«O mal do mundo é que Deus envelheceu e o diabo evoluiu»
Millôr Fernandes
Durante muitas décadas fomos formatados para aceitar que a ‘comunicação social’, a ‘imprensa’, os ‘media’ eram o quarto poder. No meio desta certeza, nuns casos imposta, noutros casos percecionada e noutros casos sentida na pele, vimos Mário Mesquita, provocatoriamente, dizer que os media em geral eram o quarto equívoco. Em tempos em que a guerra pela informação, o poder dos media, a influência da informação se faz sentir obsessivamente na vida das sociedades contemporâneas, são cada vez mais aqueles que afirmam e sustentam que eles são o primeiro poder e não o quarto poder. Tal acontece quando a fadiga informativa é cada vez maior e mais nociva para a liberdade de informação, para a liberdade de opinião, para a qualidade da democracia e para o respeito pelos direitos, liberdades e garantias.
Ainda recentemente, à beira mar, um antigo aluno de mestrado (que não reconheci no primeiro contato), entre outras conversas, dizia-me: «Professor, é tão bom ser anónimo. Professor, devemos recear mais os jornalistas do que os polícias e os militares». Indo mais longe, deu o exemplo de um amigo que foi «fuzilado» (usou esta expressão várias vezes carregado de revolta) mediaticamente e absolvido nas instâncias judiciais, mas de pouco ou nada lhe valeu, já que não mereceu nem pedido de desculpas nem destaque semelhante ao tempo do «fuzilamento» mediático. Eu lá lhe fui dizendo que, num Estado de direito democrático, a separação de poderes e os media livres são indispensáveis para uma democracia de qualidade. Dei-lhe vários exemplos e recordei-o que, tendo estado em três Governos enquanto secretário de Estado, na Presidência do Conselho de Ministros, com parte da tutela da comunicação social, goste-se ou não do que às vezes lemos sobre nós próprios e sobre os nossos amigos, não podemos confundir as coisas. Uma verdadeira democracia liberal tem de ter media livres. Outra coisa é procurar que exista maior equilíbrio no setor – desde a viabilidade económica dos projetos jornalísticos, o respeito deontológico, etc. Ele mudou de conversa. Mas fiquei a pensar. E recordei-me de uma outra conversa de uma mulher de cerca de sessenta anos, há uns meses, também sobre os media. Sendo ela pessoa simples e sem grandes floreados, afirmou para quem a quis ouvir, na hora das visitas num hospital público: «Desliguem a televisão! As noticias são todas iguais! Parece que está tudo sempre mal! É só miséria, tristeza! Nada nem ninguém presta! Já não há pachorra! Não quero ouvir nada! É tudo igual! E mau!».
Será que a fadiga informativa está a criar alguns exércitos de pessoas cansadas de ‘noticias’? Que estão a ficar descrentes nos media e nos jornalistas?
Segundo um relatório relativo ao jornalismo digital do Instituto Reuters da Universidade de Oxford, os gregos (com 54%), seguidos dos americanos (com 41%), estão cansados e fartos de tantas noticias (nas redes sociais, jornais, TV’s). Segundo o mesmo estudo, a percentagem de portugueses com fadiga informativa é de 30%. Esta espécie de fadiga informativa, pelo que se vai percebendo, está a alastrar, mas ainda não é muito percecionada. E parece ter um aumento discreto.
Como também continua a ser um assunto tabu. Portugal persistentemente continua a ser um dos países em que menos se lê, mas onde mais se vê televisão.
Regressando à fadiga informativa, com neutralidade, somos obrigados a reconhecer que o volume de factos, notícias, conteúdos, são alucinantes. Bem como as edições a ‘mata cavalos’. Cada vez mais, parece não existir concorrência. Alguém escreve e ou afirma e os outros citam, reproduzem, vão atrás. Sem confirmar. Mesmo que não seja ‘bem assim’ ou mesmo que não ‘seja verdade’. Notícias iguais. Verdadeiras ou falsas. Histórias iguais. Verdadeiras ou falsas.
A sanita da desinformação em que se transformaram as redes sociais é bem o exemplo das overdoses de fadiga informativa. Alguns de nós conhecemos cada vez mais protagonistas e produtos de conteúdos informativos que sabem isto tudo. Mas o seu lugar de trabalho, a sua proteção profissional, sobretudo a volúpia e a concorrência informativa tamanha, impede-os de parar para pensar e mudar tudo isto. Ficando dentro do ‘sistema’ a correr contra tudo e contra todos. Não antecipando que estão a matar aos bocados a importância, a utilidade e a credibilidade da informação. Deixando muitos mortos mediáticos pelo caminho injustamente. Não cuidando da deontologia e da ética da verdade e do respeito.
O excesso de informação e de conteúdos, cada vez mais quase ‘copiados’, está a confundir, a fazer duvidar, muitos leitores, ouvintes, telespectadores. Mas é obvio que isto não é importante e prioritário. Porque vai contra o sistema que se instalou e que ‘corporativamente’ se sente impune e acima de tudo e de todos. Quem com ele se meter, leva. Mas, ou alguma coisa muda, ou o poder da fadiga informativo irá continuar a aumentar.
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