Sempre que, de forma inesperada, as regras do jogo mudam, há gigantes que tropeçam e tombos que parecem fazer estremecer a terra inteira. Ainda no ano passado, o The New York Times celebrava a incomparável estatura de Plácido Domingo no mundo da ópera. O tenor espanhol estava prestes a fixar um «impensável» marco: iria estrear-se no seu 150.º papel. Se os mitos muitas vezes nascem da noite para o dia, e parecem crescer da boca para o ouvido – num ânimo agitador de quem, de cada vez que recorda uma performance, junta farinha, fazendo crescer o bolo na imaginação de quem não lá esteve, nem a testemunhou–, há astros que se tornam ainda mais dominadores pela duração do seu fôlego. Domingo é certamente um deles, tendo atrás de si uma carreira de quase seis décadas.
Como lembrava o Times, o grande tenor Enrico Caruso cantou em cerca de 60 papéis, a lendária diva Maria Callas fez 50, e a mais famosa soprano dos nossos dias, a norte-americana Renée Fleming, ainda não igualou, em número de papéis, a sua idade: 60. Assim, os 150 papéis de Domingo, e as suas quase 4000 performances, colocam-no bem para lá do que se julgava possível. «Se considerares a história dos cantores de ópera, ele emerge num nível de grandeza em que fica a sós», afirmava Joseph Volpe, o administrador geral, entre 1990 e 2006, da Met Opera, em Nova Iorque. «Se alguma vez houve um gigante nesta indústria, é Plácido Domingo. Os seus feitos não têm paralelo».
Na última década, face à perda de alcance da sua voz, o cantor lírico tem vindo a cantar em papéis de barítono e já não nos de tenor que fizeram dele um monstro sagrado. Aos 78 anos, e se o mais glorioso período da sua carreira está para trás, continua a encher salas por todo o mundo, mas a sua longevidade pode agora ser travada por um escândalo sexual. E o mais certo é que a sua reputação, até aqui imaculada, fique para sempre ensombrada.
Com 12 Grammys (três deles latinos), o seu voraz repertório conta com mais de cem álbuns, incluindo o mais vendido na história da música clássica, o da colaboração no projecto Três Tenores, ao lado de Luciano Pavarotti e José Carreras. Com uma influência decisiva no mundo da ópera, depois do sucesso como cantor, Domingo tornou-se também maestro, fundou a tão prestigiada Operalia – evento que avalia jovens cantores líricos de todo o mundo – e começou a assumir posições de gestão em várias companhias, tornando-se o director geral da Washington National Opera e da Los Angeles Opera, uma posição que mantém até hoje. Por tudo isto, as alegações de assédio sexual de nove mulheres que agora pesam sobre Domingo podem dar lugar a um feroz confronto entre valores morais e artísticos, e que, dê por onde der, irá permitir fazer uma leitura profunda sobre esta época.
Se o movimento #MeToo criou um ambiente que encoraja as vítimas de abusos sexuais a tornarem públicas as suas queixas, isso só é possível por ter refreado o cinismo que estas enfrentavam, e por tornar condenável o repúdio e humilhação a que se sujeitava a parte que vinha reclamar justiça, a qual era tantas vezes atropelada pela indulgência de que sempre gozaram os génios criativos e outras figuras iminentes. Por outro lado, a avassaladora corrente reactiva que as novas formas de comunicação promovem elevou o tribunal popular a instância máxima das nossas sociedades, até pela celeridade com que formula juízos.
É uma justiça que se confunde com um ideal de vingança, punindo exemplar e brutalmente, com a ingénua prepotência de quem se julga capaz de corrigir de vez todos os males do mundo. Deslumbrada consigo mesma, estes juízes-vingadores não olham a meios, e dizem-se agentes de uma revolução. Deixa no seu rasto uma espécie de pestilência moral. Julga-se excepcional mas, na verdade, parece ter dado lugar a uma sessão ininterrupta e insaciável, batendo-se por uma conformidade absoluta, uma unanimidade castigadora de todos os desvios como pecados morais/mortais. E sinal disso é o desprezo pela presunção da inocência, pelos direitos dos acusados. Parece ter chegado a um ponto em que ameaça passar por cima do sistema judicial, tornando-o acessório ou irrelevante, particularmente se a contraria. Caminha-se assim, já não em direcção a uma utopia, mas a um paraíso asséptico, totalitário, devastador.
Em declarações ao SOL, o psicanalista e editor Vasco Santos lembrou que aquilo que hoje assume a aparência de uma forma de «justicialismo», esconde um galope censório, com certos movimentos identificados como feministas empenhados num retorno ao higienismo. «Vivemos em tempos de fascismo moral», avisa. «E o moralismo esconde sempre perversão».
«Nesta inquisição actual inscreve-se um enorme desprezo pela sexualidade humana naquilo que a constitui como fantasia, surpresa, jogo e teatro, desejo e contradição.» Vasco Santos indentifica aqui uma marcha em que os extremos surgem de mãos dadas, com os progressistas a confundirem-se com os sectores mais conservadores e reaccionários. «Quando Michel Foucault analisa o Anti-Édipo, livro maior de Deleuze e Guattari, ele infere que o inimigo maior é o fascismo. Não apenas o de Hitler e Mussolini, mas ‘o fascismo que está em todos nós, que martela os nossos espíritos e a nossa conduta quotidiana, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora».
«Este é um tempo sem humor e sem risco, só vale a assepsia – intelectual, alimentar, visual», afirma, rematando: «O sexo tornou-se obsoleto.» E, citando a obra de Foucault, História e Sexualidade, o psicanalista fala numa «hipótese repressiva» em que existe, por parte do poder, uma vontade de controle e admnistração das atitudes e das práticas sexuais. «Como diz Foucault, o aumento dos discursos sobre o sexo pode, então, ter visado uma sexualidade economicamente útil».
Vasco Santos refere ainda esta manifestação de um capitalismo tardio em que tudo tende para a amorfia, em que a precariedade parece atingir tudo: «Um banco centenário ou a reputação de um grande maestro, de um futebolista ou de um actor». Basta uma denúncia… A partir daí o problema é como provar a inocência.» Assumindo que o abuso e a violência sobre as mulheres é um problema típico da exploração e do abuso do poder, vê o #MeToo como um movimento que depende da lascívia mediática em torno de certos astros, deuses. «Tratar-se-ia de escolher alvos mediáticos que, exponencialmente, enfatizam o poder do Estado. São balas douradas que impõem a ordem à custa do medo.»
Depois da investigação da Associated Press, a Los Angeles Opera, que Plácido Domingo ajudou a fundar e onde ocupa, desde 2003, funções administrativas, abriu um inquérito para apurar a veracidade das alegações de assédio sexual contra o cantor e maestro, sendo que a instituição está no centro do escândalo. Uma meio-soprano que integrou a companhia, não estando entre o grupo das mulheres que dizem ter sido alvo de avanços sexuais inapropriados, reconheceu à AP que havia um padrão de comportamento preocupante, de tal modo que «havia uma tradição oral de avisar as mulheres sobre Plácido Domingo». Segundo ela, era algo como uma lei não escrita: «Evitar interação com ele a todo o custo. E nunca por nunca ficar a sós com ele».
Horas depois da notícia ter saído, a Orquestra de Filadélfia retirou o convite feito a Domingo para atuar no concerto de abertura da temporada, agendado para o próximo dia 18 de setembro. A primeira entidade a manifestar-se sobre o escândalo justificou a sua decisão afirmando que está «empenhada em oferecer um ambiente seguro, respeitável e apropriado para a Orquestra e para o pessoal, para artistas e compositores, e para o público e a comunidade». Também a San Francisco Opera cancelou um concerto do cantor espanhol em Outubro, ao passo que o Met Opera, onde no próximo mês deveria actuar em Macbeth de Verdi ao lado da soprano Anna Netrebko, disse que iria aguardar pela investigação da LA Opera «antes de assumir qualquer determinação final sobre o futuro da ligação entre Domingo e o Met».
«Conheço Plácido desde que ele se estreou no Met, em 1968, e nunca ouvi qualquer queixa contra ele envolvendo assédio sexual», disse o antigo administrador do Met. «Ele é um verdadeiro gentleman, e sempre teve o maior cuidado com as pessoas». A Ópera de Nova Iorque afastou no ano passado o seu director musical, James Levine, após terem vindo a lume alegações de conduta sexual abusiva e assédio, e, na passada semana, chegou a um acordo com o mastro à margem do tribunal, depois deste ter interposto um pedido de indemnização por difamação e quebra contratual. No comunicado em que reagiu às alegações contra Domingo, a instituição reforçou que considerava com «extrema seriedade as acusações de assédio sexual e abuso do poder», lembrando que, das várias vezes em que actuou ali como artista convidado, Domingo nunca esteve em posição de influenciar as decisões quanto ao elenco das produções.
As alegações avançadas pela AP referem-se a uma série de incidentes que ocorreram entre 1980 e 2002, em que as nove mulheres terão sido pressionadas a ter relações sexuais com Domingo. E sete afirmam mesmo que as suas carreiras foram prejudicadas depois de terem rejeitado os avanços do músico. Por seu lado, Domingo reagiu através de um comunicado, afirmando que «as alegações feitas por estas pessoas não nomeadas e que remontam a um período de três décadas são profundamente preocupantes e, na forma como foram apresentadas, são imprecisas».
«Ainda assim», prossegue o comunicado, «é doloroso saber que posso ter perturbado alguém ou fazê-lo sentir-se desconfortável – não importa há quanto tempo isso tenha ocorrido e apesar das minhas melhores intenções. Eu acreditava que todas as minhas interações e relações eram sempre bem recebidas e consensuais». A resposta de Plácido Domingo termina sinalizando um equívoco que poderia ter resultado da forma como os tempos estão a mudar, levando a que atitudes e comportamentos antes encarados como normais sejam hoje vistos como censuráveis e até criminosos: «Reconheço que as regras e padrões pelos quais estamos hoje – e é bom que assim seja – a rever os nossos comportamentos são muito diferentes do que eram no passado. Eu tenho a sorte e o privilégio de ter uma carreira de mais de 50 anos na ópera e quero ser julgado segundo os mais altos padrões».
Na aura que se criou à sua volta, além do imenso respeito dos seus colegas pelos seus dotes prodigiosos, pela forma como se entrega ao trabalho com uma disciplina absoluta, Domingo é muitas vezes descrito, como refere a AP, como uma personalidade infecciosa e que esbanja charme. Mas se as reacções se têm pautado por uma enorme cautela, o festival de Salzburgo, na Áustria, foi desafiador, e não só manteve as atuações previstas do tenor nos dias 25 e 31 de agosto, na ópera Luisa Miller, de Verdi, como reforçou a confiança no cantor. Helga Rabl-Stadler, a presidente do evento, veio em sua defesa e não podia ter sido mais enfática. «Conheço Plácido Domingo há mais de 25 anos, e além da sua competência artística, desde o primeiro momento fiquei impressionada com a forma cuidadosa como sempre tratou os funcionários do festival. Tratava-os a todos pelo nome, desde o concierge à secretária; nunca deixava de agradecer a quem quer que lhe prestasse o mais pequeno serviço.» E concluiu afirmando que se as alegações contra ele tivessem sido expressas nos bastidores do festival de Salzburgo não haveria qualquer hipótese de não lhe terem chegado aos ouvidos.