Agustina e a escrita

Uma prosa que faz lembrar o barroco nortenho, presente na Torre dos Clérigos. Por vezes excessiva mas sempre brilhante

Há uns três anos, a minha secretária de então recebeu um inesperado telefonema: a filha de Agustina Bessa-Luís pedia um encontro comigo para me convidar a fazer o prefácio de um livro da mãe.

Pensei que seria um engano, uma confusão. Não sou crítico literário e nunca tinha escrito uma linha sobre Agustina Bessa-Luís! No encontro que tive depois com Mónica Baldaque, e com a filha Lourença, neta de Agustina, soube que não era confusão nem engano – era mesmo a mim que queriam. A  sugestão partira do marido da escritora, Alberto Luís, com quem ela casou através de um anúncio de um jornal e que se mostrou sempre um companheiro fiel e um extraordinário ‘ajudante’, lendo os textos, discutindo-os, fazendo sugestões e suportando o ‘mau génio’ da mulher nesses momentos criativos.

O prefácio destinava-se à compilação dos textos jornalísticos de Agustina, que Lourença estava a preparar.

Aceitei o convite com orgulho – mas também com medo. Desde miúdo habituei-me a ouvir o meu pai dizer que Agustina Bessa-Luís era uma escritora genial, de dimensão universal. Prefaciar um livro seu, ficar ligado às suas prosas prodigiosas, era uma responsabilidade tremenda.

Na imprensa portuguesa, Agustina Bessa-Luís escreveu durante 55 anos – entre 1951 e 2006 -, em numerosíssimas publicações.

Se os jornais fossem homens, Agustina teria tido um namoro antes de casar, quatro casamentos, dois amantes e inúmeros flirts. 

O primeiro namoro a sério foi com o Diário do Norte, onde publicou os primeiros textos, com 29 anos. 

Os casamentos, depois, foram sucessivamente com o Diário Popular, o Jornal de Letras, O Primeiro de Janeiro (do qual foi diretora) e o Diário de Notícias.

Para além disso, teve uma relação séria com O Independente, já muito depois do 25 de Abril, e flirts com o Jornal Novo, O Comércio do Porto, a Grande Reportagem, O Liberal, a revista Factos e o Jornal de Notícias – o mais importante jornal do Norte mas onde só publicou 7 textos (e, mesmo assim, na fase final da sua vida literária).

Colaborou ainda esporadicamente na revista K, no Semanário, n’ O Jornal, n’ A Tribuna (Macau), no Expresso, no Jornal do Comércio, na Colóquio Letras… 

Como se vê, foi uma vida cheia, agitada e muito conturbada.

Agustina escrevia do mesmo modo nas páginas de jornal e nas páginas dos livros. 

Enquanto os colunistas da imprensa usam a escrita para emitir opiniões, Agustina fazia exatamente o contrário: usava as opiniões como pretextos para escrever. Como oportunidades para exercitar a sua prodigiosa veia literária. A escrita de Agustina, o seu estilo luxuriante, acabava sempre por se sobrepor ao género, ao local e ao tema. Tudo para ela se transformava em prosa: uma prosa rica, exuberante, complexa, arrevesada, mas ao mesmo tempo límpida, bela e poderosa.

Uma prosa que faz lembrar o barroco nortenho, presente na Torre dos Clérigos. Por vezes excessiva mas sempre brilhante. Com peso, mas que parece sair-lhe com surpreendente ligeireza da ponta da caneta. 

Grandes escritores como Eça, Cardoso Pires ou Saramago sofriam muito a escrever. Em Agustina, pelo contrário, a escrita parecia fluir espontaneamente. Como se brotasse de uma fonte, em que a água é sempre nova. Mesmo as frases complexas, rebuscadas, carregadas de intencionalidade ou de malícia, pareciam não implicar da sua parte qualquer esforço. 

 

Na imprensa, Agustina publicou contos, crónicas de viagem, críticas literárias e de cinema, textos históricos, pequenas biografias, pequenos ensaios, obituários e epitáfios. 

Nos textos políticos era onde se mostrava mais desconfortável. Agustina  não gostava de escrever sobre política. Antes do 25 de Abril não se meteu no assunto. E, depois, o seu conservadorismo não se adequou aos excessos do período revolucionário. «A fase revolucionária não é bela porque permite que a estupidez se generalize como um contra-ponto da dignidade humana», sentenciou.

Pese embora o seu aparente desinteresse pelo efémero, Agustina escreveu nos jornais inesperados textos sobre episódios menores, como um artigo sobre Cicciolina, que na visita ao Parlamento português mostrou os seios a partir da galeria. Ou um texto sobre um jogo de futebol entre as seleções de França e Portugal, em que um penálti nos últimos minutos ditou o afastamento da seleção portuguesa do Campeonato Europeu. 

E a par disso manifestou-se, evidentemente, sobre grandes temas de atualidade, como o brutal processo de mudança então em curso na União Soviética: «É possível que Gorbatchev seja um déspota que começa como esclarecido e pode acabar na ditadura pessoal, justificado por uma variedade infinita de realidades diferentes, como o próprio Deus». 

Na vida de Agustina, há dois temas centrais.  O primeiro é a relação com o universo das mulheres. 

Quando fala de mulheres, Agustina mostra uma aversão telúrica ao feminismo convencional. Ela acha que as mulheres são diferentes – e por isso está contra a igualização dos sexos, sobretudo quando a igualdade das mulheres é obtida através da imitação dos homens. Disse em certa ocasião: «Não creio que a mulher se torne igual ao homem. Não creio que o pudor a abandone. Há, sem dúvida, hábitos que degradam a sensibilidade». E numa deliciosa observação sobre a personalidade feminina: «As mulheres não falam, fazem conversa». 

O segundo é a relação com o Norte e a cidade do Porto. 

Os seus textos estão impregnados desse espírito, dessa luz, desses ambientes, dessas pessoas. A burguesia do Porto, da qual provém, limitou-a mas ao mesmo tempo forneceu-lhe a base e a matéria que lhe permitiu tornar-se universal. O Porto foi para ela um condicionamento e um trampolim. A partir do Porto projetou-se no mundo. 

Para terminar, deixo ao leitor este extrato de um texto seu, adequado a um final em glória:

«Quando Dominguín entrou na arena, disse: ‘Eles vão-me matar’. Consumava-se o presságio que há muito trazia escrito no rosto severo, de Semana Santa. De resto, a entrada da quadrilha numa praça de touros tem qualquer coisa daquela procissão nas ruas de Sevilha. O lento choque dos bordões nas pedras é como a parada mortal dos estoques. A mesma cadência, o mesmo luxo, o mesmo ritual erótico. A corrida é uma festa de morte. A mais sincera, a mais inquietante por isso mesmo».