Há demasiados homens da política envolvidos nas querelas do futebol e a ‘botar faladura’ naqueles programas ditos desportivos, em que pessoas que até nos habituámos a ver de fato e gravata, cheias de falinhas mansas e polimento, viram bichos e perdem as estribeiras no calor da discussão sobre aquele golo que não devia ter sido validado ou anulado, sobre aquele lance que deu um cartão de uma cor e devia ter sido de outra, sobre o VAR que tinha obrigação de ter visto o que o árbitro não viu.
Não sei se eles já nem se dão conta das figuras que ali fazem ou se são mesmo pagos para fazer aquelas figuras.
A verdade é que até aquele que, há anos, era o troglodita mor desses programas de rescaldo das jornadas futebolísticas resiste ainda num dos inúmeros programas derivados daqueles e já passa como um dos mais toleráveis e tolerantes comentadores.
Porque em matéria de debates sobre o futebol, parece que quanto pior melhor.
Há programas em que os ditos comentadores – incluindo jornalistas que têm dever deontológico de isenção e distanciamento – são do piorio na cegueira clubística e na argumentação, ‘encartilhada’ ou não.
Já chega ou basta de tanto programa de ‘clubite’ aguda e cega. Mas, a avaliar pelas horas e horas que todos os dias as televisões continuam a dedicar a esses programas com tais comentadores, pelos vistos não.
Por isso, é ainda mais extraordinário que tenha sido um homem do futebol a ter vindo dizer que é preciso respeitar os nossos adversários e aprender a reconhecer-lhes o mérito quando ganham se queremos que eles reconheçam o nosso quando somos nós a ganhar.
No momento de celebrar o título de campeão acabado de conquistar e de euforia coletiva, com milhares e milhares de pessoas em delírio a cobrirem de vermelho o Marquês de Pombal e seus principais acessos, é preciso grandeza para dizer aos sócios que o futebol está longe de ser o mais importante das suas vidas e da vida em sociedade.
Sim, porque não é usual, num momento como aquele, falar-lhes de uma cultura de «exigência», e dizer-lhes que tal como adeptos que são e a têm no que se refere ao futebol e ao seu clube, aos seus jogadores, aos seus treinadores e dirigentes, também e sobretudo a devem ter enquanto cidadãos, na sua vida em sociedade, em relação à Economia, à Educação, à Saúde… por um país melhor, porque é possível fazer melhor e «reconquistar os valores de Portugal».
É inusual.
Tão inusual que até parece que o apelo político de Lage desagradou tanto aos políticos como o seu fair play obviamente não agradou aos fanáticos do futebol.
No momento da festa benfiquista, o que tem ele de falar em reconhecer mérito aos adversários quando forem eles a ganhar? Está louco? E despede-se a dar ‘Vivas a Portugal’ quando o que interessa ali, naquele momento, é a ‘nação benfiquista’?
Do que publicamente ouvi aos políticos, mesmo àqueles que não resistem a dar ‘bitaites’ sobre a bola, nenhum verdadeiramente elogiou a intervenção de Bruno Lage: o que tem ele de misturar as coisas e ir para ali falar de política. Um populista. É preciso lata. Só faltou dizer que este tipo de discurso no desporto é um perigo para a democracia.
Os políticos utilizarem o futebol para fazerem política não tem mal nenhum, mas já é um problema se um desportista ousar imiscuir-se na política, sobretudo realçando que, sendo bonito ver compromisso entre adeptos e a sua equipa, o compromisso primeiro deve ser com o que é mais importante para a sociedade e para o país.
Nos últimos dias, e mesmo sabendo que as duas últimas semanas foram de campanha eleitoral para o Parlamento Europeu, o discurso de Lage no Marquês foi talvez o que teve mais substância política.
Aliás, para amanhã, o apelo político do treinador do Benfica foi muito mais impactante e importante do que aquela quase despercebida campanha de propaganda de apelo ao voto em que o Governo investiu mais de 500 mil euros.
Já agora, e a talhe de foice, os políticos em geral, bem como os editores e a generalidade dos jornalistas, passam a vida a falar da crise da imprensa, da necessidade de se estudarem formas alternativas de aumentar as receitas dos jornais, da obrigação de o Estado começar a pensar em criar subsídios específicos para o setor.
Subsídios para quê? Em vez de falarem e nada fazerem, melhor não seria que dessa campanha publicitária de 500 mil euros uma parte fosse investida em publicidade nos jornais? Não seria mais eficaz a todos os níveis?
Ao que parece, não.
E, porém, os jornais, para bem servirem os seus leitores, fazem notícias e propagam a informação sobre o que vai mudar nos cadernos eleitorais e nas mesas de voto e o que devem fazer os eleitores. No mero cumprimento do dever de informar. A troco de nada. Enfim…
Se ninguém valoriza o que de pedagógico teve o discurso de Lage, se poucos querem mesmo ter um futebol saudável, com menos fanatismos e economicamente muito mais rentável, se a cultura da exigência e de mérito na vida social e política como no futebol é quase uma negação, por que razão a coerência haverá de vingar?
Podemos lá nós dispensar uma boa zaragata, nem que seja por causa de um apito, ou deixar de ter motivos para as queixas do costume ou, simplesmente, para dizer mal do próximo, do mundo e da vida…