A Índia está a “jogar um jogo perigoso” na Caxemira

A Índia revogou a autonomia do estado de Jamu e Caxemira, numa região disputada pelo Paquistão e dividida entre muçulmanos e hindus. Modi já mandou prender os líderes locais e enviou mais tropas para a região. 

“A Índia está a jogar um jogo perigoso que terá consequências sérias para a paz e estabilidade regional”, alertou o ministro dos Negócios Estrangeiros do Paquistão. Shah Mehmood Qureshi referia-se à decisão do Governo indiano de Narendra Modi de revogar o artigo 370 da Constituição, que garante a autonomia do estado indiano de Jamu e Caxemira, disputado entre o Paquistão e a Índia desde a partição do subcontinente, em 1947. O assunto provocou duas guerras entre os dois países – que agora têm um arsenal nuclear. Ainda em março, aeronaves paquistanesas e indianas enfrentaram-se nos céus numa das regiões mais militarizadas do mundo, onde disparos de artilharia através da fronteira fazem parte do dia-a-dia.

“Quando as pessoas saem à rua vêm forças paramilitares em todas as ruas. Quase todas as principais estradas estão encerradas. Ouvimos que mais tropas estão a ser enviadas para o terreno”, escreveu este domingo a enviada da BBC à Caxemira indiana, Aamir Peerzada, a partir da cidade de Srinagar, perto da fronteira. “Os habitantes de Caxemira sempre estiveram dispostos a defender o estatuto especial do estado”, salientou. O Governo indiano parece contar com isso, dado que enviou 10 mil tropas para o estado, ainda na semana passada. Prevê-se que ainda mais sejam enviados, para reforçar os mais de 700 mil soldados indianos estacionados na região. 

Além disso, no dia anterior a acabar com a autonomia de Jammu e Caxemira, o Governo indiano lançou um alerta devido a possíveis ataques à bomba. Algo que levou à fuga de milhares de peregrinos hindus, que faziam a sua peregrinação anual ao vale himalaio. “O exército paquistanês está desesperado para perturbar o vale”, acusou o comandante das forças indianas na região, Sarabjit Dhillon. Já o Presidente paquistanês, Imran Khan, acusou a manobra indiana de arriscar "destruir a segurança e paz regional" e "deteriorar as relações entre vizinhos com capacidade nuclear". Em março, foi Khan que deu o primeiro passo para resolver a escalada das tensões, mostrando boa vontade ao libertar um piloto indiano, após o caça em que seguia ser abatido sobre o Paquistão. Agora, até se mostrou disponível para aceitar a mediação do Presidente norte-americano, Donald Trump.    

Note-se que as principais divisões entre a população de Jammu e Caxemira são sobretudo religiosas. De um lado os hindus, tendencialmente próximos de Nova Deli. Por outro, a população sunita, boa parte da qual quer independência ou integração no vizinho Paquistão, de maioria sunita. E, por fim, os xiitas, que historicamente têm sido uma força tampão, compondo parte substâncial das forças de segurança no estado, dada a sua desconfiança quanto ao Paquistão. 

 

Progresso? A justificação dada pelo Governo, dos nacionalistas hindus do Partido do Povo Indiano (BJP), foi que a autonomia atrasa o desenvolvimento de Caxemira. “O artigo 370 garante que não há nenhum modelo de parcerias público-privadas, nenhum investimento privado no estado”, afirmou o ministro do Interior, Amit Shah – que recebeu elogios e um ramo de flores de Modi após o discurso. Shah referiu-se à região Caxemira como "a jóia da coroa da Índia", pelos seus extensos recursos naturais – que o Governo quer passar a controlar mais diretamente, através de governadores nomeados por si. O plano do BJP é partir o estado de Jammu e Caxemira em dois territórios da União, Jammu e Caxemira, dependentes administrativamente do Estado central. O Governo também anulou uma clásula constitucional que impedia pessoas de fora de se estabelecer na Caxemira indiana. A medida é vista como tentativa de aumentar o número de hindus no estado, relativamente pouco populado, quando comparado com o resto da Índia.

Já a oposição uniu-se contra a medida, desde o Partido do Congresso – o maior da oposição – até aos partidos da região. Dois deputados do Partido Democrático dos Povos da Caxemira – que esteve coligado com o BJP até 2018 – chegaram a ser expulsos do parlamento após rasgar simbolicamente uma cópia da Constituição. “É uma vergonha terem tornado Jammu e Caxemira numa não entidade”, afirmou Ghulam Nabi Azad, do partido do Congresso.

 

Repressão “É o dia mais negro da história da democracia indiana”, escreveu no Twitter a ex-líder do Executivo de Caxemira Mehbooba Mufti. Mufti terá sido colocada sob prisão domiciliária horas antes do artigo 370 ser suspendo, junto com outro antigo chefe de Executivo, Omar Abdullah. As ações do Governo de Modi não visaram apenas os líderes políticos da região, mas toda a população. “Não haverá nenhum movimento do público e todas as instituições educacionais permanecerão fechadas”, lia-se num comunicado, enquanto chegam relatos de que o acesso à internet estará a ser limitado.