Niki Lauda. O piloto que desafiou o fogo cruzou a última meta

Foi contra a vontade da família para perseguir o sonho de correr na Fórmula 1. Chegou ao topo do mundo e viu depois o inferno, mas sobreviveu para contar a história – ou, mais que isso, para a reescrever. Aos 70 anos, despediu-se da vida, deixandoum legado inquestionável no mundo dos desportos motorizados.

Dos mais antigos aos mais jovens, dificilmente haverá aficionado dos desportos motorizados que não conheça pelo menos o nome. Ao ver a cara, tem o primeiro vislumbre da lenda: ali estão cravadas as marcas de ‘guerra’, as cicatrizes de quem enfrentou a morte pelo amor a uma arte e que sobreviveu para contar a história. Ou, no seu caso, para a reescrever e melhorar.

Niki Lauda era uma das personagens mais queridas e respeitadas no mundo do desporto motorizado. O que não invalida que fosse polémico e desbocado: sempre fez ouvir a sua voz em qualquer tema relacionado com a Fórmula 1, ainda que a opinião não correspondesse à dos demais. Lá está: trazia consigo a aura de quem sabia do que falava. As cicatrizes – e os três títulos mundiais, dois pela Ferrari e outra pela McLaren (único na história a ganhar pelas duas) – conferiam-lhe esse estatuto.

Nascido Andreas Nikolaus Lauda a 22 de fevereiro de 1949, em Viena, estava destinado a ser um magnata da indústria de transformação de papel. Mas logo na juventude deixaria bem vincada a personalidade forte e irreverente: aos 22 anos, e contra a vontade da abastada família, pediu um empréstimo ao banco e comprou a entrada na modesta escuderia britânica March. Estávamos em 1971: começava aí a carreira de piloto (então na Fórmula 2) de Niki Lauda.

UMA HISTÓRIA DIGNA DE HOLLYWOOD

Dois anos depois fez exatamente o mesmo ao mudar para a BRM, onde correu ao lado de Clay Regazzoni. Quando se transferiu para a Ferrari, o suíço foi indagado pelo mítico Enzo Ferrari sobre as qualidades do irrequieto jovem Lauda. A resposta foi tão positiva que o fundador da escuderia italiana se apressou a avançar para a contratação do austríaco.

Rapidamente se percebeu que a aposta Ferrari era acertada. Niki Lauda terminou em segundo logo na primeira corrida, vencendo pela primeira vez um Grande Prémio três corridas depois (o primeiro da Ferrari em dois anos). No fim da temporada, quarto lugar; no fim da seguinte, o título mundial em 1975, o primeiro para a escuderia italiana no espaço de uma década.

Nos primeiros meses de 1976, a mesma coisa: já ninguém punha em causa o bicampeonato. Até que chegou o dia 1 de agosto, e com ele o GP da Alemanha. Na semana que antecedeu a corrida, Lauda já tinha apelado ao boicote à corrida, apontando falhas graves de segurança à organização do circuito – entre as quais falta de bombeiros e equipamento anti-incêndios. A maioria dos pilotos, todavia, votou contra, pelo que a corrida aconteceu mesmo.

O resto é história, que ficou perfeitamente documentada no filme Rush, realizado em 2013 por Ron Howard e tendo por base a rivalidade intensa entre Lauda e o britânico James Hunt. Logo na segunda volta, o Ferrari de Lauda derrapou numa das curvas do circuito de Nurburgring e irrompeu imediatamente em chamas após embater numa das divisórias, sendo ainda abalroado pelo Surtees de Brett Lunger. Quando finalmente Arturo Merzario, piloto da Wolf-Williams, conseguiu tirar Lauda do carro, já o austríaco tinha sofrido queimaduras de grau 3 em grande parte da cabeça e inalado uma quantidade imensa de fumo tóxico – o que lhe causaria danos severos nos pulmões.

Niki Lauda esteve sempre consciente durante o acidente. Já no hospital, porém, passou um breve período em coma, com a família a chamar inclusive um padre que lhe deu a extrema-unção. Temeu-se pela sua vida, e praticamente ninguém acreditava no regresso às pistas. Nada mais errado: apenas seis semanas depois, Lauda apresentou-se em conferência de imprensa, com pensos e ligaduras a cobrir os muitos ferimentos (além das cicatrizes, ficou sem cabelo no lado direito da cabeça, perdendo ainda a maioria da orelha, as sobrancelhas e as pestanas), e anunciou o regresso às pistas.

Nesse mesmo Mundial, de resto, esteve a lutar até à última com Hunt pelo título. Título do qual abdicou ao desistir na última corrida, no GP do Japão, num dia de autêntico dilúvio. «A minha vida vale mais que qualquer título», disse então, acabando em segundo, apenas a um ponto do rival. Mas o estatuto de vice não durou muito: logo no ano seguinte, alcançou o segundo título mundial, saindo em 1978 para a britânica Brabham.

Além dos carros, também os aviões o apaixonavam – tinha licença de piloto comercial. Por essa razão, fundou a companhia aérea Lauda Air (e mais tarde a low-cost Niki), para a qual se tencionava dedicar a 100 por cento quando, em 1979, anunciou o adeus à Fórmula 1. Voltaria três anos depois, seduzido por um cheque com muitos zeros da McLaren, e em 1984 saboreou a glória pela última vez, curiosamente em Portugal (GP do Estoril), batendo o companheiro Alain Prost por meio ponto.

Despediu-se definitivamente em 1985, embora voltasse como consultor em 1993 (Ferrari), 2001 (Jaguar) e 2012 (Mercedes, de quem era ainda agora o presidente não executivo. «Para sempre nos nossos corações, para sempre imortalizado na nossa história. A comunidade motorizada chora a devastadora perda de uma verdadeira lenda», escreveu a organização da Fórmula 1 nas redes sociais, após a família dar conhecimento do seu falecimento, na noite da última segunda-feira, vítima de falência renal.