Há receios de que a ajuda a Moçambique esteja a ser desviada

Roque Silva garantiu que “aqueles que meterem a mão” nas doações serão exemplarmente castigados e quer o fim da dependência alimentar.

O secretário-geral da Frelimo, Roque Silva, mostrou preocupação com os desvios da ajuda alimentar destinada às vítimas do ciclone Idai, que matou pelo menos 598 pessoas. O líder do partido governante de Moçambique garantiu aos jornalistas que “aqueles que meterem mão naquilo que as organizações e pessoas de bem estão a doar para mitigar o sofrimento da população serão levados a tribunal e punidos exemplarmente”. Há relatos de roubos de bens essenciais e subornos a distribuidoras alimentares, mas não há registo de detenções.

Este aviso chega quando mais de 140 mil pessoas permanecem em centros de acolhimento, dependentes de ajuda humanitária. O ciclone Idai e as cheias que lhe sucederam causaram a perda de quase todas as culturas no centro de Moçambique, levando a receios de uma fome generalizada. Cerca de 400 mil hectares de cultivo foram afetados, na sua maioria milho e sorgo, segundo os números da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). 

A resposta internacional canalizou toneladas de alimentos para a região, com a FAO a estimar que sejam necessários 124,8 milhões de euros em ajuda alimentar só nos próximos três meses. Outra agência da ONU, o Programa Alimentar Mundial, informou já ter distribuído alimentos a mais de 150 mil pessoas, pretendendo conseguir dar apoio pelo menos a 500 mil brevemente. Estão em curso várias campanhas de solidariedade com as vítimas do Idai, em Moçambique e no estrangeiro, incluindo Portugal.

No entanto, teme-se que parte dos alimentos possam ser desviados. “Muitos moçambicanos não estão a doar ajuda não porque não tenham, mas porque há uma desconfiança muito grande”, afirmou ao i Baltazar Fael, coordenador do Centro de Integridade Pública, uma ONG que fiscaliza a transparência do Estado. Fael lamenta: “É muito recorrente no nosso país aproveitarem-se de situações que deviam ser de solidariedade”. O Centro de Integridade Pública já pediu ao Governo que trabalhe com organizações independentes para fiscalizar as doações.

O coordenador do Centro de Integridade Pública relaciona a pouca confiança dos moçambicano com o escândalo do desvio de fundos pelo ex-ministro Manuel Chang, acusado de um esquema de corrupção envolvendo quase dois mil milhões de euros em empréstimos fraudulentos. Segundo Fael, a desconfiança agravou-se com os relatos, divulgados nas televisões locais, de que funcionários do Instituto Nacional de Calamidades de Moçambique (INGC) se terão “apropriado de bens essenciais para consumo próprio”.

Estes receios parecem ser partilhados pelo secretário geral da Frelimo, que afirmou ao jornal O País: “Esta parte da comida é sempre muito problemática, é por essa razão que a melhor solução é ajudarmos as pessoas a refazer a vida e a agricultura para dependerem de si mesmas”. Roque Silva mostrou satisfação por as populações afetadas pedirem materiais agrícolas, vendo nisso uma maneira de evitar a dependência alimentar.

A recuperação agrícola é difícil dado que o Idai ocorreu “na época mais produtiva, o período quente e chuvoso”, explicou ao i Sosdito Mananze, professor de Economia de Recursos Naturais na Escola Superior de Desenvolvimento Rural da Universidade Eduardo Mondlane. 

O professor explicou que em Moçambique há duas épocas de produção e que está a chegar o período seco, que dura até finais de setembro, havendo o risco de fome até ao regresso das chuvas. Para Mananze, “a única possibilidade de recuperação é em zonas de agricultura de regadio”, ao longo dos rios, “onde até se pode fazer a irrigação à mão”. O professor salientou que isso só é possível “se quem perdeu tudo receber os meios para trabalhar a terra”, como adubos e as sementes apropriadas a esta época, particularmente pequenas hortícolas, “como couves, repolhos, tomates”.

Entretanto, as doenças têm aumentado de dia para dia e são muitos os moçambicanos sinalizados com cólera.