Cuidados continuados perdem enfermeiros

Associação Nacional de Cuidados Continuados acusa o Governo de contratar serviços abaixo do custo e de não ter antecipado impacto do regresso às 35 horas no setor social. Saídas de enfermeiros agravam dificuldades e deixam unidades à beira da rutura, alerta.  

Cuidados continuados perdem enfermeiros

Há enfermeiros a assegurar turnos de 16 horas e a trabalhar dez dias seguidos para manter em funcionamento unidades de cuidados continuados, para onde são encaminhados pelo Estado os doentes que precisam de cuidados de convalescença de média e longa duração. O alerta é da Associação Nacional de Cuidados Continuados, que acusa o Governo de não ter antecipado o impacto do regresso às 35 horas na função pública – e do consequente reforço na contratação no Serviço Nacional de Saúde –  no setor social, o que está a deixar as unidades sem profissionais e sem alternativas. 

«Houve uma reposição dos rendimentos, a criação da carreira de especialista e um reforço da contratação por parte do SNS com o regresso às 35 horas. Voltou a haver a ideia, que é real, que a função pública tem melhores condições que o privado e o setor social em particular. Como o Estado nos paga abaixo do preço de custo, aliás como paga aos lares de idosos, creches e apoio à deficiência, as unidades de cuidados continuados não têm capacidade financeira para pagar melhor e as pessoas perante as oferta acabam por sair. No setor social têm 40 horas de trabalho e ganham menos», diz José Bourdain, presidente da associação que representa unidades responsáveis por 1496 das 8680 das camas integradas na Rede Nacional de Cuidados Continuados (RNCCI), a maioria sem fins lucrativos.

À associação têm chegado diferentes relatos de incapacidade para garantir as equipas completas de acordo com os rácios definidos por lei e de recrutamentos que ficam sem resposta. «É insustentável e põe em causa a qualidade. Há doentes que ficam sem tomar banho, porque é preciso garantir primeiro o mais emergente, a colocação de sondas, a medicação», exemplifica Boudain, responsável pela cooperativa Cercitop. «Não conseguimos contratar, porque além do aumento das contratações para o Estado, continua a assistir-se a uma grande emigração de enfermeiros que encontram melhores remunerações e condições de trabalho lá fora. Não há enfermeiros». 

Sem estimativas do número de profissionais em falta, não só enfermeiros mas também auxiliares, José Bourdain fala de um momento «inédito» em termos de dificuldades de contratação, que deveria levar o Estado a incentivar e facilitar a imigração em algumas áreas qualificadas. E admite que algumas unidades, já a braços com dificuldades financeiras, correm o risco de encerrar, sublinhando que esse é o problema de fundo por resolver no setor. 

As críticas ao modelo de financiamento das unidades de cuidados continuados, que o Estado convenciona com o setor privado e social, não são de agora: a associação continua a reivindicar pagamentos retroativos acordados com o Estado em 2017, considerando que existe uma dívida de 6 milhões de euros por parte do Ministério da Saúde e da Segurança Social. Este ano, o Governo reviu as tabelas de comparticipação das diárias de internamento nas unidades de cuidados continuados, mas a associação defende que os valores  continuam abaixo dos custos dos internamentos. «Só foram aumentados depois de uma providência cautelar e continuam sem cobrir os custos», diz Bourdain, que estima que para financiar o setor «a preços justos» seriam necessários 28 milhões de euros por ano. «É uma questão de escolhas. O Governo baixou o IVA da restauração e perdeu  385,3 milhões de euros em receitas. Chegava e sobrava para financiar os cuidados continuados e ainda abrir mais camas».

A portaria n.º17/2019, publicada no início do ano, estabeleceu uma diária de internamento de 109,09 euros/dia por utente em unidades de convalescença e unidades de cuidados paliativos, 90,57 euros em unidades de média duração e reabilitação e 62,25 euros em unidades de longa duração e manutenção. Segundo a associação, o custo médio das associadas com os utentes é apenas coberto no caso das unidades de cuidados paliativos e convalescença, com algumas unidades de média duração e longa duração a acumularem prejuízos na casa dos milhares de euros. «Se o Estado não paga o suficiente para o serviço que quer, mais tarde ou mais cedo vão começar a fechar unidades. É um setor à beira da rutura.  O Estado pode pensar que tratando-se de unidades sem fins lucrativos, não tem de pagar mais. Mas qualquer entidade, quer tenha ou não fins lucrativos, tem de ter dinheiro para no final do mês pagar salários, medicamentos, água e luz» 

A crítica às comparticipações do Estado é acompanhada por Manuel Lemos, presidente da União das Misericórdias Portuguesas, responsáveis por metade das camas da RNCCI. Questionado sobre o SOL sobre se sentem também uma saída de enfermeiros como reflexo do regresso às 35 horas, o responsável diz que a medida teve impacto nas misericórdias de algumas zonas do país, mas não é algo homogéneo. Já as dificuldades financeiras são: «Por isso temos vindo a reclamar um aumento das comparticipações, para podermos pagar mais aos profissionais e garantir um funcionamento com qualidade». Num estudo apresentado no ano passado com base no funcionamento de 11 unidades de cuidados de longa duração e manutenção de Misericórdias provenientes do Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve, concluíram que o financiamento do Estado, na altura de 60,19 euros, não cobria os custos diários.

IPSS com prejuízo mensal de 11 mil euros

A Unidade de Longa Duração e Manutenção da Casa da Criança do Rogil, em Aljezur, é uma das associadas da Associação Nacional de Cuidados Continuados que admite estar a passar uma situação financeira que torna «inviável» manter o funcionamento. Recebem 30 utentes e são uma das três unidades desta tipologia no barlavento Algarvio. Astregildo Regino, presidente desta Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), diz  ao SOL que o recrutamento de profissionais está cada vez mais díficil, com saídas ao fim de poucos meses para o privado, SNS ou para fora do país, o que acaba por agravar o problema financeiro. «Funcionamos 24 horas por dia e é muito complicado ter equipas para fazer turnos de sete horas. Acabamos por ter de recorrer a mais horas extraordinárias, o que agrava a situação financeira», explica. 

A unidade tem um prejuízo mensal na casa dos 11 mil euros. «Temos mais profissionais do que utentes, além de que as despesas não são todas comparticipadas. Para a medicação, a comparticipação é de 10 euros por doente/dia, quando há utentes a fazer medicação que custa 60 euros». A associação defende que uma diária de 75 euros por dia nesta tipologia permitiria manter as contas equilibradas, um valor a que não chegou a acordo com o Governo.

O SOL tentou perceber junto do Ministério da Saúde se há conhecimento de unidades em vias de encerrar e como reage às críticas do setor, mas não obteve resposta. Esta semana, o Ministério da Saúde revelou que entre o ano passado e este foram contratados cerca de 2850 profissionais para suprir as necessidades com o regresso às 35 horas. Desde 2015 houve um reforço de 4692 enfermeiros no SNS.