O meu quarto, em Porbandar, era em esquina. Tinha janelas enormes, frente a frente, e quando o vento soprava com força, vindo do mar, as cortinas enfunavam-se como as velas das caravelas do Gama e um ruído de ondas ribombava por todo o edifício até às fundações. As rajadas eram quentes, parecia que tinham passado por uma selva de labaredas antes de entrarem pelas vidraças escancaradas, e eu espreitava a massa de água castanha, de horizonte a horizonte, para lá de Kuchhadi, a norte, e Odadar, a sul.
Porbandar é a terra do meu querido amigo Nilesh e fui lá, a primeira vez, por causa dele. Também é a terra de Gandhi. Uma vez, num gag de perfeito nonsense, Herman José explicou-nos com uma vareta na mão que nem todos podem ser o Gandhi. O Gandhi aguentava todas as provocações, todas as chibatadas, e mantinha-se impassivelmente Gandhi. O Nilesh explica-nos, todos os dias, que ninguém pode ser o Nilesh senão o próprio. Talvez por causa do seu impossível sorriso de menino eterno.
O Nilesh adora críquete, como qualquer indiano que se preze, e não precisava, para isso, de ter nascido especificamente em Porbandar, no Gujarate ao qual os antigos chamavam de Guzerate. Mas também gosta de futebol e do Sporting. O Gandhi não gostava de desporto. Preferia manifestações de outro género. O Gandhi de Porbandar, Mohandas Karamchand, antes de ser Mahatma. Porque há um Gandhi de Goiânia, no Brasil, que não só gosta de futebol como é profissional, joga no meio-campo, como convém a um Gandhi, pensando o jogo, e de nome completo Mahatma Gandhi Heberpio Mattos Pires. Ainda consigo perceber que um pai baptize o filho como Mahatma Gandhi. Agora o Heberpio já não me parece fazer o mínimo sentido.
O Gandhi, de Porbandar, cidade dos sóis enormes para os quais é impossível olhar de frente, no tempo em que vivia na África do Sul, em Durban, a maior cidade indiana longe da Índia, percebeu rapidamente que o futebol podia ser uma arma temível de apoio à sua atitude de não-violência contra o apartheid. Assim, de forma mais banal, diria que começou a ir à bola. E a entreter-se com os encontros renhidos levados a cabo pelos membros da comunidade indiana de Durban. O seu espírito organizativo e empreendedor não tardou a servir para fundar três clubes: um em Durban, claro, outro em Joanesburgo e, finalmente, o terceiro, logo ali ao lado, em Pretória.
A Índia chama-me e eu vou. Todos os anos, há tantos tantos anos, às vezes duas ou três vezes por ano, sempre em regresso que terá regressos atrás de regressos até ao fim de mim. Há nela uma espécie de abraço largo de mãe, mesmo quando me perco na podridão dos subúrbios das cidades gigantes, bairros em decomposição, gente infectada, animais podres, fogo e fumo, o amarelo incoerente de paredes pintadas com anúncios de detergentes, cães enlouquecidos de cio ladrando a porcos negros e, de repente, flores perfumadas de incenso na beira dos passeios. Índia. Não resisto ao seu chamado.
Gandhi também não. E voltou. Para levar consigo a Liberdade à Meia Noite. Na África do Sul, os clubes por ele fundados tinham todos o mesmo nome: Passive Resisters. Tão passivos que se recusavam a fazer parte das estruturas do futebol local, até das estruturas montadas especificamente para os não-boers, mantendo-os à distância, sempre à distância. Os Resisters de Durban, de Joanesburgo e de Pretória só disputavam jogos amigáveis. Absolutamente não-violentos. As verbas recolhidas pela venda de bilhetes eram destinadas aos prisioneiros políticos do apartheid e suas famílias. Gandhi sendo absolutamente Gandhi.
Em 1893, Gandhi chegava a Port Natal, Durban, como advogado da firma Dada Abdullah & Company. Em 1914, a Índia reclamou-o de volta. Sem ele, os Resisters foram-se dissolvendo em questiúnculas internas. Não, nem todos podem ser Gandhi. E a Índia nunca gostou muito de futebol, sempre preferiu o críquete. No seu caminho para se transformar na Grande Alma, Gandhi deixou o futebol para trás. Vendo bem, só se aproximara do jogo no momento em que sentiu que tinha nele uma alavanca política com a qual combater o segregacionismo sul-africano. Foi visto num estádio em 1922, para receber a visita do Christopher’s Contingent, um clube de Durban composto maioritariamente por indianos e patrocinado pelo seu amigo Albert Christopher, o homem que esteve a seu lado na greve dos trabalhadores que abalou as estruturas do regime branco.
Em Porbandar o futebol não existe. Alguns gostam de espreitar pela televisão o campeonato inglês. Há t-shirts com a cara do Ronaldo à venda nas lojas de quinquilharias. Na rua, as paredes das casas estalavam ao sol. As mulheres embrulhavam chappatis em pedaços de jornal, os homens do chá caminhavam a custo de samovar às costas, as vacas tinham ternura nos olhos de veludo. De vez em quando, a Índia chama-me. E eu vou, obediente e deslumbrado.