José Miguel Júdice dizia um dia destes na SIC que estava disposto a devolver a condecoração que recebeu – a Ordem do Infante D. Henrique – se Joe Berardo não fosse ‘descondecorado’. «Não quero fazer parte de uma Ordem muito prestigiada em que tenho como companheiro de caminho o senhor Joe Berardo. Não tenho pessoalmente nada contra ele, mas não me apetece» – disse Júdice.
Por um lado, percebo-o. Mas se ele pensasse mais um bocadinho veria que a ideia de devolver uma condecoração por não gostar dos ‘companheiros de caminho’ não faz nenhum sentido. Se fôssemos por aí, nunca mais acabávamos. Aliás, em coerência, Júdice deveria ter começado por não aceitar a condecoração, pois muita gente condecorada antes dele já se revelara pouco recomendável.
Mas indo mais longe, o que fazer das condecorações atribuídas noutros regimes? Os militares condecorados por ações de combate numa guerra colonial hoje considerada ‘criminosa’ devem ou não ser descondecorados?
Os próceres do Estado Novo, hoje classificado como ‘fascista’, desde Henrique Tenreiro a Supico Pinto ou Soares da Fonseca, devem manter ou não as condecorações?
E o próprio Salazar? Deveria ser descondecorado ou não? Curiosamente, era a única figura do Estado que nunca usava as condecorações nas cerimónias oficiais.
Se vamos pelo caminho das descondecorações, nunca mais paramos. No século XIX, em que se distribuíam comendas a esmo, ironizava-se: «Foge cão, que te fazem barão». E o animal respondia: «Para onde, se me fazem visconde?». Marcelo Rebelo de Sousa segue esta tradição de condecorar toda a gente – quase correndo atrás deles para não poderem fugir – e as condecorações são tantas que é quase impossível alguns dos distinguidos não virem a fazer alguma coisa que obrigará a descondecorá-los um dia mais tarde.
Bem fez o meu pai, que recusou uma condecoração que lhe foi atribuída no tempo de Ramalho Eanes. Embora tivesse consideração pelo então Presidente da República, escreveu-lhe uma carta a rejeitar a comenda com base na seguinte argumentação: no tempo da Monarquia havia uma casta superior, a nobreza, que se distinguia do povo pelos seus títulos nobiliárquicos. Ora – dizia ele -, não faz sentido que a república, que derrubou a monarquia exatamente para acabar com essa divisão na sociedade, crie uma nova casta de gente ‘superior’.
Sensível a este argumento, eu próprio decidi tomar a mesma atitude caso fosse condecorado. Por sorte, isso não aconteceu. Apesar de ter estado durante 23 anos à frente do maior jornal português e de ter fundado outro jornal que teve um papel decisivo na denúncia de escândalos que abalaram profundamente o regime, consegui não ser distinguido. Foram condecoradas várias pessoas que trabalharam comigo e até da minha direção, mas eu escapei. E assim me livrei de ter de recusar a comenda.
Um dia, falando com uma pessoa ligada as ordens honoríficas, perguntei qual era o critério para se ser condecorado. A resposta foi rápida: «Não é nenhum». E depois acrescentou: «É ser amigo do Presidente da República ou de alguém influente que faça a proposta».
De qualquer modo, deveria haver um critério mínimo. As condecorações do Estado não deviam resultar da maior ou menor simpatia do Presidente da República em funções ou dos seus amigos.
Mas o mais fácil seria mesmo acabar com as condecorações. Se acabassem, todas estas complicações desapareceriam. Para lá de as comendas não servirem para nada, geram situações aborrecidas como esta de Berardo. Que, convenhamos, também não é nada linear. Com que critério lhe tirarão a condecoração? Por dever dinheiro à banca? Por ter dito coisas inconvenientes aos deputados? A conservação das comendas passa a depender do que uma pessoa diz e não diz?
Repito: o mais fácil é acabar com as condecorações. Poupa-se tempo, poupa-se dinheiro e poupam-se chatices!