Na sala de tribunal, os elementos do Grupo de Intervenção Proteção e Socorro (GIPS) entram e saem a cada meia hora, mudando vezes sem conta de posição. Sentado, ao centro, de frente para os juízes, está Abdesselam Tazi. O homem que o Ministério Público acredita ser um terrorista ligado ao Daesh apresenta-se como um ocidental: camisa às riscas e um casaco impermeável com capuz de forro azul claro.
A versão do marroquino de 65 anos é a de que procurou em Portugal um porto seguro para as perseguições de que estava a ser alvo por parte do regime de Marrocos desde que foi porta-voz de um movimento, no contexto da denominada Primavera Árabe. Para fugir à prisão e à tortura, contou aos juízes, decidiu comprar um passaporte falso e rumar até Lisboa, corria o ano de 2013: “Paguei 600, 700 euros por um passaporte”.
“Era ativista contra o regime marroquino, contra a monarquia”, sublinhou.
Sobre Hicham el Hanafi, terrorista preso em França devido a um atentado realizado 2016, Tazi também negou ter sido o responsável pela radicalização daquele compatriota, como defende o MP, afirmando que fizeram queixa dele porque não aceitou entrar em esquemas de droga com o irmão de Hicham. A partir daí relata que a sua vida se transformou num “filme de Hollywood”.
E um dos personagens do filme que criticou foi o juiz Carlos Alexandre, que o ouviu nos primeiros interrogatórios – o suspeito disse ao coletivo considerar que, para aquele magistrado, muçulmanos praticantes são automaticamente terroristas.
Os filmes terroristas e as leituras suspeitas em Aveiro Tazi diz que foi uma vingança a denúncia de que estava a radicalizar o rapaz com quem já tinha viajado desde Marrocos e que com ele partilhava quarto em Aveiro. Mas para as responsáveis do Centro Português para Refugiados, o irmão de Hicham parecia mesmo preocupado quando as procurou para contar o que é que Tazi estava a fazer ao irmão em Aveiro – ao contrário de Mohamed Amine El Hanafi, que ainda estava no centro de refugiados de Loures em 2014, o irmão e o arguido já tinham saído e viviam naquela cidade.
Naquele momento, após uma vista ao irmão, os planos de Amine de um dia rumar a Aveiro terão caído por terra, conta Bárbara Oliveira, coordenadora de projetos no Centro Português para Refugiados: “O irmão veio dizer-nos [após uma visita a Aveiro] que Hicham estava em casa e que o senhor Tazi não permitia que saísse. Que Hicham estava o dia todo a ver filmes de guerra e a ler livros. Que em breve iria para a Turquia para daí ir para a Síria. Disse que vinha muito preocupado”.
Também Cláudia Soares, à data assistente social no centro, tem uma versão idêntica. Contou que depois de ir a Aveiro, Amine assegurou “que viu o irmão em casa a ver vídeos que o podiam ligar a práticas terroristas”. E mais: “Que o irmão estava em casa a ver vídeos executados pelo Daesh e que, por isso, não queria estar em contacto com o irmão”.
Além de Amine, também outros dois marroquinos desistiram de ir viver para Aveiro, cidade para onde, segundo as técnicas, Tazi queria levar vários compatriotas que estavam no centro.
“O senhor Tazi voltou mais do que uma vez ao centro. Muitas vezes só para dizer olá, outra vez perguntou se havia mais cidadãos da mesma nacionalidade. Pareceu que queria ajudar as pessoas que lá estavam”, contou ainda Bárbara Oliveira aos juízes, lembrando que sempre mostrou ter uma instrução acima da média, ter espírito de líder e ainda um comportamento cordial com os funcionários.
O ascendente de Tazi sobre Hicham também não suscita dúvidas ao inspetor da PJ que era titular do processo. Segundo João Macedo, “nas orações era o Tazi que dirigia” e até as “conversas com terceiros era sempre veiculada através de Tazi”.
“Tinha ascendente sobre [vários marroquinos], mas sobretudo sobre o Hicham. Era ele que pagava todas as despesas. Ficavam sempre nos mesmos quartos”, contou o inspetor que fez várias vigilâncias.
O recrutamento a partir de Aveiro Abdesselam Tazi, que está preso desde o início de 2017 na prisão do Monsanto, foi acusado dos crimes de adesão a organização terrorista internacional, falsificação com vista ao terrorismo, uso de documento falso com vista ao financiamento do terrorismo, recrutamento para terrorismo e financiamento para terrorismo.
Mais tarde, na fase de instrução, o juiz Ivo Rosa decidiu ilibar o marroquino de crimes de terrorismo, considerando que apenas deveria seguir para julgamento por um crime de falsificação de documentos e quatro crimes de contrafação de moeda. Na despacho de pronúncia justificava-se: “É descrita a função e o papel do arguido, os contactos que manteve com outras pessoas com vista à alegada adesão ao Estado Islâmico, os locais onde exerceu esses contactos, os documentos de identificação que utilizou, as viagens que realizou, os cartões de crédito que utilizou”.
O juiz Ivo Rosa entende que “questão diferente, é saber se os autos contêm os elementos de prova suficientes para sustentar a submissão daquele a julgamento pelos crimes imputados na acusação”.
Mas em dezembro, a Relação de Lisboa mostrou a sua perplexidade quanto à fundamentação feita pelo magistrado Ivo Rosa – que tem em mãos a instrução da Operação Marquês – para não levar a julgamento Abdesselam Tazi por crimes de terrorismo. Até porque o marroquino, que chegou a Lisboa em 2013, é citado em investigações que correm França e Alemanha.
Tazi, o terrorista sedutor, segundo o MP Para o Ministério Público, Tazi foi o responsável pela radicalização de Hicham El Hanafi. Ambos viviam num quarto alugado por uma mulher, em Aveiro, e eram tratados por outros nomes (Salim e Xan). A proprietária descreveu-os como pessoas que falavam muito em Alá, que gostavam de Portugal e de jogar à bola e ao pião – cada um tinha o seu.
“Toda a gente diz que o comportamento do Hicham mudou com a convivência com Tazi, homem mais experiente, mais velho e com capacidade de sedução”, frisou o procurador João Melo no debate instrutório que aconteceu no ano passado, afirmando que o arguido “estuda os personagens e os momentos próprios e sabe construir o seu discurso de forma a seduzir.”
Além disso, o magistrado elencou várias mentiras de Tazi e o facto de ter falsificado os seus documentos: “Não fez outra coisa desde que chegou à Europa senão mentir.”
Para o MP, Tazi – que foi preso na Alemanha em 2016 e cumpriu pena por fraude informática com o uso de cartões de crédito – não radicalizou apenas Hicham. Ou seja, funcionando como uma espécie de líder da célula que atuava em Portugal, centrada em Lisboa e Aveiro e com ligações a vários países europeus e ao Daesh, o marroquino de 65 anos, ex-polícia e que chegou a Portugal pela primeira vez em 2013, recrutaria também no Centro de Acolhimento de Refugiados.