniel Schmidt, com quem realizou no passado A History of Mutual Respect (2010) e Palácios de Pena (2011) – que, depois do Grande Prémio da Semana da Crítica, em Cannes, chega dia 4 de abril às salas. Comédia romântica, conto de fadas, policial, ficção científica, ou tudo isto de uma vez. E faltará ainda contar a perseguição a um porco no jardim de um palacete, um Lamborghini amarelo, experiências genéticas numa estufa ou um bando de «cachorrinhos felpudos» gigantes num campo de futebol em algodão doce. A história? futebol, mediatismo, crises humanitárias, nacionalismo, neofascismo e trumpismo, offshores, clonagem, tragédia familiar, questões de género ou a aceitação do amor da forma que ele tiver que vir. Mas isso é uma história – a de Diamantino Matamouros. Aqui, num fim de tarde na Zé dos Bois, em Lisboa, detemo-nos na de Carloto Cotta, que neste regresso ao trabalho com Gabriel Abrantes o construiu seguindo a forma com que trabalham sempre: «na liberdade, quase na anarquia formal». O miúdo do punk rock que um dia, contrariado, descobriu o teatro. Sem Romeu nem Julieta.
Fotografia de Bruno Gonçalves
A propósito da estreia do Diamantino em França, o Le Monde dedicou-te um artigo com o título «o camaleão do cinema português», a Inrockuptibles apresentava-te no título de uma entrevista como «o ator fetiche da nova vaga do cinema português». Depois da projeção que já te tinha dado o Tabu [de Miguel Gomes, 2012], como é que recebeste tudo isto que se escreveu sobre ti?
É um bocado relativo porque é uma coisa que acontece naturalmente e que não sinto que… como explicar: como são jornais franceses, não tenho grandes reações das pessoas cá em Portugal a isso. São sobretudo os meus amigos mais ligados ao cinema que me dizem «pá, fixe, boa entrevista». As pessoas no geral não têm muito acesso ao Le Monde ou aos Inrockuptibles. Fico feliz, fico contente por reconhecerem o meu trabalho e… pronto, compararem-me a um réptil é sempre uma coisa com uma certa graça. Quando me dizem isso, não sei [sorri], dá-me vontade de comer moscas.
Era aí que queria chegar. Sentes que há um reconhecimento maior do teu trabalho em França, por exemplo, do que cá? Ou que a forma como se olha do exterior para o cinema português é diferente daquela como o olhamos daqui?
Acho que sim. E sem dúvida que acho que existe um olhar diferente. Talvez pela distância, por ser um olhar exterior.
Até aquela ideia de uma «nova vaga» do cinema português…
… exatamente. É engraçado, nós não temos muito essa noção. Eu próprio – estava em Cannes quando me fizeram essas entrevistas e realmente os jornalistas referiam-se ao nosso cinema quase como que a olharem para nós como um fenómeno.
O cinema português que é muito querido no circuito internacional.
Muito querido e muito admirado. Somos vistos quase como uma espécie de Che Guevara do cinema. É interessante porque, para nós, que estamos a fazer e a ver daqui, a coisa vai acontecendo, aos poucos…
… e é difícil.
E é difícil, e lutamos contra um preconceito que existe em relação ao cinema português. Existe quase um divórcio do público com o nosso cinema. Quase todas as pessoas têm essa coisa de dizer «cinema português, isso é uma grande seca», «se é português, não quero ver». Porque foram ver um filme ou outro de que não gostaram, porque têm uma ideia de que o cinema português é muito parado… Não é, de todo, assim. O cinema português é diversificado.
Bom, de ser «parado» o Diamantino não pode ser acusado.
Pois. Fiquei quase surpreso com aquela reação porque, de facto, estando por dentro, é muito mais difícil ter-se uma noção do todo e da forma como aquilo que fazemos transpira para o mundo. E de facto existe essa admiração. Mesmo fora dos festivais: olha, no ano passado estava em Nova Iorque a fazer um filme da Paula Gaitán [Luz nos Trópicos] e filmámos qualquer coisa num barco. Estávamos a falar no filme, que era um filme brasileiro, eu disse que era português, e um dos tipos que trabalhavam no barco, o gajo que atira a corda: «Ah, o cinema português! Gosto muito do Pedro Costa». Falou-me no No Quarto da Vanda, sabia os títulos dos filmes! Uma pessoa que não tinha nada a ver com cinema.
O Pedro Costa, uma referência enorme por toda a parte. É um ótimo exemplo para isto de que falamos.
E é um cineasta incrível. Acho que é um bocado o que o Diamantino diz: «Portugal merece uma segunda oportunidade» [risos]. O cinema português merece uma segunda oportunidade. A verdade é que uma pessoa se depara com estas situações, que num festival de cinema são normais, porque é um público cinéfilo, mas que se estendem para lá do meio dos cinéfilos e das pessoas que trabalham na indústria.
Fotografia de Bruno Gonçalves
Mas e cá, como é que sentes que olham para ti? Agora, um bocadinho como o tipo giro da novela?
Não, não. De todo. Para já porque não sou assim tão giro [risos]. Há por aí gajos muito mais giros.
Não disse que não havia.
Não tenho muito essa sensação, por acaso. Talvez porque na minha escolha de papéis também tente… Já fiz uma vez ou outra de galã, assim de gajo giro, mas normalmente até faço de pateta, de idiota, de mau…
… de homem das cavernas.
Sim, de homem das cavernas, de corcunda. Por isso não sinto muito isso, esse estigma. Graças a Deus – ao deus do audiovisual.
Interessam-te mais esses papéis?
[Pausa] Não sei. Aborrece-me ter que estar sempre a fazer a mesma coisa. Isso aborrece-me. Se sinto que estou a cair em fórmulas que já conheço, que já trabalhei. Mas não são as personagens que me aborrecem. Sou eu próprio que me aborreço.
Que papel é que nunca fizeste que te interessava realmente fazer?
Boa pergunta. Gosto muito de observar pessoas e estou sempre a ter ideias, que tento guardar. Às vezes, quando estou a compor uma personagem, lembro-me de uma pessoa que observei, de um amigo de infância, às vezes até de uma pessoa que vi num autocarro. Passados uns anos ainda tenho aquela fotografia, uma espécie de impressão da pessoa, ou uma energia, uma maneira de estar, um tom de voz, qualquer coisa. Gosto muito de imaginar que personagem é que vem a seguir. Acabar uma personagem e ter que fazer outra é uma coisa que me dá imensa pica.
Essa obsessão com ficar a observar as pessoas é uma coisa que te acompanha desde sempre? Teres-te tornado ator vem daí, de alguma forma? Li também algures que em miúdo passavas os tempos livres a ir sozinho ao cinema.
Sim, fui sempre bastante observador e tinha a mania de imitar as pessoas, mas isso é um bocado um lugar comum nos atores. A maioria são pessoas que tinham tendência para imitar os outros, para fazer piadinhas, para ser o centro das atenções, para fazer os outros rir, para entreter. A minha primeira imitação foi do espirro da minha avó. E depois imitava os vizinhos, imitava toda a gente e as pessoas riam-se muito. Há esse lado meio pateta. Tenho um lado meio pateta, que serve. Onde é que nós íamos?
Nas tuas idas ao cinema em miúdo. E em como te tornaste ator.
Passava os fins de semana com a minha avó, em Queluz. E havia lá, nos 4 Caminhos, um cinema que por acaso passava bons filmes. Tinha três salas, e não sei já quem geria aquilo, mas iam lá parar bons filmes. Filmes tipo os que passavam no King ou no Quarteto, esse tipo de cinema. Havia sempre um comercialão, tipo Titanic, mas depois tinhas sempre um filme qualquer, sei lá, do [Roberto] Benigni. Lembro-me de ter visto lá o Il Mostro e de ter ficado «uau, o que é isto?»
Vias mais esses ou vias todos?
Ia ver tudo. Ao princípio ia com a minha avó, à sessão das três.
Isso com que idade?
Com 5, 6. Mas depois, a partir de uma certa idade, comecei a poder ir sozinho. Adorava. Sair de casa e ir sozinho, com dinheiro, para o cinema, comprar uns doces. Sentia-me o maior por poder ir sozinho ao cinema. Como não tinha amigos em Queluz – não tinha mesmo, porque passava só os fins de semana lá – ia para o cinema. Gostava daquele ritual, gostava muito. Lembro-me de ter visto A Máscara, de filmes que via várias vezes: na sessão das três, na das sete… Lembro-me da primeira vez em que fui à sessão das nove, de ter chegado a casa quase à meia-noite. Senti-me um grande adulto.
Foi então uma forma de emancipação também?
Sim, talvez. Ainda hoje gosto muito de ir ao cinema sozinho.
Falavas há pouco num divórcio do público com o cinema português. Qual foi o primeiro filme português que viste? Ou do primeiro filme português que realmente te tocou?
Foi o Aniki Bobó. Não me lembro de haver assim um momento em que tenha visto um filme português e tenha ficado «uau, o cinema português…». Fui vendo, pelo meio dos outros. Sempre gostei de cinema português. Lembro-me de ver em miúdo os filmes do João César Monteiro e de gostar imenso. Porque aquilo era um universo super insólito e gostava desse tipo de coisas e porque já percebia que aquilo era… Já percebia que havia dois tipos de filmes: havia as Tartarugas Ninja e depois havia os filmes que eram… arte. E, se uma criança percebe, toda a gente percebe.
Ainda não contaste como é que te tornaste ator. Começaste a estudar teatro cedo.
Fui estudar teatro cedo, mas não queria ser ator – nem me imaginava. O que eu queria era cenografia.
Como é que alguém aos 15 anos decide que quer mesmo é ser cenógrafo?
Estava frustrado com o sistema de ensino do secundário. Estava em Artes e ia sair dali a saber fazer o quê? Pintar em acrílico? Fazer esculturas com gesso? Não via grande sentido naquilo, então, no 10.º ano, decidi mudar. Queria algo virado para as artes plásticas ou para a criação musical e percebi – foi o meu pai, que me ajudou nisso, que me disse – que na escola de teatro [Escola Profissional de Teatro de Cascais] havia um curso de cenografia. Pensei que cenografia podia ser fixe. Sempre estive ligado ao teatro, porque o meu pai fez teatro quando era mais novo e é muito amigo da malta do Teatro da Comuna e de outras pessoas do teatro, a minha avó era coralista no São Carlos. Andei sempre muito nos bastidores do teatro e da ópera, era um universo onde me sentia em casa. E como eu fazia música, tinha bandas de punk rock, e também gostava de pintar, de escrever, vi o teatro como um espaço onde todas essas coisas que gostava de fazer confluíam. E interessava-me imenso a ideia de encenar, de criar qualquer coisa.
Fotografia de Bruno Gonçalves
Ainda te interessa?
É uma das minhas ambições. Gostava de, mais tarde, se tiver oportunidade, encenar ou realizar. Acabei por nunca o fazer porque comecei a trabalhar muito como ator, quase incessantemente, e meti na cabeça que enquanto não me fartasse inteiramente disto não ia parar. Ainda não me fartei – acho que todos os dias me farto um bocadinho, mas aquele grande fartar ainda não aconteceu.
Íamos na tua ida para a escola de teatro.
A escola tinha dois cursos: cenografia e interpretação. Só que no primeiro ano dos cursos as aulas eram comuns, então tinhas aulas de tudo aquilo que um ator faz. Uma grande seca. Para mim, entrar no palco sem ter uma guitarra ou sem ser atrás de uma bateria não dava. Nem sabia onde havia de pôr as mãos. Estar num palco era estar a gritar para um microfone, não era para fazer Shakespeare. Sentia-me super ridículo em estar ali: «Ó, Julieta!» E para as audições tínhamos que decorar uma cena do Romeu e Julieta.
Ah, era mesmo o Romeu e Julieta.
Só dizia «não vou decorar». Lembro-me de me terem dado aquilo e de pensar «nem vale a pena, eu quero ser cenógrafo, não quero ser ator».
Não me deem o Romeu [risos].
Exato. «Peçam-me para desenhar um cenário, peçam-me para escrever, peçam-me para ter uma ideia para uma cena, não me peçam para ir para um palco empostar a voz e fazer macacadas.» E depois, lá fui, para a audição no TEC, entro e vejo um monte de miúdos da minha idade, todos a querem muito ser atores, todos muito expressivos – e eu: «onde é que me vim meter, eu não quero nada disto». Eu também tinha necessidade de chamar a atenção, mas não daquela maneira. E fiz a audição, mas nem percebi bem. Mandaram-me entrar: «Então, sabes o texto?»; «Sei lá o texto, eu não quero ser ator, deixem-me». Tinha na minha cabeça que ia entrar ali, que me iam pedir para fazer coisas e que ia dizer que não, mas o que aconteceu foi que quando disseram «vá, agora vais lá tu», entrei e, de repente, tinha um palco vazio, com uma cadeira, atravesso o palco e, naquele silêncio, realmente houve um momento em que aconteceu qualquer coisa. Qualquer coisa que nem sei bem explicar. Foi como se pela primeira vez tivesse sentido o bater do meu coração.
Mas disseste o texto?
Não, não. Entretanto subiu um colega mais velho, começaram a pedir-me coisas e deixei-me levar. Foi uma surpresa enorme para mim ter adorado aquilo. Mas eu era um gajo do punk, não queria admitir que tinha adorado, que tinha sentido aquela coisa toda. Mas depois, quando comecei a fazer as aulas de teatro, aí comecei mesmo a perceber que queria mesmo ser ator. Comecei a descobrir-me e percebi que tinha imensas coisas a resolver – e imenso material dentro do meu corpo, que podia usar como instrumento.
Começaste a ganhar consciência de ti próprio.
Sim. De todas as possibilidades, ser ator era a mais inesperada, mas era o maior desafio. E foi uma revolução na minha vida. De repente, tudo era novo, tudo. E tudo era material de trabalho. Percebi que aquilo era quase uma terapia – era muito revoltado, era um adolescente mesmo revoltado, descrente – mas que era muito mais do que isso. De repente, o teatro tornou-se mais interessante do que o punk rock. Uma maneira mais saudável de trabalhar as emoções. Os meus amigos eram das bandas, do surf, da rua, e sempre me dei com tipos mais velhos, era sempre aquele gajo a quem pediam «pá, imita lá não sei quem» e eu fazia palhaçadas, macacadas. Já estava a fazer teatro.
Sentiste-te um bocadinho assim, pateta, como já disseste, a fazer o Dimantino? Ele que tem uma atividade cerebral que corresponde a 10% – são 10%, não são? – da de um ser humano normal.
Pois, não sei… O Diamantino é um fenómeno. Tem esse lado, não diria pateta…
Tens razão. É sobretudo ingénuo, não tão pateta.
Ingénuo, sim. Puro. É um desses grandes génios que têm uma faculdade muito desenvolvida mas depois são muito desajeitados noutras que para nós são naturais, como relacionares-te, falares, fazeres sexo, resolveres coisas do dia a dia. O Diamantino é um génio futebolístico mas tem uma espécie de défice noutras áreas.
Essa pureza de que falas é o que faz dele uma pessoa sem preconceitos.
Ele vê as coisas como as crianças, não vê maldade no mundo. Quando estava a trabalhar o Diamantino, uma das referências que encontrei foi, olha, um filme de que gostei quando era miúdo, o Forrest Gump. Que não tem nada a ver com o Diamantino, à partida, mas que tinha qualquer coisa que me interessou e quando falei nisso ao Gabriel ele achou muito fixe por ter essa coisa de ser uma criança no corpo de um homem. Antes do Forrest Gump andei a pensar muito no Buster Keaton e no [Jacques] Tati, nessa ideia da comédia física, que tive sempre presente. Mas o Diamantino não podia ser só isso. Então procurei esse equilíbrio, entre uma coisa mais plástica, quase virada para o absurdo, contraposta com uma vida interior que vem um bocado disso. E o trabalho que o Tom Hanks faz no Forrest Gump foi uma grande referência. O gajo não é atrasado mental, tem um défice, mas depois é genial noutras coisas. O que é que é ser normal? Ninguém é ‘normal’.
Não me tinha ocorrido ainda essa comparação, mas faz todo o sentido.
Normalmente quando se vai atrás de referências vai-se atrás de coisas mais sofisticadas. Eu, pelo menos, tento fugir do mais imediato. Mas às vezes são as coisas mais flagrantes, mais imediatas, e é importante não ter medo disso. Gosto muito de trabalhar com o Gabriel também por essa forma meio… infantil, essa forma simples de trabalhar.
É? Porque o resultado é sempre super complexo.
É. Se calhar para que essa complexidade não seja uma imposição às pessoas. Essa complexidade, as pessoas leem-na se quiserem. O quadro pode ter imensas leituras, mas ou é bonito ou não, ou gostas ou não gostas. Ou as cores e as formas são giras e fica bem na parede, ou não.
Fotografia de Bruno Gonçalves
Como é que o Gabriel te dirige? E como é que vais respondendo?
Sempre numa liberdade gigante. Sempre trabalhámos na liberdade, quase na anarquia formal. Não há nada que não se possa fazer, não existe proibido no tipo de trabalho que fazemos. Não há nada que não seja válido. Mais é mais, menos é mais, menos é menos. É uma coisa de não ter medo de arriscar, nem do ridículo. Se resulta, resulta. Se não resulta, não resulta.
O ridículo. Este papel não serviria a um ator com medo do ridículo.
Não sei, porque tenho imenso medo do ridículo.
Mesmo?
Às vezes tenho a posteriori, não sei bem. Se calhar é por ter tanto medo do ridículo que o enfrento. Se calhar arriscar ser o mais ridículo possível ajuda-me a exorcizar esse meu medo. Todos nós temos medo de cair no ridículo, acho eu.
Pergunto porque, no cinema do Gabriel Abrantes, essa fronteira é empurrada para um outro lugar – e vai sempre haver alguém que acha que é demais.
Vai sempre haver alguém que acha que é demais, vai sempre haver alguém que adora e alguém a quem aquilo não diz nada ou que não entende. Também há sempre alguém que entende alguma coisa que não é. Mas, sim, é sempre uma coisa de trabalhar nessa fronteira. O próprio filme é um filme sobre fronteiras.
Sobre todas as fronteiras.
Fronteiras físicas (o muro que querem construir à volta de Portugal), fronteiras de género, fronteiras de génio (o que é que é um génio e o que é que é um idiota?), fronteiras do amor (apaixonares-te por um filho adotivo refugiado, que na verdade é uma espia lésbica ao serviço da polícia secreta lusitana). Acho que é mesmo isso, um filme sobre fronteiras. E que, exato, te obriga a trabalhar muito na fronteira do ridículo. Mas o ridículo serve aquele personagem. Parece que não tenho medo do ridículo, não é? Até pode parecer. É um bocado como um tipo que faz surf. Tenho amigos que são surfistas de ondas grandes e claro que têm medo.
Como é que, a partir dessas referências, e da mais óbvia – Ronaldo – construíste o Diamantino?
À partida não estava nada definido. Sabia que tinha que estar em forma.
O que é que te foi dito mesmo, no início?
O Gabriel ligou-me bastante tempo antes de filmarmos com o pitching do filme: «Vais fazer um jogador de futebol, o maior jogador de futebol do mundo, que falha um penálti decisivo no jogo mais importante da carreira e que adota um refugiado». E claro que existe um imaginário coletivo do que é que é o maior jogador de futebol do mundo, não é preciso estar «a nomear nomes», como dizem… muitos jogadores de futebol [risos]. Achei a ideia maravilhosa e, vinda do Gabriel, alinhei logo. Mas sempre naquela: «Como é que eu vou fazer isto?» Depois, tive muito pouco tempo para me preparar porque de repente disseram que íamos começar a filmar em três semanas. E não estava gordo, mas claro que não estava com o corpo de um atleta. E, em três semanas… Já me tinha transformado para personagens, mas nunca a este ponto.
Foi mesmo em três semanas?
Em três semanas, sim. Foi duro. Foi mesmo à faca. Treinava três vezes por dia. Acordava às cinco da manhã e ia correr 15 quilómetros, voltava e ia treinar, depois ia fazer surf, voltava e ia treinar outra vez. E deixei de comer hidratos e açúcares e isto e aquilo… andei um bocado insuportável. Ninguém me podia tocar. Não podia parar num sinal vermelho que começava a ficar nervoso.
E o sotaque açoriano?
Arranjaram-me um PT, o Pedro Medeiros, que é açoriano, e de ouvir aquela cadência, aquela prosódia que ele tem a falar, aquela musicalidade… Ele era muito intenso, estava sempre a motivar-me [imita o sotaque]: «Vá, Carloto, não desistas, tu vais conseguir. Tens que te manter focado. Foca-te, foca-te! Foco nos teus objetivos!» E depois dizia-me: «Olha para ti, já ‘tás ficando, olha-me este bícepe, ‘tá todo inchado.» E depois ia para casa [risos], na altura andava de mota, e só ouvia «foca-te, foca-te». Chegava a casa e comia uma alface e um terço de peito de frango: «Foca-te, mantém-te focado. Disciplina, tens que ser disciplinado.» E, às tantas, no processo de composição da personagem, estava a ler o argumento e… fez-se luz. Liguei logo ao Gabriel.
Então foste tu que puseste um elenco inteiro a falar açoriano?
De repente, leio o argumento todo e foi mesmo: «É isto, genial». É que nem sequer perguntei ao Gabriel o que achava, disse logo, porque com o Gabriel dou-me ao luxo de poder fazer este tipo de coisas [entra em personagem]: «Olha, o Diamantino vem dos Açores. Nem sei bem se é dos Açores, mas é de uma ilha no meio do Altântico». Foi uma coisa a que também achei graça: o fenómeno do melhor jogador do mundo é insular [volta à personagem] mas este ainda vai mas além. Não é na Madeira, é nos Açores, a última ilha dos Açores, uma ilha que ainda não foi descoberta, a ilha do Diamantino, que, quando for, se vai chamar «a ilha do Diamantino». Diamantilha. [Risos] E vou lá ter uma estátua. [Sai de personagem] É daquelas coisas em que se acende uma luz e, de repente, acende-se tudo. E aquilo fez-me tanto sentido que nem dei hipótese.
E o que é que ele te disse?
O Gabriel embarca quase sempre nas minhas maluqueiras. Ainda hoje liguei à Maria João [Mayer, coprodutora] a perguntar se a NOS tinha posto legendas no filme, porque aquilo é um açoriano tão macarrónico… é diamantinês. É um sotaque inventado. Mas existe. Naquele universo, existe. Também é disto que gosto no trabalho com o Gabriel. Claro que tenho medo que as pessoas achem completamente ridículo, que não entendam. Quero que as pessoas gostem do filme, faço para que as pessoas gostem.