O lixo que fazemos que vai ter tudo, e acabará por ser a grande herança que esta época deixará às que se seguirem. Esse crédito que vamos pedindo e que nos cobra juros cada vez mais altos. Como escreveu faz já umas décadas um poeta português: «Esta é uma humanidade em trânsito inconsequente com o seu pecado original». É Manuel de Castro quem escreve num texto a propósito das escolhas corajosas a que uma existência plena obriga, que «não é impunemente que se escolhe a vida». E, esta semana, Philip Alston, um especialista das Nações Unidas nas questões de pobreza extrema e direitos humanos, apresentou um relatório alarmante sobre a questão dos impactos do aquecimento global, defendendo que, a menos que haja medidas drásticas para aplacar esta crise, os últimos 50 anos de progresso em termos de desenvolvimento, saúde global e redução da pobreza se irão perder. Alston estima que 75% dos custos da crise climática serão suportados pela metade mais pobre da população mundial, que é responsável por apenas 10% das emissões de dióxido de carbono emitidas para atmosfera. Alston alerta que as divisões, o fosso entre ricos e pobres se fará sentir de forma muito mais dramática, e que, nas próximas décadas «arriscamos ficar perante um cenário de ‘apartheid climático, em que os ricos pagam para escapar aos efeitos das ondas de calor, da fome dos conflitos, enquanto o resto do mundo fica à mercê, e sofre».
Mesmo esteticamente, como alertou o arquiteto Rem Koolhaas, mesmo na forma como construímos e habitamos o território, há algumas décadas já que se percebe como «o espaço-lixo é a soma total do nosso êxito atual». Para lá do desperdício, dos resíduos persistentes desta economia consumista, «no período e no episódio medíocres decorrentes», como nota Castro, impõem-se a necessidade de rever o processo da nossa herança. Pois, como nos diz Koolhaas, «construímos mais do que todas as gerações anteriores juntas, mas de certo modo não nos registamos nas mesmas escalas. Nós não deixamos pirâmides. De acordo com o novo Evangelho da fealdade, há já mais espaço-lixo em construção no século XXI do que o que sobreviveu no século XX…». E isto foi escrito na primeira década deste século.
Ora, o perigo é que tenhamos de enterrar o lixo no lugar do homem. Exemplo deste massacre global que está a ser levado a cabo pelas toneladas de lixo que produzimos diariamente é o que está a passar-se na Ásia. No ano passado, a Indonésia quebrou o recorde de uma década ao importar um total de 283 mil toneladas de plástico, de acordo com dados da Agência Nacional de Estatísticas. Tratou-se de um aumento de 141% e que se ficou a dever à decisão tomada pela China, em janeiro de 2018, de não aceitar mais resíduos plásticos do resto do mundo, numa medida para conter a degradação ambiental e os níveis de poluição que assolam o país. Até então, a China era responsável por processar mais de metade do lixo do mundo.
Depois de Pequim ter forçado as corporações ocidentais, que não têm capacidade de reciclar o lixo que produzem, a encontrarem novos «mercados» na Ásia para esta exportação, a situação degradou-se nos países à volta, e piorou ainda mais quando a Índia resolveu seguir o exemplo da China, proibindo a importação de resíduos sólidos de plástico. Logo se gerou uma situação de emergência, com as tantas entidades industriais que operam nos EUA, Europa e Austrália a terem de recorrer às nações mais pobres da Ásia para despacharem essa «fuligem» dos nossos sonhos, do nosso ostentoso bem-estar, de um nível de consumo e, sobretudo, de desperdício, que fará as gerações futuras encarar-nos entre a incredulidade e a o nojo. Países como a Malásia, Tailândia, Vietname e Filipinas eram aqueles que se seguiam na lista como os destinos mais viáveis para esse constante fluxo de detritos, o lixo que os países ricos lançam sobre os mais pobres, e que, na sua larga maioria fica por processar e reciclar, acabando em aterros, nos rios e nos mares, espalhando-se por todo o mundo, nesse «monumento sujo/ de nossa grandeza» (Lêdo Ivo).
Como resultado desta política da batata quente, toneladas de lixo têm saído em cargueiros atolados nas costas das grandes economias e a ser despejados em países que arriscam tornar-se grandes lixeiras do mundo desenvolvido. Só que, finalmente, também os Governos destas nações pobres começaram a reagir, criando dificuldades à importação destes resíduos ou mesmo proibindo-a de todo, como é o caso da Tailândia. Por sua vez, a Malásia e as Filipinas estão a devolver vários carregamentos às suas origens.
Entretanto, na Indonésia, a ilha de Bali tornou-se no último domingo na primeira província do país a banir oficialmente todos os plásticos de utilização única, como os sacos, as palhinhas ou os talheres descartáveis.
De acordo com a associação The Bali Partnership, apenas 48% do lixo que se produzia na ilha era reciclado ou acabava num aterro, e o resto desgraçava aquele paraíso. A cada ano, eram mais de 33 mil toneladas de plástico que acabava no oceano. Assim, a ilha foi adiante numa iniciativa que deverá alastrar-se ao resto do país, e isto porque é uma das regiões que tem mais a perder com esta avalanche de resíduos. Mais de 16 milhões de turistas visitam a ilha todos os anos, dos quais 6,5 milhões chegam do estrangeiro. Por essa razão, as autoridades de Bali comprometeram-se a reduzir os plásticos lançados no oceano em 70% até 2025. E para levar a cabo este propósito, a ilha está a estudar a possibilidade de implementar um imposto ambiental de 10 dólares (8,80 euros) aos turistas estrangeiros que visitam a ilha.
Se Bali tem todos os motivos para precaver, mais tarde ou mais cedo toda Indonésia deverá seguir-lhe o exemplo, o que terá certamente um impacto global uma vez que, depois da China, esta nação é o segundo maior poluidor do mundo em termos de plásticos, contribuindo todos os anos para que mais 200 mil toneladas destes resíduos acabem nos oceanos. Até lá, continuaremos a reproduzir os sinais desta imensa «festa indigesta», para que os vindouros um dia não apenas sofram a devastação mas ainda refocilem nestes dejetos que provam o quão nas tintas nos estávamos para eles.