Terça-feira, 9 de abril. Catarina Neves, sentada ao lado do motorista, é a primeira a sair do carro que estaciona na Praça do Império, em frente ao Mosteiro dos Jerónimos. Discreta no fato preto, cabelo apanhado num rabo-de-cavalo, não aparenta ter 30 anos: apenas o porte rígido, embora sem aparentar masculinidade, a diferencia de uma teenager. Cabe-lhe reconhecer a presença do perigo – e os olhos, tipo radar, abrem caminho entre os presentes mal Kersti Kaljulaid, Presidente da República da Estónia, abandona a viatura para cumprimentar o seu homólogo português, que a convidou a visitar o país.
A operação foi preparada ao pormenor, a segurança montada em perímetro erigindo uma ‘muralha’ à sua volta, mas ela sabe que estará sempre em desvantagem. Um atentado não dura mais de sete segundos – e, apesar do seu treino para uma reação imediata, ninguém pode prever o destino.
Quatro anos antes, num trabalho que à partida não prometia surpresas, foi ela que ajudou a salvar a situação. A herdeira do trono sueco viera a Lisboa apoiar a equipa feminina de vela do seu país, e Catarina ficara a coordenar a equipa do Corpo de Segurança Pessoal da PSP. O grau de ameaça, que é determinado sempre pelos Serviços de Informações de Segurança (SIS), era moderado, e o cordão de segurança não se comparava naturalmente ao que rodeia os representantes das grandes potências.
Durante a regata, em Algés, enquanto a princesa dá uma entrevista numa das tendas, Catarina Neves avista uma figura suspeita junto ao rio. Estuda-a por instantes. Alguma coisa nela não batia certo. Corria junho e já abrasava. Um breve clarão mental fez-lhe disparar o raciocínio: «Num dia de calor, reparo num sujeito de gabardina e chapéu que não tirava os olhos da princesa. Não era normal. Contactei um dos elementos da equipa e pedi para o abordar. Mal o nosso homem se aproxima do sujeito, ele atira-se à água. Foi a Polícia Marítima que o foi recolher. Se tinha arma, livrou-se dela no rio. Ficámos sem saber o que preparava, mas havia ali uma intenção qualquer».
Dar a vida por alguém é o sacrifício máximo
O Sol mostra a fronha simpática. O quarteirão que envolve a Praça do Império, o perímetro exterior do dispositivo de segurança, está cortado ao trânsito. A Presidente da Estónia é recebida com honras militares. Kersti Kaljulaid, à semelhança da princesa Vitória, não está colocada no centro do poder internacional e a avaliação do grau de ameaça é mínimo. No fundo, trata-se de um encontro entre dois pequenos Estados que precisam de patronos.
Para Catarina, desta vez no papel de ‘protetora direta’ – a designação para o elemento do corpo de segurança que, à semelhança do mítico guarda-costas, é treinado para dar a vida pela entidade a quem presta segurança –, a responsabilidade é igual. Esfomeada de heroicidade, cisma com as suas fraquezas: «Dar a vida por alguém na nossa profissão é o sacrifício máximo, mas só no momento é que se sabe do que somos capazes». A sua mente recua quatro décadas como se no passado resgatasse uma força que a tranquilizasse.
Na viagem, leva companhia: José Manuel Gouveia, versão de herói inadequado às catástrofes, que escapou à morte por um rasgo de sorte. Mas sentiu-lhe o cheiro. Aos 70 anos, tem uma forma singular de evocar os acasos: «Não estava escrito, estive para morrer três vezes. Nessa altura, não existiam os meios de agora. Nem coletes à prova de bala tínhamos. Contava apenas comigo e com o instinto». O percurso do homem – que teve nas mãos a vida de figuras como Mário Soares (quando era primeiro-ministro, entre 1976 e 1978), o seu sucessor, Alfredo Nobre da Costa, e o antigo diretor-geral dos Serviços Prisionais, Gaspar Castelo Branco, assassinado por um comando das FP-25 de Abril – tem a vantagem de reproduzir outra memória de um período agitado da história do país.
Atentado no centro de Lisboa
Em 1979, Portugal ressacava ainda da revolução de Abril. A 13 de novembro, uma terça-feira, Lisboa torna-se o centro do mundo. O embaixador israelita, Ephraim Eldar, fora o primeiro alvo de um atentado contra um representante diplomático no país. Pelas nove da matina, José Gouveia, que faz parte do dueto da segurança pessoal do embaixador, entra numa farmácia e o boticário observa-o com a atenção minuciosa de quem vê um defunto: «Então Gouveia, estás vivo?».
A notícia, numa sociedade que mal se libertara da ditadura e convivia a medo com as aliciantes mudanças, caiu com estrondo. Gouveia não pensa duas vezes e ruma para a rua António Enes, no Saldanha, onde fica a embaixada. Pelo caminho antecipa o cenário.
Um pouco antes das 9h00, o seu colega Ildefonso Pereira ‘apanhara’ o motorista do embaixador israelita, José Dias, e, como era hábito, antes de irem buscar Efhraim Eldar, passaram pela esquadra para recolher a Sterling, metralhadora de 9mm que anda sempre na bagageira do Volvo.
Além da metralhadora, Ildefonso só tem a sua arma pessoal – uma pistola Smith & Wesson – e a experiência de vida. Por precaução, fizera um trajeto diferente. Chega à embaixada meia hora depois, mas nem tempo tem para sacar a arma: no passeio em frente à embaixada, um jovem alto, de blusão de pele castanho, apoiante causa palestiniana, fizera os preparativos para a ação que ia levar a cabo. Conhecia-lhes as rotinas. Mal Ildefonso sai do carro para abrir a porta ao diplomata, é apanhado por uma rajada de metralhadora.
O jovem atacante árabe fora treinado para morrer e não sai do terreno sem confirmar que abatera o embaixador. Tem o caminho livre, não há qualquer tipo de policiamento junto à casa do emissário de Israel. Ágil, movera-se para a frente do carro e disparara para dentro da viatura na expectativa de encontrar o alvo. O diplomata é atingido, mas refugia-se no fundo do Volvo, enquanto o motorista, com três balázios no ombro, acelera e tenta atropelar o árabe – que ainda lança uma granada de mão na direção do carro. A explosão dá-se mesmo ao lado do corpo inanimado de Ildefonso e rebenta-lhe o crânio.
Quando Gouveia chega ao local, percebe que não é possível prever os esforços do destino: «Até o portão da garagem, que era de alumínio, estava cheio de buracos, com cabelos e miolos do meu colega agarrados à chapa. Por um momento, pensei que era eu que ali estava. De certeza que nos andaram a vigiar. Conheciam-nos as rotinas, sabiam que ora estava lá eu, ora estava o Ildefonso. Não sei por que é que o escolheram a ele e não a mim!». Na embaixada, ninguém tinha dúvidas sobre a autoria do atentado. Ele também não: «O Arafat tinha estado cá uns dias antes, numa conferência, foi gente dele pela certa».
A segurança no Hotel Tivoli
O tempo é um escultor de histórias. Pode reduzi-las a pó ou eternizá-las. O atentado à embaixada de Israel tem o efeito de agitar as dúvidas de Catarina, que não desconhece que a força ou a fragilidade da natureza humana só se revelam quando chega o minuto da verdade é: «Não sei se tinha a coragem que o Ildefonso teve. O meu papel é colocar-me à frente de uma bala e aceitar a morte como um dever. Teoricamente estou pronta, mas será que tenho capacidade para o fazer? Esta é uma questão que vive connosco».
No entanto, no terreno, a serenidade com que se move e a discrição com que está à boca de cena ou se oculta não transmitem qualquer sinal de receio: «Sei que não estou sozinha. Hoje trabalha-se de uma forma mais integral. Saber que antes de irmos para o terreno houve busca de explosivos, que os snipers estão nos telhados, que temos coletes à prova de bala, dá-nos outra tranquilidade no terreno. Trabalha-se com meios que tornam bastante difícil um atentado».
Catarina revê toda a mecânica da complicada operação. Não encontra falhas. Dias antes de a Presidente da Estónia chegar, a suite do hotel Tivoli onde pernoitaria fora passada a pente fino e os perigos identificados. Despistou-se a presença de explosivos e de escutas. O mesmo foi feito em todos os locais, desde percursos a restaurantes, por onde a comitiva teria de passar. A segurança está preparada, traçou-lhe o perfil. Conhece-lhe desde o tipo de sangue – uma informação que é passada para o INEM, que acompanhará a operação – aos hobbies.
A operacional, que também dormira no Tivoli, num quarto próximo do da Presidente, acordara cedinho e tomara as precauções habituais. Carregou a Glock e colocou o coldre no cinturão. A chefe de Estado da Estónia é uma atleta natural e não passa sem a sua corrida matinal: de uma energia enorme, dez quilómetros é a sua média. O percurso já fora estudado. Da avenida da Liberdade à Praça do Comércio, a operacional acompanha-lhe a passada larga. Com dois carros, o do INEM e outro do CSP, sem as perder de vista, ela mantém o passo de corrida até Santa Apolónia, de onde regressam ao hotel.
Em dias como este, não há períodos de descontração. Enquanto Kersti Kaljulaid muda de roupa, Catarina, em modo de piloto automático, cumpre nova tarefa. Naquela manhã, antes da saída para a visita oficial, os carros destinados à comitiva presidencial estão a ser de novo revistados. Catarina entrevista o motorista, que fora cedido pela Presidência do Conselho de Ministros, para lhe testar as capacidades.
Os bodyguards que substituíram os agentes da PIDE
Até aqui, tudo correra sem imprevistos. À esquerda da tribuna, a agente, de rosto contraído pela tensão, escrutina todos os movimentos.
Na tribuna, os dois chefes de Estado assistem ao desfile da charanga a cavalo do regimento de cavalaria da GNR. O som da banda, entrecruzado com o bater dos cascos no asfalto, quebra o silêncio sepulcral. Os belos animais, de rabos entrançados, alheios ao momento solene, aliviam bexigas e tripas arrancando aqui e ali um sorriso aos empresários estónios que acompanham a comitiva.
Ao longe, está Carlos Magalhães, o comandante do Grupo de Segurança de Entidades Estrangeiras, que é também professor no Instituto Superior de Ciências Políticas e Segurança Interna, que forma os futuros oficiais do CSP. O papel de Indiana Jones em Os Salteadores da Arca Perdida assenta-lhe que nem luva. Habituou-se a receber dirigentes de pequenas e grandes nações e a reconhecer o perigo. E é na reconstituição do passado que parece encontrar o vício que lhe condimenta a vida.
Conhece a história do Corpo de Segurança Pessoal de trás para diante. À sua volta perfilam-se alguns veteranos de outras jornadas – que abrem a janela para o passado.
Alfredo Januário, hoje com 83 anos, é um deles. Pelo túnel da sua memória caminha-se de encontro a telas vivas da crónica lusa. Pertencera ao primeiro curso do Corpo de Segurança, realizado em pleno PREC. A extinção da PIDE/DGS, a polícia que até Abril prestava segurança pessoal às figuras de topo do Estado Novo, deixara um vazio por preencher. Na Presidência da República, António de Spínola, para não ferir as suscetibilidades da esquerda, coloca de lado os americanos, velhos aliados militares, e resolve a embrulhada recorrendo aos ingleses: uma equipa do Reino Unido vem treinar, em Mafra, militares e elementos da PSP. São estes instruendos que, copiando o modelo da polícia metropolitana londrina, passam a formar as novas fornadas de bodyguard, designação britânica para os primeiros homens do corpo de segurança português.
A amante de Frank Carlucci
Nesta época, o país fervilha. Frank Carlucci, o histórico embaixador americano, aterra em Lisboa em pleno Verão Quente com a missão de parar os avanços dos comunistas e preservar a integridade da NATO. Com o processo revolucionário a abrir, e a fama de estar ao serviço da CIA, o diplomata tornara-se um alvo apetecível. Mas os americanos não brincavam com questões de segurança e Januário faz parte de uma equipa de quatro guarda-costas que o acompanham a tempo inteiro. O embaixador, um homem franzino mas ginasticado, anda de carro blindado e nunca se esquece da arma: «Ele era destemido mas nunca quebrava as regras de segurança, ao contrário dos nossos», recorda o veterano.
Januário, rebento de camponeses de uma aldeia do distrito de Castelo Branco onde a revolução não chegara para descomplicar os costumes, fica a conhecê-lo do avesso. Até nas fraquezas. O representante americano instalara-se na Rua do Sacramento à Lapa e, no jardim da residência, mandara construir uma piscina. Com ele, os dias são extenuantes. Logo pela manhã, Januário tem de lhe acompanhar as passadas: «Gostava de ir correr ou andar e a seguir nadava». Durante o dia, com o processo revolucionário ao rubro, desdobra-se em contactos. E nem quando à noite regressa a casa o dispensa: Januário já sabe que só se deitará tarde e a más horas.
Prevendo que o país pós-25 de Abril levaria tempo a organizar-se, Carlucci pedira a uma afeiçoada amiga americana que viesse a Portugal aliviá-lo da ansiedade. A senhora fica instalada a um pulo da residência do diplomata, no edifício da antiga sede do PSD, na rua de S. Caetano à Lapa. Januário, no alto dos seus 83 anos, embalado pelas recordações, quebra a reserva: «Essa é que nos dava trabalho. Era um serão inteiro, e nós na rua, ao relento!».
Eanes e o desafio à segurança
Nada mais desesperante do que saber que se arrisca a vida para nada. Ao contrário dos americanos, que cumpriam à risca as regras de segurança, os políticos portugueses continuam a seguir a senda do improviso. A temperatura política baixara e Carlucci, em 1978, regressa a casa. António Ramalho Eanes, o rosto do 25 de Novembro – que, para os partidos esquerdistas com pressa em mudar o mundo, enterrara a fé na revolução e no futuro –, aguentava-se na Presidência da República. Januário, já com uma história empolgante, muda-se para Belém e chefia o corpo de segurança.
A indisciplina contrastava com as precauções do metódico diplomata americano. Mas para o bodyguard, que fora tropa em Angola e voltara da viagem colonial com a candura de quem escapou com vida da goela do Inferno, a convivência com Eanes tinha a magia do regresso à intimidade das origens. A imagem esfíngica do então candidato num comício em Évora, a poucos dias das eleições presidenciais de 1976, ganhara um lugar no imaginário do povo português. Encurralado por grupos que apoiavam o seu adversário Otelo Saraiva de Carvalho, o militar subira para o topo do carro e enfrentara de peito aberto tiros e pedradas.
A pose impressionou Januário: «Quebrava as regras, quebrava. Mas era um homem muito destemido.» Com Eanes, as regras básicas de segurança raramente se cumpriam. Numa noite, após um jantar com António Barbosa de Melo, político próximo de Sá Carneiro, o Presidente pede ao chefe de segurança que os leve à estação de Santa Apolónia, onde o professor de Direito ia apanhar o comboio para Coimbra. Surpreendido, o bodyguard arremessa: «Meu Presidente, eu tenho carta de condução mas não estou habituado!». Ramalho Eanes contorna o impasse: «Não há problema, eu conduzo! E lá fomos os três».
As escapadelas ao sistema de segurança sucediam-se. Numa visita a Castelo Branco, Eanes, que nascera a um pulo dali, em Alcains, decide aproveitar a viagem de Estado para resolver um problema de extremas com a família. Eram tempos em que as emoções estavam fora de controlo, mas o Presidente fiava-se na sorte. O bodyguard, sobre quem recairia a responsabilidade se algo desse para o torto, sabe que com ele não vale a pena regatear e nem o contraria quando ele diz: «Agora, fiquem aqui. Vou a um sítio muito próximo e não quero segurança comigo. Januário deixe ver aí a sua pistola». Um polícia sem arma é como um rico com um farrapo a enfaixar-lhe o corpo. «Tem bala na câmara?», pergunta o Presidente, que o deixa a resmungar sozinho após a confirmação.
Atentado no Algarve
O atraso em relação às medidas de segurança, além da indisciplina latina, não deixava de ter uma raiz ideológica. A arquitetura policial fora reconstruída depois da revolução, mas o bafo da PIDE não largava a sensibilidade de algumas forças políticas em relação às autoridades – e os aspetos relativos à segurança eram esquecidos.
Os anos 80 desenham-se tumultuosos. Portugal torna-se palco de atentados de organizações estrangeiras. Em 1983, Januário, já calejado de experiência, presta pontualmente segurança a Bettino Craxi, o secretário do Partido Socialista Italiano que se deslocara a Portugal para participar nos trabalhos do XVI Congresso da Internacional Socialista.
Em abril, Mário Soares é o anfitrião e o Estado português coloca o Corpo Especial de Segurança da PSP à disposição dos congressistas. Issam Sartawi, médico e conselheiro de Arafat, um moderado negociador de uma solução pacífica com Israel, recusa andar com um guarda colado a ele e ninguém o contraria. Januário, como se regressasse de supetão ao presente, faz a ligação: «Ainda hoje a segurança não é obrigatória em Portugal. Qualquer um, mesmo que lhe seja apresentado um relatório com um elevado grau de risco, pode recusar. Nos Estados Unidos, um Presidente não pode fugir à segurança ou então tem de renunciar ao cargo!».
Os trabalhos do congresso socialista, no hotel de Montechoro, em Albufeira, terminam sem incidentes. Os congressistas estão de partida, uns com mais pressa do que outros. Januário leva Craxi, que se deslocava num carro blindado, ao aeroporto de Faro.
À espera da sua oportunidade, estava um elemento da organização extremista palestiniana de Abu Nidal, que via em Sartawi um traidor ao serviço dos israelitas. Era ínfima a probabilidade de o homem sair dali com vida. Quando Januário, que ainda não tomara o pequeno-almoço, regressa ao hotel, já a rota dos acontecimentos dera uma grande volta: «Mal entro na receção, está tudo em alvoroço. Sartawi fora baleado. No átrio, estava o palestiniano [autor do atentado] já morto e ia outro a fugir. Meti-me no carro com mais colegas e perseguimo-lo, mas acabámos por o perder naqueles arruamentos de Albufeira. Foi preso depois em Lisboa, mas o mal estava feito. Ainda fui testemunha no processo.»
Morte na embaixada da Turquia no Restelo
Um mês depois, há novo atentado. Desta vez, o alvo é a embaixada da Turquia e o protagonista Túlio Rosado, já reformado. As recordações agem no antigo elemento do Corpo de Segurança como um estimulante: quando fala, as suas mãos mantêm-se muito afadigadas, como se com elas trouxesse de volta o passado. Naquela quarta-feira de julho de 1983, Túlio escutou a fria risada da morte quando a metralha lhe rasou o corpo. Era o segurança do conselheiro Mustafá, o encarregado de negócios turco que substituíra nas férias o embaixador.
Ainda não seriam 11h00, quando o operacional decide ver se o movimento na rua está normal. Lembrara-se de um episódio do dia anterior que considerou uma ameaça plausível e que participara ao comando-geral. Mesmo à frente da embaixada, parara um Ford Escort branco e um rapaz, de fisionomia árabe, castigando a língua de Camões, mostrara-lhe um documento: «Visar passaporte, visar passaporte». O operacional pede-lhe o salvo-conduto, mas o outro arranca com o carro prometendo voltar no dia seguinte.
Agora, 24 horas depois, os alarmes tocam no seu cérebro, mal avista a viatura. Em segundos, um rosto conhecido salta do carro. Túlio puxa da arma e dispara na sua direção, enquanto o outro, acompanhando os seus reflexos, descarrega a metralhadora: «Ainda a estou a ver, com os carregadores colados um ao outro por fita-cola azul e amarela». Baixa-se, a rajada passa-lhe por cima do corpo atingindo as janelas, enquanto ele, coberto de vidro, entra pela porta blindada da embaixada. «Estou todo furado», pensou por segundos enquanto subia o lance de escadas que o levavam ao gabinete do conselheiro, gritando: «Terrorismo, terrorismo!».
De seguida, o condutor do Ford Escort arromba o portão da embaixada para entrar. No primeiro andar, um segurança turco neutraliza os dois homens que, conforme se saberia mais tarde, pertenciam a um comando arménio. Numa segunda viatura, dois elementos do grupo, ao perceberem que os outros foram abatidos, rebentam outro portão que dá acesso à residência oficial, onde se encontra a família do encarregado de negócios, que toma como refém.
Entrincheirado nas ombreiras das janelas, o grupo arménio faz pontaria à embaixada. A obrigação de Túlio é deter qualquer bala disparada contra Mustafá – o qual tenta rebelar-se às instruções do segurança para ir salvar a mulher e o filho que estão nas mãos dos arménios: «Eu tinha de olhar apenas pela vida dele, fui treinado para isso. O resto não importava. Mas os terroristas tinham dinamitado a residência e, a dada altura, a casa começa a arder. Só se ouviam os gritos da mulher do senhor conselheiro. Morreram todos queimados. Ele consegue-me fugir, atira-se por uma janela para ir salvar a família. Partiu um pé. A partir daí, nunca mais foi o mesmo, sentia-se culpado. E eu pedi férias e estive um mês na terra a pensar se devia mudar de vida. Fiquei».
Os atentados das FP-25
A esta geração pertence também José Gouveia, que se salvara por um golpe de sorte do atentado à embaixada de Israel, onde morrera o colega Ildefonso. Depois disto, Gouveia passou a andar com outra disposição moral. Rebento de pobres, apenas com a escola primária, o homem fizera de tudo um pouco antes de ali chegar. Fora grumete, mecânico, estivador e segurança de discotecas em Angola, quando nos anos 60 lá fizera a tropa. Voltara intacto da contenda ultramarina, o que lhe emprestava uma predisposição para testar o destino. Mal chegou à metrópole, reforçou o físico com um mestre japonês de artes marciais, e por sete vezes foi campeão de culturismo. Por isso, mais tarde, quando foi chefe de segurança de Aníbal Cavaco Silva – o único político português a aceitar o uso de colete à prova de bala numa altura crispada –, ganharia o epíteto de ‘anjo da guarda’ do governante.
O país acalmara, mas as instituições continuavam enfraquecidas e há quem clame pela luta armada para fazer regressar a revolução aos carris: nascem as Forças Populares 25 de Abril (FP-25). Nos primeiros anos da década de 80, assaltos a bancos e atentados são audaciosamente concebidos e implacavelmente executados. Mas em 1984, na sequência de uma investigação policial, começa o desmantelamento da força armada e vários dos seus elementos são presos, entre eles Otelo Saraiva de Carvalho.
Gouveia estava no centro da tempestade como segurança do diretor-geral dos Serviços Prisionais, Gaspar Castelo Branco, um dos ódios de estimação das FP-25. Um ano depois, nove elementos da organização conseguiram escapar-se de Monsanto, uma proeza que deixara o segurança de Castelo Branco de sobreaviso: «Pedi as fotografias dos fugitivos, estudei-lhes as feições e, para qualquer sítio onde fôssemos, andava sempre com ‘um olho no burro e outro no cigano’».
O operacional fizera-se com a experiência, convivera com os protagonistas da época, assistira a pressões políticas e económicas, concessões feitas em segredo que ficarão apenas com ele, mas ainda não descobrira uma forma eficaz de lutar contra a teimosia. Castelo Branco faz questão de desafiar as FP-25 publicamente e anda com uma 6,35mm à cinta, uma arma que mais parece um brinquedo, para se defender. Na sexta-feira, 14 de abril de 1986, com eleições presidenciais à porta, Castelo Branco despede-se: «Este fim de semana, não preciso de si». O segurança fez-lhe o último aviso: «Olhe que eles andam por aí, pelo menos não saia de casa!». A notícia caiu no dia seguinte: «Parece que tinha visitas e saiu para ir à Lapa comprar um queijo. Levou com dois tiros à porta de casa».
O misterioso ‘homem da mala’
Gouveia mantém-se na mesma área. Era um homem seco, só músculos, e temido na luta corpo a corpo. Cabe-lhe a segurança de Martinho da Cruz, o juiz instrutor do processo que levara à detenção de Otelo. Mesmo nos momentos mais difíceis, o caricato faz o favor de melhorar uma história. Um dos arrependidos das FP-25 – um homem pequenino, curiosamente preso por ter assassinado um camarada delator – costumava dar dicas preciosas aos investigadores. Mas este tipo de informação tem sempre uma margem de erro. Numa das vezes, Gouveia acompanha o juiz e uma equipa da PJ ao cemitério de Valongo, onde era suposto encontrar uma quantidade considerável de armamento e explosivos escondidos numa sepultura.
O coveiro, habituado a enterrar, achou normal fazer o serviço contrário. Mas uma senhora, devota obstinada, viu no ato um atentado contra os preceitos da Igreja Católica. Quanto mais próximo o coveiro estava da urna, mais a beata injuriava o juiz. Martinho da Cruz perdeu a paciência: «Ou se cala ou prendo-a imediatamente!». Os olhos vivos de Gouveia, filho de gente carenciada mas muito religiosa, iluminam-se: «O certo é que não estava lá nada!».
O comboio das memórias estaciona décadas depois, na Praça do Império. Carlos Magalhães apanha-o. O atual comandante do Corpo de Segurança faz o remate histórico: «Evoluímos muito, quer ao nível técnico quer tático. Temos hoje meios impensáveis naquela época, como o homem da mala: um elemento da segurança que anda muito próximo da entidade com uma espécie de pasta diplomática. Perante uma ameaça, a mala, a um simples movimento, abre-se e desdobra-se em três paredes protetoras à prova de bala. Mas a questão que é levantada por estes veteranos mantém-se: não existe em Portugal um sistema jurídico que imponha a alguém a aceitação de segurança pessoal. As pessoas aceitam se quiserem e, mesmo assim, ou cooperam totalmente com as regras ou arranjam-nos problemas. Não pode haver segurança se não se sabe onde está o protegido».
O olhar do homem estende-se ao Mosteiro dos Jerónimos. Catarina, que entretanto fizera o tour com a Presidente da Estónia ao interior do monumento, regressa, acompanhando Kersti Kaljulaid ao carro. De auricular, está em permanente diálogo com o comandante operacional, o homem a quem todas as equipas no terreno reportam as informações. O tempo é cronometrado ao segundo para que se cumpra o protocolo, e as viaturas da coluna estão já em disposição de saída. Uma ambulância encoberta, preta e descaracterizada, posiciona-se na cauda.
As impressionantes precauções do Presidente chinês
O rosto da operacional, sujeita a um permanente desgaste, mantém-se indecifrável como se fosse perita no disfarce de emoções. E esta ‘guerra’, como ela e os colegas do CSP se referem a uma operação, não tem nem de longe nem de perto a envergadura de outras batalhas. Os americanos, por exemplo, vivem na constante paranoia de um atentado. Nas visitas de Estado, chegam a trazer porta-aviões (Bill Clinton e Barack Obama são dois exemplos): atracados ao largo do Tejo, estes navios de guerra têm de tudo, desde armamento a veículos blindados, telecomunicações e até hambúrgueres.
Há três meses, durante a visita de Xi Jinping a Portugal, Catarina estava no papel de comandante operacional do destacamento de segurança da mulher do Presidente chinês, onde tudo fiava mais fino. Para a grande nação do Reino do Meio, que já se proclama uma superpotência, a demonstração dos meios de segurança que envolvem um chefe do Estado é também um exercício de poder. As negociações entre os dois comandantes do CSP português e chinês subiram de tom à conta da quantidade das exigências colocadas pelos visitantes: «A força política de um Estado vê-se muito nestes momentos. Fazem uma série de imposições que têm de ser negociadas. Por exemplo: ninguém pode entrar no país com o armamento que bem entender.»
Dois milhões de euros foi quanto Xi Jinping despendeu para ter o histórico Hotel Ritz por sua conta, sem contar com as obras de alargamento da porta da garagem do hotel para que as três limusines blindadas em que costuma deslocar-se conseguissem entrar. O mesmo aconteceu com o portão da saída de emergência do aeroporto Humberto Delgado. Desde o assassinato de Júlio César, toda a prudência é pouca. Nos dois aviões que trouxeram a comitiva e a segurança do Presidente havia de tudo. Desde roupa de cama, atoalhados, a bens alimentares para serem usados pelo cozinheiro pessoal de Xi Jinping.
Kersti Kaljulaid, Presidente de uma pequena nação, não colocou imposições. Tem uma agenda curta. Quando partiu, no dia seguinte, terá sido acompanhada pelas manifestações de boa vontade e afeto que fazem parte das boas maneiras políticas – e pouco mais. Catarina já estará pronta para outra. Para a operacional, todas as operações se resumem a uma curta frase: «A missão só corre bem quando ninguém dá por isso».