‘Agnès Varda era livre, e lutou pela sua própria liberdade’

No ano morte de Agnès Varda, acaba de estrear em sala o seu último filme: Varda por Agnès. A apresentá-lo em Lisboa esteve Rosalie Varda – sua filha com Jacques Demy e produtora deste derradeiro filme de uma mulher que, entre homens, teve a força necessária para se fazer incontornável na História do Cinema.

‘Agnès Varda era livre, e lutou pela sua própria liberdade’

É como se tivesse tido a capacidade de prolongar a vida até ao momento certo. Aquele em que, aos 90 anos, estreava e apresentava, numa última conferência de imprensa, no Festival de Cinema de Berlim, o seu último filme: Varda por Agnès. Um último filme em que se olhava a si própria, ao conjunto do influente e determinante corpo de trabalho que construiu ao longo de mais de seis décadas, para falar sobre ele. Seis décadas que são mais ou menos o tempo de vida de Rosalie Varda, sua filha com Jacques Demy, e que, nos últimos anos, a acompanhou também profissionalmente, entre os seus filmes e exposições. Foi pouco mais de um mês depois dessa última conferência de imprensa que Agnès Varda morreu. Agora que, com distribuição da Midas Filmes, Varda por Agnès chega às salas portuguesas, Rosalie Varda apresentou-o, em Lisboa, numa continuação da vontade de partilha que deu origem a este último filme: «Agora que os meus pais estão mortos, os seus filmes são os meus filhos».

Varda por Agnès é dominado por esta imagem: a cineasta sentada de costas, como se não precisássemos já de a ver para estarmos na sua presença. E esta ideia podemos também tomá-la como metáfora, se quisermos, para o seu legado.

Propus-lhe fazer este projeto em 2015 por acreditar que era importante fazer um projeto sobre a transmissão e sobre o facto de ela falar tão bem sobre os seus próprios filmes, porque deu muitas masterclasses por todo o mundo para falar de cinema, do seu cinema. Senti que seria interessante fazer qualquer coisa em que ela nos fizesse compreender melhor como escrevia um filme, como o punha em cena, sobre a importância da montagem. E, sobretudo, a procura por uma forma de narração diferente em cada um dos projetos. Isso é a transmissão, e é importante transmiti-lo ao mundo. Transmiti-lo a si, que transmitirá a outra pessoa, partilhar. E, depois, houve sempre três palavras que estiveram lá desde o início do projeto: inspiração, criatividade, partilha. Foi a partir destas palavras que começámos a falar deste projeto e, depois, a refletir, a montar. Entretanto, tive a ideia de contactar o JR [fotógrafo que colaborou com Agnès Varda no seu penúltimo filme, Olhares Lugares, de 2017] para lhe propor a ideia de fazer um filme em que se encontrassem, o que deu um outro filme. Fizemos esse filme e retomámos este projeto [Varda por Agnès] em 2018. Queríamos mesmo fazê-lo, achava que seria um filme realmente importante para os estudantes, para os cinéfilos, e que pode ser uma forma de trazer as pessoas para o cinema, de as ajudar a compreender os filmes um pouco melhor. Penso que foi essa curiosidade, essa liberdade, que fez com que os jovens hoje em dia se interessem tanto pelo cinema de Agnès Varda. Creio que porque encontram uma autenticidade, uma verdade no seu cinema que os toca muito. O primeiro filme de Agnès para a geração que tem agora 30 anos terá sido Os Respigadores e a Respigadora [2001]. E trata um assunto muito atual: os desperdícios, os mais belos, a recuperação. E, através desse filme, terão chegado aos outros filmes. Talvez o Varda por Agnès possa levar as pessoas ao cinema, a verem outros filmes.

Falando nas novas gerações, Agnès Varda é uma dessas grandes figuras tomadas como inspiração por muitas jovens mulheres que dão os primeiros passos na realização – ou noutras áreas do cinema.

Porque ela trabalhou ao longo de 60 anos, a partir dos 30. Tem um corpo de trabalho. Hoje em dia, há muitas mulheres realizadoras. Pelo menos há mais do que antes.

Não se pode dizer que sejam muitas em comparação com o número de homens, mas, sim. A realidade já não é a de há 60 anos.

Em França são 26%. Não se pode dizer que seja bom, mas é mais do que antes. E ela sempre apoiou as jovens realizadoras, sempre lhes disse:_«Vai!». [Agnès Varda é essa referência] porque é mais velha, porque era livre, nunca assinou um contrato publicitário. Ela lutou pela sua própria liberdade. Liberdade para ser mulher, liberdade para ser mãe, liberdade para ser artista. Talvez seja isso que toca as pessoas.

Na conferência de imprensa em que, em Berlim, apresentou o filme, falou um pouco sobre isso, ao dizer que os seus filmes nunca fizeram dinheiro, mas sobretudo quando, nessa última grande aparição em público, disse «não quero ser uma ‘mulher realizadora’, quero fazer filmes». A sua luta, travou-a fazendo os seus filmes.

Acho que estava certa. Quando se faz um filme, é-se realizador. Mulher, homem, não interessa. Se não dizemos «homem realizador», não vamos dizer «mulher realizadora». Acho que ela lutou pelo feminismo da forma certa, ao dizer: «Primeiro, tens de querer trabalhar, tens de trabalhar bem, e, se te puseres numa posição em que a sedução não é um caminho, então não vais ter problemas com os homens. Se puseres a sedução à frente do teu trabalho, aí vais tê-los». Se, desde o início, estabelecermos que não há forma de as coisas irem por aí, isso não é um problema.

Como é que ela falava, nos últimos anos, de movimentos como o #MeToo e o Time’s Up?

Não tomou uma posição, e acho que estava certa. Disse «estou demasiado velha, as mulheres mais jovens têm de lutar…»

E de encontrar o seu caminho.

«Encontrem o vosso caminho. Eu encontrei o meu». E sublinhou sempre que não somos iguais perante a agressividade e a agressividade sexual. Não somos todos feitos do mesmo. Algumas pessoas não conseguem lutar, algumas pessoas não sabem como lutar. Não têm força para isso. Não somos iguais perante isto.

De regresso ao filme: a partir dessa ideia inicial, e mencionou, com Varda, no filme, esses três conceitos em torno dos quais ele cresceu, como é que Varda por Agnès foi sendo construído? Começaram por rever todos os filmes?

Sim, voltámos aos filmes e ela começou a dividir por partes: vamos falar sobre fotografia, vamos falar sobre o filme, vamos falar sobre artistas visuais, vamos falar sobre esta questão muito importante que é filmar em digital ou em 35mm ou 16mm. Era óbvio que havia duas partes: o analógico e o digital. E a forma como o digital lhe deu liberdade de filmar com muita proximidade, sem mais ninguém, apenas uma pequena câmara Sony. Foi isso que lhe permitiu começar a misturar vídeo e fotografia em instalações. É muito interessante perceber como, a partir de 2000, ela parou de fazer ficção. Fez documentários e instalações. Como se o digital lhe tivesse permitido ser ainda mais livre.

Essa evolução esteve sobretudo relacionada com as possibilidades que o digital trouxe?

Sim. Porque deixou de precisar de ter uma [grande] equipa. Passou a ser possível fazer-se um filme com uma equipa de cinco pessoas. E, sim, acho que isso a libertou.

E é interessante percebermos como foi capaz de continuar a transformar-se numa fase já mais tardia da carreira.

Sim.

No filme anterior, Olhares Lugares, já a tínhamos, com JR, numa reflexão sobre si própria, sobre o seu trabalho. O facto de nos ter deixado um mês depois da estreia, no Festival de Cinema de Berlim, de Varda por Agnès, deu ainda mais importância a essa última obra.

Há sempre um momento em que é chegada a altura de partir.

Mas é como se tivesse vivido o tempo certo para a completar e para a entregar ao mundo.

Porque ela era mulher muito forte. Ela queria terminá-lo, queria ir a Berlim, queria dar esta conferência de imprensa que era muito importante para ela e disse «não vou falar mais, agora falas tu por mim». Fez tudo bem. Acho que é importante terminarmos enquanto estamos vivos. É um luxo. Poder trabalhar assim, até ao fim.

Foi…

Perfeito.

E, agora, a Rosalie continua esse caminho, de continuar a levar este filme, a obra da sua mãe, a sua mensagem, ao resto do mundo.

Sim, é como um fio que nos liga. Os artistas têm sorte. Quando já não estão cá, os seus filmes, as suas fotografias, as suas obras continuam vivos. Portanto, ela está viva, está connosco. A minha mãe morreu, mas a artista, a cineasta, continua viva. Para sempre.

Esse processo de rever todos os filmes e perceber o que seria usado de cada um deles em Varda por Agnès foi difícil?

Ah, isso foi o trabalho dela. Não me meti nisso. Ajudei-a, conversámos, mas era dela. Foi um longo processo. As peças foram-se juntando e, a partir daí, ela ia percebendo o que faltava.

O facto de estar a olhar para o seu próprio corpo de trabalho, para todo ele, não representou uma dificuldade acrescida?

Foi difícil de organizar, mas ao mesmo tempo fácil, porque ela sabia tudo. É parte dela, da sua vida. Foi percorrer todo o seu trabalho à procura de momentos que lhe permitissem falar dessas três palavras: inspiração, criatividade, partilha.

Trabalhou de forma muito próxima com a sua mãe nestes dois últimos filmes…

E em As Praias de Agnès [2008] e numa série e em todas as exposições e instalações.

Neste período final.

Que foram mais de 10 anos.

Como foi essa experiência de trabalhar com a sua mãe nestes últimos anos, sobretudo neste último filme?

Foi como sermos parceiras numa missão:_«Vamos continuar, vamos viajar, vamos fazer um filme, vamos fazer uma exposição. Vamos fazer coisas». Foi recusar a ideia de ficar à espera da morte numa sala de estar. Ela esteve sempre ativa. E, sabe, a atividade dá-nos energia, e energia dá-nos atividade. A atividade vem porque se tem energia e porque se quer estar a fazer coisas. Acho que funciona como um círculo criativo.

Que não termina. O que acha que a levou a voltar-se mais para si própria, para o conjunto da sua obra, nestes anos finais? Essa espécie de vontade de deixar uma obra terminada?

Não acho que se tenha voltado para si própria. Quando ia atrás de outras pessoas, para as conhecer, para falar sobre elas, estava também a falar sobre si própria. Através dos outros.

O que quer dizer é que em todos os seus filmes houve sempre um pouco de Agnès Varda em cada personagem.

Sim. Pôs sempre um pouco dela em todos os seus filmes.

Esse corpo de trabalho que foi crescendo ao longo de seis décadas foi sendo acompanhado por si, à medida que crescia. Houve um momento em que percebeu a dimensão da figura da sua mãe e do que ela, com a sua obra, representam na História do Cinema, e não só?

Nunca se compreende. Cresce-se com os filmes, vai-se vendo os filmes em diferentes idades. E, em idades diferentes, nunca se sente a mesma coisa. Quando se vê um filme aos 10 anos e se volta a ver aos 30, não se vê o mesmo filme. Portanto, fui vendo todos os filmes dos meus pais [Agnès Varda e Jacques Demy, outro nome incontornável do movimento da nouvelle vague] em momentos diferentes da vida. E agora que os meus pais estão mortos, todos os seus filmes são os meus filhos. Eu protejo-os.

Nessa última conferência de imprensa que deu, Varda falava também sobre como a deixava feliz, em cada parte do mundo, encontrar sempre um grupo de pessoas, não muitas, mas sempre um grupo de pessoas que se reviam e acarinhavam os seus filmes. Como é que este último tem sido recebido pelo mundo? E como tem sido representá-la nessa partilha?

Devo dizer que muito bem. Ela tinha razão quando dizia isso. E, agora, é o mesmo. Corro o mundo a apresentar os seus filmes, retrospetivas, e os filmes continuam a não fazer muito dinheiro, mas não importa. Continuamos esse caminho de levar as pessoas ao cinema, da educação pela imagem. Ela já não está cá, mas será sempre assim. E continua a haver distribuidores corajosos, como a Midas Filmes, em Portugal, para mostrar os seus filmes, para os levar ao cinema. Não acredito que ganhem dinheiro com isto.

Havia uma consciência na sua mãe deste seu papel e de tudo o que representa para tanta gente?

Não pensava nisso. Tinha uma boa distância disso. Uma boa distância que é a necessária.

E como é que você, Rosalie, olha para este último filme?

Trabalhei nele, produzi-o… É um filme que pode ser visto mesmo não conhecendo os filmes da Agnès. Talvez dele parta uma vontade de ir ver um ou dois dos seus filmes, mas não acho que seja necessário. Fizemos essa experiência, em Paris, em sessões com pessoas que nunca tinham visto um filme da Agnès. E as pessoas gostaram. No final, perguntaram «já acabou?». É um filme sobre esta mulher, sobre a sua carreira, sobre [a vontade de] fazer filmes. Uma realizadora. Não uma ‘mulher realizadora’. Temos de ter cuidado com isso.