Cerca de duas semanas depois de Azeredo Lopes se ter demitido do Ministério da Defesa, em outubro de 2018, a Presidência da República enviou à Procuradoria-Geral da República uma série de correspondências de um coronel, João Santos Fernandes, que assegurava ter informação relevante para fornecer sobre o caso de Tancos. Nas várias missivas, o militar começara por se apresentar nomeando os seus feitos: investigara a morte de Humberto Delgado, integrara a DINFO (antiga secreta militar) e tinha trabalhado em missões de recolha de informações e investigação militar nacional e internacional no âmbito da Nato.
Feitas as honras da casa, o coronel esgrimiu a sua tese: poderia haver uma correlação entre o roubo de Tancos e um anterior na mesma base militar em que era arguido um sargento chefe que estaria a ser julgado num processo de roubo de armas em Braga. Entre as descrições, por vezes delirantes, o coronel faz mesmo chegar a Belém uma carta dirigida ao presidente Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) por causa de uma multa que levou por excesso de velocidade por, segundo ele, estar a ser perseguido por um veículo suspeito.
Esta correspondência, sem qualquer utilidade para a investigação, enviada para a Procuradoria-geral da República pelo atual chefe da Casa Militar de Marcelo Rebelo de Sousa, o tenente-general João Vaz Antunes, não deixou de causar estranheza entre os procuradores da operação Húbris, que acabaram por arquivá-la entre os vários apensos do processo.
No entanto, o expediente do chefe da Casa Militar contrasta com o seu antecessor, João Cordeiro, que o MP suspeita ter estado sempre a par da investigação paralela da PJM para recuperar as armas de Tancos, incluindo documentação relevante como o Memorando da PJM que nunca fez chegar ao processo. No processo judicial, que o SOL consultou, fica claro, através do cruzamento de várias informações, como os testemunhos de arguidos, registos telefónicos, SMS e correspondência eletrónica que o ex-diretor da PJM, Luís Vieira, foi mantendo Cordeiro a par das diligências que estavam a ser feitas por aquela polícia para recuperar as armas de Tancos nas costas da PJ e à revelia do despacho dado pela então procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal.
No dia 3 de julho de 2017, depois de uma conversa telefónica tensa com Joana Marques Vidal, Luís Vieira vai a casa do ex-ministro Azeredo Lopes, em Lisboa, para pedir ajuda e mostrar o seu desagrado pelo facto de crimes que considera serem estritamente militares estarem a ser investigados pela Judiciária civil. A conversa assume especial relevância, dado que no dia seguinte ambos vão estar juntos com o Presidente da República na visita do chefe de Estado a Tancos.
O que disse o Presidente antes de chegar a Tancos
No dia seguinte, antes de chegar a Tancos, Marcelo Rebelo de Sousa reiterou a necessidade de se apurarem «factos e responsabilidades»: «Pensando no prestígio de Portugal, no prestígio das Forças Armadas, pensando na autoridade do Estado e na segurança das pessoas, é muito simples: tem de se apurar tudo, de alto a baixo, até ao fim, doa a quem doer». O Presidente da República foi ainda mais longe, ao referir que era preciso «uma investigação total, integral», não «deixando ninguém imune».
Na visita de Marcelo aos Paióis Nacionais de Tancos quem está presente da parte da investigação, explica o despacho de acusação, são apenas elementos da PJM – que vão vestidos a rigor com o colete da PJM por determinação de Vieira. No encontro participaram ainda o chefe de Estado Maior General das Forças Armadas, o então chefe da casa militar de Marcelo Rebelo de Sousa, Azeredo Lopes e o seu chefe de gabinete. E se na parte pública nada mais se viu do que a exibição da PJM fardada a rigor, já na reunião privada Luís Vieira não se inibiu de mostrar o seu descontentamento e tentar reverter a decisão da PGR.
A reunião à porta fechada haveria de ser conhecida através de um email que o diretor da PJM havia de enviar para si próprio com uma descrição para memória futura: «Dia 4 Tancos: 1. Visita paióis com investigadores PJM a explicarem PR o que se passou. 2. Reunião, porta fechada. Na mesa: PR, MDN, Chefe Casa Militar. Eu, SEDN, CEME, CEMGFA. 3. À volta assessores e Oficiais. 4. A conversa só entre mim e PR. Perguntava-me pormenores. Eu disse-lhe: Sr. Presidente, tem atrás de mim os investigadores que estiveram aqui 4 dias e 4 noites sem se deitarem. Eles sabem responder a isso. Mas, outra coisa me preocupa, tive um telefonema da PGR a dizer-me que não teria Inquérito. A PJ ficava com ele. 5. Respondeu-me havia uma dramatização e que teria que ter paciência. Insisti com o quadro jurídico da PJM que tem neste facto competências específicas, exclusivas. 6. Entretanto os meus investigadores intervieram e responderam aos pormenores que o PR queria. 7. O PR acabou por prometer que iria estudar, depois falar com a PGR enquanto o MDN falaria com a sua congénere [ou seja, a ministra da Justiça]. 8. Na sexta logo de manhã deram-nos o inquérito».
O que disse Marcelo após a visita e o resto das conversas
No final do encontro, o chefe de Estado fez um ponto da situação: «Foi útil, muito útil, em termos informativos e também ocasião para apoiar a investigação em curso e apoiar e incentivar aquilo que venham a ser os passos seguintes na investigação».
Dois dias após a visita, com grande à-vontade, são trocadas várias mensagens entre Luís Vieira e João Cordeiro. No dia 7 de julho o diretor geral da PJM telefonou para o telemóvel de João Cordeiro, quando ambos se encontravam nas instalações da PJM e no Palácio de Belém, respetivamente.
Em todos estes contactos que se seguiram ao encontro em Tancos, segundo a acusação, Luís Vieira tinha o objetivo de perceber se as suas palavras tinham surtido efeito junto do Presidente da República.
Num dos emails, enviado a 31 de julho, Luís Vieira vai direto ao assunto: «Meu General, Não sei bem como colocar a questão. Não será possível o nosso Presidente, junto da PGR, obter, sensibilizar, para que este Inquérito deixe de estar delegado na PJ e sim, como seria correto desde início, na PJM? Estão presentes três ordens de razão: 1. A Lei (CJM); 2. A segurança de investigadores da PJM; 3. Investigação em toda a extensão dos factos. Um abraço».
MP considera que chefe da Casa Militar de Marcelo sabia
O Ministério Público conclui, por isso, não ser verdade o que sempre disse João Cordeiro: «Ao contrário do afirmado por João Cordeiro que respondeu que não recebeu, a título pessoal ou enquanto Chefe da Casa Militar do Presidente da República, e-mails de Luís Vieira, a verdade é que, pelo menos, recebeu […] três e-mails».
As comunicações eram tão fluidas que o chefe da casa militar de Marcelo Rebelo de Sousa soube do achamento ainda antes de ser enviado o comunicado para as redações e de o Departamento Central de Investigação e Ação Penal, bem como a Polícia Judiciária, terem assim conhecimento do caso. Isto porque Luís Vieira fez uma chamada para o chefe da Casa Militar do Presidente mais de vinte minutos antes do comunicado: «Às 09h39 [do dia 18/10/2017], a PJM ainda não tinha tornado público o achamento, uma vez que só veio a emitir o comunicado depois das 10h. Não é, pois, credível a afirmação de João Cordeiro de que soube do Achamento através da comunicação social, e não, precisamente, através de Luís Vieira que lhe telefonou logo de manhã».
Os emails que comprometem ex-ministro e Marcelo
Emails trocados entre Luís Vieira e o inspetor-chefe da PJM Vasco Brazão, a 19 de outubro, desmentem as insistentes alegações de João Cordeiro e do ex-ministro da Defesa, Azeredo Lopes, de que desconheciam a encenação preparada com os ladrões para a recuperação do material furtado.
Tal como o jornal i revelou esta semana, Azeredo Lopes garantiu não ter marcado nem estado presente numa reunião crucial que ocorreu a 20 de outubro de 2017 (alegou que estava no Porto). O encontro foi organizado no Ministério da Defesa, tendo os responsáveis da PJM entregado ao seu chefe de gabinete um memorando narrando o que se passara. Mas as comunicações eletrónicas entre Vieira e Brazão indicam que, na véspera desse dia, os dois oficiais preparavam documentação exaustiva sobre a ocorrência para enviar ao ministro por via digital segura – através da aplicação WhatsApp. Na véspera, já sabiam que iam conseguir falar com o ministro, referindo inclusivamente que tal contacto ia ser feito através de um telefone seguro.
No email trocado entre Luís Vieira e Vasco Brazão nesse dia 19 de outubro pode ler-se como ambos já sabiam que iam entrar em contacto com o ministro no dia seguinte, apesar de este estar ausente do Ministério. Referem até o alegado conhecimento da Casa Militar de Marcelo, conjeturando sobre se o próprio primeiro-ministro não teria conhecimento. «A atualização deste documento, com esta forma ou outra. Como é por telefone seguro do gabinete mdn [Ministro da Defesa Nacional] eu quero mandar-lhe documentos e responder a dúvidas. Mas quero inserir neste documento a enviar em referências na fita ou em observações. Atenção que eu ao chefe da casa militar do PR contei tudo o que sabia referida à data de 19set. O 1.º min [António Costa] deve estar a receber inputs de vários lados», lê-se na correspondência eletrónica.
Mais tarde quando foi ouvido pelo juiz de instrução criminal João Bártolo, Azeredo Lopes viria a referir que, nessa reunião de 20 de outubro, Luís Vieira dissera ao seu chefe de gabinete que o Presidente da República já tinha tido conhecimento do assunto que ali se tratara.
Azeredo sabia da investigação da PJM desde agosto
O conhecimento do ex-ministro, segundo consta no processo, já vinha de muito antes. Logo a 4 de agosto, numa reunião entre Luís Vieira e Azeredo Lopes, foram entregues ao então ministro «03 (três) documentos, num total de 05 (folhas)». Um dos documentos era um «Memorandum», «com o timbre da Polícia Judiciaria Militar, datado de 4 de agosto de 2017 e assinado pelo ex-diretor-geral da Polícia Judiciária Militar, cujo conteúdo configura uma pronúncia jurídica acerca da conexão processual entre crimes estritamente militares e os demais crimes e aborda o papel atribuído à Polícia Judiciária Militar no processo-crime de Tancos». O segundo documento era uma «Fita do Tempo» e o terceiro era «uma reprodução do Despacho dos Dignos Magistrados do Ministério Público, titulares dos presentes autos, a determinarem a delegação de competências investigatórias na Unidade Nacional Contraterrorismo da Polícia Judiciária».
Os elementos da PJM e da GNR que fizeram parte da farsa acabaram por ser louvados com proposta de Azeredo e concordância do ministro da Administração Interna a 6 de março de 2018, sendo que ainda lhes passou pela cabeça que Marcelo poderia presidir à cerimónia, como refere Brazão num documento datado de dezembro: «Todos os militares envolvidos são merecedores de serem justamente louvados pelos respectivos ministros, aliás o mais justo seria Maj Pinto da Costa, 1Sar Carvalho e o SAJ Lima Santos serem agraciados pelo Presidente da República».