Após o furto de Tancos, foram vários os encontros entre o diretor-geral da Polícia Judiciária Militar, Luís Vieira, e o ex-ministro da Defesa, Azeredo Lopes. Segundo a acusação, a que o SOL teve acesso, por mais do que uma vez os dois reuniram-se em casa do então ministro durante o período da investigação paralela da PJM e da GNR. E ainda houve uma outra reunião. Para os procuradores do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) ficou claro que Azeredo foi sendo informado dos trabalhos da PJM e nada fez.
Após visitas a casa do ex-governante, a 4 de agosto de 2017 Luis Vieira vai ao Ministério da Defesa Nacional para ser recebido por Azeredo Lopes, contando-lhe o que se estava a passar com a investigação, nomeadamente que a GNR de Loulé lhes estava a passar informações sobre o homem que tinha roubado as armas. O MP explica mesmo que Azeredo não era apenas «um muro de lamentações» e que, por isso, foi tendo conhecimento dos factos.
Nessa conversa, o diretor da PJM terá mesmo falado num parecer que fora pedido a Rui Pereira para justificar que deveriam ser a sua polícia a investigar e não a PJ (como determinado pela PGR) e ainda sobre a cooperação da GNR e das contrapartidas exigidas por João Paulino – o líder do grupo que assaltou os paióis. Nessa reunião, Vieira entregou um memorando com o timbre da PJM, uma fita do tempo e cópia de um despacho do MP, sobre a delegação de competências na Unidade Nacional Contra Terrorismo, que estava em segredo de Justiça.
Apesar de se tratar de uma reunião no Ministério, nem os documentos nem o encontro ficaram formalmente registados.
O MP considera que foi nesse momento que Azeredo deu a sua concordância, passando assim o plano a ser também seu. O ex-ministro, segundo a acusação, «ficou ciente de que elementos da PJM, com a conivência do seu diretor-geral, com apoio de alguns militares da GNR e, também, com conivência de Oficiais da GNR, pretendiam fazer uma investigação paralela, à revelia da PJ e do Ministério Público; e ficou ciente de que pretendiam encetar negociações com um indivíduo ligado ao assalto para entrega do material militar».
O documento acrescenta: «Azeredo Lopes não deu conhecimento desses factos à Procuradoria-Geral da República. Azeredo Lopes não deu conhecimento desses factos à Polícia Judiciária. Azeredo Lopes aceitou os mesmos. Sendo certo que podia e devia ter-lhes posto fim, opondo-se, desde logo, quando Luís Vieira o informou».
As primeiras conversas com Azeredo Lopes
A 28 de junho o diretor geral da Polícia Judiciária Militar bateu com o nariz na porta de casa de Azeredo Lopes, cerca das 21h49, para o por a par do assalto do ano – talvez dos últimos anos – o filme estava ainda a começar. O ministro estava em Bruxelas, na reunião dos ministros da Defesa da NATO, e, por isso, não recebeu o amigo como de costume. Luís Vieira queria contar-lhe o cenário com que a sua polícia se tinha deparado horas antes em Tancos.
O caso preocupava já os bastidores da política e da Justiça, tanto que no dia 30 a Unidade de Coordenação Antiterrorismo (UCAT) viria logo a reunir de urgência excecionalmente com a então procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal. Nessa altura, a PJM estava a investigar o roubo – incluindo com contactos com a GNR de Loulé – e a Unidade Nacional Contra Terrorismo da PJ estava já a analisar a denúncia feita por Paulo Lemos, o Fechaduras. A PJ seguia as pistas deste homem, que havia desistido de participar no assalto e entregou o plano ao DIAP do Porto antes do assalto, a PJM tentava também em paralelo seguir essa linha. Quando a PJM soube que a PJ ia ao Algarve falar com este informador quis ir, mas o pedido foi negado pelo pelo então diretor da Unidade de Combate ao Terrorismo (UNCT) da PJ, o que começou por irritar o diretor da PJM. Começava a guerra.
Ainda no dia 30, o chefe de gabinete de Azeredo Lopes, Martins Pereira, foi a casa do ministro, tendo sido feita uma ligação para Luis Vieira, que já não andava contente com o curso dos trabalhos. Ao mesmo tempo, o major Vasco Brazão, homem da sua confiança dentro daquela polícia e com um ascendente sobre si, tentava nas suas férias intrometer-se no trabalho do seu colega Bengalinha (que assumira a investigação oficial da PJM no início), tanto que este chegou a desconfiar que só queria tirar nabos da púcara.
Entre os investigadores da PJM já circulavam bocas ao trabalho da PJ. Depois da negativa para ir ao Algarve, e na sequência das trocas de informações entre o investigador Lage de Carvalho e Pinto da Costa (ambos do pólo do Porto da PJM), há mesmo escárnio do trabalho da Judiciária civil: Lage De Carvalho terminou um email para Pinto da Costa com informações que recebera sobre Fechaduras dizendo: «Resta-nos esperar pela evolução da investigação do Sr. Doutor, aquele da PJ civil, mas acho que ainda nos vamos rir… infelizmente, parece-me que ainda vai acontecer outro ‘Pedro Dias’… que nós sabíamos onde ele ia passar e… passou… :)».
A inspeção de Azeredo e a irritação do diretor da PJM
A 2 de julho, Azeredo Lopes determinou a abertura de uma inspeção extraordinária por parte da Inspeção Geral da Defesa sobre o armazenamento de material e segurança de instalação. E no dia seguinte, houve uma reunião entre procuradores, o diretor da UNCT da PJ, dois inspetores desta polícia, Manuel Estalagem e João Bengalinha (ambos da PJM), na qual se definiu que o caso ia manter-se nas mãos da PJ e que a PJM apenas poderia colaborar.
Foi a gota de água para Luis Vieira, que a partir daí começa a tentar o tudo por tudo para reverter esta decisão, sem sequer autorizar o laboratório da PJ a repetir as perícias no local do crime.
Logo após essa recusa, Luis Vieira recebeu uma chamada de Joana Marques Vidal. A conversa foi tensa e tinha o objetivo de sensibilizá-lo para a necessidade de respeitar a decisão do MP e desse modo colaborar com a PJ. Segundo a acusação, Luis Vieira teve uma reação ‘desabrida’ com a então PGR, dizendo discordar do decidido, uma vez que revelava uma clara incompreensão sobre os normativos processuais penais relativos à investigação criminal, à entidade competente para dirigir e para exercer a ação penal.
A nova visita a casa de Azeredo e a ida de Marcelo a Tancos
Segundo a acusação do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, Luis Vieira sentia-se humilhado pelo fracasso da sua polícia em casos como o do furto de armas na base do Alfeite e no quartel da Carregueira, ambos em 2011. Os investigadores salientam ainda que a acusação de 19 arguidos no caso das mortes nos Comandos também o tinham deitado abaixo, dado que pertencia às tropas especiais dos Comandos. É nesse contexto, defende a acusação, que vê como tábua de salvação pessoal e da ‘sua polícia’ conseguir a investigação deste caso, nem que para isso tivesse de mover mundos e fundos. Como aconteceu.
No dia 3 de junho, depois da conversa com Marques Vidal, Luis Vieira volta a casa de Azeredo Lopes, em Lisboa, para pedir ajuda e mostrar o seu desagrado com o facto de crimes que considera serem estritamente militares estarem a ser investigados pela Judiciária civil, a conversa tem contornos ainda mais especiais, dado que no dia seguinte ambos estão juntos com o Presidente da República na visita do chefe de Estado a Tancos. Nessa visita, quem está presente da investigação, explica a acusação, são apenas elementos da PJM – que vão vestidos a rigor com o colete da PJM por determinação de Vieira. Na visita estiveram ainda o chefe de Estado Maior General das Forças Armadas, o então chefe da casa militar de Marcelo Rebelo de Sousa, Azeredo e o seu chefe de gabinete. E se na parte pública nada mais se viu do que a exibição da PJM fardada a rigor, já na reunião privada Luis Vieira não se inibiu de mostrar o seu descontentamento e tentar reverter a decisão da PGR.
«Dissertou sobre a natureza estritamente militar dos crimes indiciados no processo de Tancos; deu conhecimento da decisão do Ministério Público de retirada da competência para a investigação à PJM; considerou que a decisão da procuradora-geral da República tinha desrespeitado o Código de Justiça Militar; informou que a PJ já sabia, desde Março, da possibilidade de um furto de granadas, no raio de 50 km de Leiria, pois tinha recebido uma denúncia anónima; e deu conta da esperança que tinha na reversão da decisão de atribuir a investigação à PJ», refere a acusação.
A decisão nunca foi revertida, mas não foi por falta de tentativas por parte de Luis Vieira nos dias seguintes, inclusive com diversas comunicações junto do chefe da casa militar de Marcelo, para perceber se as suas palavras tinham surtido efeito.
Nova visita à casa de Azeredo com um pedido especial
Segundo o MP, o então ministro ia acompanhando tudo através do diretor geral da PJM. E a 27 de julho uma nova visita, às 19h53, a casa do governante vem reforçar as suspeitas do MP. Desta vez vai também o chefe de gabinete de Azeredo Lopes. Luis Vieira pretende que o ministro o ajude a encontrar um professor de Direito, seu colega, que faça um parecer jurídico sobre as competências de crimes como o de Tancos.
Por esta altura, o líder do assalto a Tancos já suspeitava de que o Fechaduras pudesse estar a denunciá-lo à PJ e decide que é altura de tentar controlar danos maiores. João Paulino chega a encontrar-se com o homem que escolheu para lhe ensinar a arrombar fechaduras e as suas suspeitas não pararam. Cresciam a cada notícia de jornal e sentia-se cada vez mais encurralado. É por essa altura, diz a acusação, que o GNR Bruno Ataíde começa a ligar os pedidos de informações sobre o Fechaduras feitos pela PJM e o assalto de Tancos e diz ao seu superior que há alguém que talvez possa ajudar – Fernando Guimarães (Nando). Nando vivia com Paulo Lemos e havia estudado na juventude em Albufeira com Bruno Ataíde e João Paulino.
Paulino estava cada vez mais cercado e decidiu aproveitar a ponte de Bruno Ataíde, GNR seu amigo, com as autoridades. Aceitava entregar o material roubado que não conseguisse escoar desde que nada lhe acontecesse nem ao grupo que liderou no assalto. Confidenciou mesmo a Ataíde ter sido ele e não Fechaduras a cabeça por detrás do assalto.
O aviso de setembro ao chefe de gabinete de Azeredo
Segundo a acusação, já com o conhecimento de todos, incluindo da hierarquia da GNR, o plano vai avançando. A 26 de setembro, os arguidos Vasco Brazão, Pinto da Costa, Lage de Carvalho e José Manuel Gonçalves fizeram pelas 20h o reconhecimento do local onde Paulino havia escondido as armas, em Tomar. E poucos dias depois, numa conversa entre Luis Vieira e o chefe de gabinete de Azeredo Lopes, é referido que de um momento para o outro tudo ficará resolvido e que chegariam às armas, numa clara alusão à investigação paralela.
Tanto assim foi que no dia 28 de setembro, Martins Pereira, chefe de gabinete de Azeredo, disse ao vice-chefe do Estado Maior, Fernando Serafino, que a PJM andava em cima dos suspeitos e que era possível um desfecho em breve do caso. Mais, referia que poderia ser preciso um apoio do Exército. Azeredo Lopes deu nessa altura indicações ao chefe de gabinete para alertar igualmente o CEME para a necessidade de uma Equipa de Inativação de Explosivos (EOD) do Exército ter de agir de um momento para o outro. Rovisco Duarte confirmou que as equipas estariam prontas com “um nível de prontidão de duas horas”, informação que Martins Pereira passa depois a Azeredo Lopes.
O plano liderado pela PJM estava em marcha e foi escolhido o dia 18 de outubro para que o achamento fosse feito sem denunciar ninguém. Foram inclusivamente estudadas ao pormenor as cabines telefónicas públicas de modo a que quem fizesse a chamada também não fosse identificado mais tarde.
Os contactos entre todos os envolvidos nesta trama também se intensificaram nesta altura.
O dia D, do ‘Achamento’
Nas horas anteriores à ‘descoberta’ das armas de guerra, a PJ Militar pede à sua Unidade de Apoio Técnico e Administrativo a preparação de uma carrinha sem bancos de trás, o que para a acusação demonstra que sabiam o que iam fazer. Aliás, na véspera do achamento, às 16h43 de 17 de outubro de 2017, Pinto da Costa, Lage de Carvalho, Lima Santos, Bruno Ataíde e José Manuel Gonçalves foram à Chamusca nessa Mercedes Vito para fazer o reconhecimentos do local onde iriam ser colocadas as armas para serem ‘encontradas’ por eles horas mais tarde.
Foi com essa Mercedes Vito da PJM que Bruno Ataíde e Lima Santos (militares da GNR) foram buscar as armas a Tomar e colocá-las no local onde viria mais tarde a ser encontradas. Às 2h38 do dia 18, sem muitos desvios ao planeado, a Mercedes Vito chega à Chamusca e deposita o armamento bélico, que vem dentro de caixas. Segundo a acusação, Paulino e Laranginha não entregaram todo o material furtado, nomeadamente 1450 munições 9mm, um disparador de compressão, duas granadas de gás lacrimogéneo, três granadas ofensivas, entre outras armas.
Depois um elemento da PJM, José Costa, ligou de uma cabine em Alcochete com a voz disfarçada a fazer a denúncia e Vasco Brazão recebeu-a na central da PJM. A partir daí foram para o local os elementos que estavam feitos com a farsa e as perícias realizadas por Nuno Reboleira, diz a acusação, foram mal feitas de propósito para que nunca se chegasse à identidade de quem tinha depositado ali as armas. Tudo foi feito sem o conhecimento da PJ e do MP, o que perplexos os titulares da investigação formal.