José Sócrates critica o partido do qual foi líder, por este não se ter disponibilizado para fazer um acordo escrito de legislatura com o Bloco de Esquerda, depois de o PS não ter conseguido a maioria absoluta nas eleições legislativas de 6 de outubro. Para o antigo primeiro-ministro esta recusa socialista pode gerar “crescimento do ressentimento” e revela "uma visão meramente utilitária". E avisa: “E o ressentimento é uma poderosa força política".
As considerações do ex-governante fazem parte de um artigo de opinião escrito na revista brasileira Carta Capital, intitulado A Geringonça.
A ideia base manifestada no texto é a de que a solução política da esquerda portuguesa "ganhou as eleições", mas "acabou" no dia seguinte.
Embora, Sócrates admita que a geringonça "não acabou definitivamente", porque "os três partidos que a compunham – o socialista, o Bloco de Esquerda e o comunista – continuam a afirmar a intenção de cooperar e dialogar em torno de propostas concretas que serão analisadas caso a caso", para si “o aspeto mais relevante do anterior cenário – um acordo parlamentar que garantiu a estabilidade política durante os quatro anos de legislatura – terminou”.
O antigo líder socialista lembra que o PCP foi o primeiro a não querer fazer um acordo prévio, mas explica a situação com o resultado das eleições, que tiraram deputados aos comunistas, ao contrário do que aconteceu com os seus parceiros de geringonça.
“Todavia, o que determinou o desenlace não foi esse facto, mas a recusa do PS em fazer um acordo programático com o Bloco de Esquerda, cuja soma de deputados é suficiente para garantir a maioria parlamentar. Esta foi a decisão que provocou a rutura – acabou a geringonça", afirma.
"Dizem os socialistas que preferem continuar a negociar medida a medida com todos os outros partidos de esquerda, entre os quais o PCP, para não criar uma hierarquia entre eles. O argumento, pura e simplesmente, não faz sentido”, critica Sócrates, acrescentando que “essa hierarquia existe de facto e foi criada pelos únicos que a podem criar – os eleitores portugueses. Foi o povo e mais ninguém que deu ao Bloco de Esquerda a posição de terceira força política, capaz de fazer com que os socialistas tivessem maioria absoluta no parlamento (cerca de 127 deputados num parlamento com 230)”.
Ao mesmo tempo que adverte o PS, o antigo primeiro-ministro elogia os bloquistas, fazendo questão de sublinhar que "ninguém está a dar nada ao Bloco de Esquerda que este partido não tenha conquistado" e que "mal vai a política que não reconhece as realidades eleitorais".
Mas Sócrates vai mais longe na sua análise crítica ao partido do qual esteve à frente sete anos. "Quebrou-se um muro, diziam orgulhosos os socialistas. Sim, quebrou-se um muro, mas ficamos agora a saber que era apenas metade do muro. O resto ficou", frisa, e acusa: “o Bloco de Esquerda serviu na altura para apoiar os socialistas em alturas de aflição (quando o PS perde e a direita não tem maioria), mas não serve agora para momentos de normalidade (em que o PS ganha, embora sem maioria absoluta no parlamento)".
Para o antigo governante, "o que deveria ficar registado como um gesto de grandeza e densidade histórica ficará assim reduzido a um expediente instrumental de sobrevivência política".
Sócates acredita que "a popularidade da solução geringonça é ainda tão forte nos respetivos eleitorados que nenhum dos partidos quis assumir a responsabilidade pelo seu fim".
Por último, deixou um aviso: "Oxalá me engane, mas o que podemos esperar é o crescimento do ressentimento. E o ressentimento é uma poderosa força política”.