Uma declaração invulgar

Até porque José Eduardo Martins, com vasta experiência política, mediática e profissional, não tem menos capacidade do que tantos outros que se acham mais do que capazes e agora até ambicionam o cargo que ele garante não desejar.

N’ A Canção de Lisboa, Manuel Santos Carvalho, interpretando o dono do Retiro, chegada a hora dos discursos na boda de Beatriz Costa e Vasco Santana e usando da palavra depois de a ter pedido por duas vezes e acompanhado a segunda com um murro na mesa que fez estremecer pratos, copos e talheres, vê a sua frase inicial – «Eu não sou um orador» – ser imediatamente secundada pelos comensais circundantes com expressões de concordância e aplausos: «Muito bem», «Apoiado». Que voltam a fazer-se ouvir quando, de copo vazio na mão e entre estridentes soluços («Isso não será ar na canalização?», aparte de António Silva), reitera: «Eu não tenho dotes oratórios» («Apoiado!») e acrescenta: «Eu não tenho palavras… eu não tenho vinho».

Tinha piada. Muita piada. Como tinham muita graça aquele e muitos outros guiões dos anos de ouro do cinema (e do teatro) português com muitos atores extraordinários, de há sessenta anos, mas eternos.

Vem isto a propósito de uma declaração invulgar do social-democrata José Eduardo Martins, nesta semana, no programa de informação e debate da RTP dirigido por João Adelino Faria.

À pergunta do pivot-jornalista sobre a sua eventual disponibilidade para entrar na ‘corrida’ à presidência do PSD – na sequência dos resultados das eleições legislativas de domingo e uma vez que acabara de defender que Rui Rio não deve continuar na liderança do partido –, José Eduardo Martins respondeu com uma inequívoca negativa e com uma invulgar fundamentação: «Porque não tenho vontade e porque não me acho com capacidade». Este último trecho acompanhou-o com um sorriso franco e genuinamente humilde, como nem sempre ele próprio é.

Apeteceu-me imediatamente aplaudir e dizer «Muito bem», mas lembrei-me daquele momento em particular d’ A Canção de Lisboa, que desde pequeno me fez rir e tantas vezes parafraseei.

Porque a declaração de José Eduardo Martins merece um aplauso tão genuíno e franco como o instantâneo sorriso com que a acompanhou – na verdade, é raro, mesmo muito raro, sobretudo nos dias que correm e não só no PSD, que alguém se reconheça ou se afirme sem capacidade para um lugar, em especial se este for de chefia ou o da própria liderança.

Até porque José Eduardo Martins, com vasta experiência política, mediática e profissional, não tem menos capacidade do que tantos outros que se acham mais do que capazes e agora até ambicionam o cargo que ele garante não desejar.

A questão da liderança do PSD entrou na ordem do dia, mesmo antes de Rui Rio pedir calma e iniciar o período, que prometeu rápido, de ponderação sobre a sua decisão de continuar ou não até às diretas de janeiro e de, nestas, voltar a ser candidato.

Ora, a primeira questão que os sociais-democratas devem ponderar é se o melhor para o partido e para a urgente reorganização do centro-direita em Portugal é ter um líder de oposição que ande permanentemente a morder nas canelas do primeiro-ministro e a produzir sound bytes na comunicação social e a postar nas redes sociais, ou, antes, um bom candidato a primeiro-ministro que apareça aos olhos do eleitorado com um perfil, e um programa, capaz de se afirmar como verdadeira alternativa de direita a António Costa e a um Governo de esquerda.

Pode, inclusivamente, considerar-se que, face ao quadro político gerado pelas urnas no domingo, permitindo  perspetivar um Governo minoritário de António Costa com estabilidade suficiente para os próximos quatro anos, o próximo líder do PSD poderá ser apenas alguém que assegure a transição nessa longa travessia na oposição.

Mas, por outro lado, também não pode descurar-se que, embora sem maioria absoluta, Costa ficou com a chave da crise política na mão: e usá-la-á no momento que mais lhe aprouver. Ou seja, estando o calendário político completamente fora do controlo do PSD – e controlado pelo PS – é bom que os sociais-democratas estejam preparados para uma ida às urnas no momento em que menos esperarem (veja-se como António Costa  soube aproveitar a oportunidade quando lhe tentaram passar a perna na questão dos professores a escassos meses das eleições).

Talvez por isso mesmo, e pensando não especialmente no partido mas no país, Cavaco Silva tenha resolvido fazer rara incursão na vida interna do partido para recuperar o nome de Maria Luís Albuquerque. Como é óbvio, não o fez por acaso.