Filho de um abastado empresário dono de um negócio de laticínios e dos restaurantes Kentucky Fried Chicken no Reino Unido, Andrew Roberts lia muito em criança e cedo adquiriu um forte interesse pela História, em particular pelas grandes batalhas.
Licenciado em História Moderna em Cambridge, hoje é professor no King’s College, em Londres, e investigador na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos.
A monumental biografia Churchill – Caminhando com o Destino (Texto_Editores) é o seu 13.º livro e tem recebido críticas entusiásticas. ‘Superlativa’ é um adjetivo que lhe assenta bem e não será muito controverso dizer que se trata da melhor biografia do grande estadista britânico disponível. Henry Kissinger, por exemplo, vaticinou que «vai-se tornar a biografia definitiva sobre o assunto». Escrita num estilo vívido e colorido e baseada em literalmente toneladas de livros e documentos, conta a história de Winston Churchill, dos seus feitos e fracassos, em toda a sua riqueza, grandeza e singularidade.
Roberts, que à imagem do seu livro é um conversador eloquente e alegre, diz que sente que toda a sua vida anterior foi uma preparação para este momento (o mesmo que Churchill dizia acerca do momento em que assumiu o cargo de primeiro-ministro). Fica divertido quando lhe chamamos a atenção para o facto do seu livro ser tão grande como uma edição do D. Quixote que repousa ali ao lado e percebe-se que está orgulhoso do seu feito. Tem razões para isso. Quando lhe colocam um prato com bolachas em cima do grosso volume, ele retira-o discretamente, para poder continuar a contemplar a capa.
Lembro-me de ver em casa dos meus pais a famosa a biografia de Sir Martin Gilbert, Churchill: Uma Vida, que já me parecia um livro muito volumoso. Um dia, na livraria, descobri que era apenas a versão curta da sua biografia de vários volumes…
Oito, na verdade.
Ao perceber isso, achei que ninguém mais se atreveria a escrever sobre Churchill. Obviamente estava muito errado!
Há 1009 biografias de Churchill. Esta é a 1010ª. [risos]
Foi preciso muita coragem e autoconfiança para se atirar a esta tarefa?
A minha mulher chama-lhe hubris [expressão grega para ‘tudo o que passa da medida’ e que designa um ato de atrevimento ou até uma provocação aos deuses, que normalmente acaba punida]. Provavelmente é a palavra mais próxima. A razão por que achei que valia a pena fazê-lo foram as novas fontes ao meu dispor. O livro do Martin que referiu – e que acho que é a segunda melhor biografia de Churchill de um só volume – não teve o acesso que eu tive a fontes que apareceram nos últimos sete ou oito anos. A Rainha deu-me autorização para ser o primeiro biógrafo de Churchill a usar os diários do seu pai. Durante a [II] Guerra o Rei Jorge VI e Churchill encontravam-se todas as terças-feiras e almoçavam no Palácio de Buckingham. Churchill confiava ao Rei todos os grandes segredos da II Guerra Mundial, como as mensagens desencriptadas Ultra [as interceções das comunicações alemãs], e ele apontou tudo isso. Essa foi uma fonte que me ajudou muito. Além disso, houve 41 maços de documentos que foram depositados nos arquivos do Churchill College, em Cambridge, desde a última biografia importante. Incluindo os diários de Mary Soames, a filha de Churchill. Eu próprio encontrei relatos das reuniões do Gabinete de Guerra e ainda o diário de Ivan Maisky, o embaixador soviético. Entre 1932 e 1943 ele e Churchill encontraram-se muitas vezes, especialmente durante o pacto nazi-soviético. Foi uma avalanche de novas fontes, basicamente. Por isso fiquei apavorado.
E como se lida com essa avalanche?
Este é já o meu quinto livro que tem Churchill no título ou no subtítulo nos últimos trinta anos. Escrevi críticas sobre a maioria dos outros livros sobre Churchill que saíram entes trinta anos. Por isso sinto que me mantive a par dos estudos churchillianos a um nível bastante alto. Por isso não me sinto soterrado como se tivesse chegado agora ao tema.
E não havia a hipótese de escrever um livro que se circunscrevesse a essas novas fontes?
Não, não podia fazer isso porque o resultado iria ser desequilibrado. Temos de usar as fontes onde elas têm de facto algo de novo para dizer. Se houver outra fonte melhor para suportar uma ideia, usamos essa outra fonte. É um equilíbrio delicado.
Tem ideia de quantos livros teve de ler para poder escrever este?
Em vez de os lermos de uma ponta à outra, o que fazemos é usarmos os índices. Umas vezes, só precisamos de três frases, noutros casos temos de ler o livro todo. Penso que na bibliografia há cerca de 600 livros que, de uma forma ou de outra, usei, e de onde, na maioria dos casos, tirei citações.
O seu livro foi apresentado na televisão pelo antigo ministro dos Negócios Estrangeiros [Paulo Portas]…
Sim, ouvi isso há pouco! Foi muito simpático da parte dele. Mas não foi a pessoa que acabou de perder as eleições?
Não, ele agora está retirado da vida política. E na realidade a coligação a que pertencia até foi a força mais votada há quatro anos, mas como não conseguiu formar maioria no Parlamento foi derrubada pela esquerda.
Estou a ver… Ainda bem, não queria nada que ele chamasse o azar para o meu livro! [gargalhada]
Ao apresentar a sua biografia, ele disse que todos os anos são publicados cerca de cem livros sobre Churchill. Acha que é por os britânicos sentirem que têm uma dívida de gratidão e quererem assim prestar-lhe homenagem?
Ainda na semana passada saiu um livro chamado Churchill’s Cat, sobre o gato favorito de Winston Churchill! Quando se chega a esse ponto não se tem dúvidas de que se trata de uma figura icónica mundial. Essa sua tese seria uma explicação psicológica interessante. Infelizmente acho que tem mais a ver com questões do mercado. E são os americanos. Até aqui este livro vendeu cerca de um quarto de milhão de exemplares – antes de sair a edição de capa mole. Dois terços desses 250 mil foram na América. Eles adoram o Churchill. E não estão interessados nas minudências históricas – concentram-se, compreensivelmente, nos grandes temas. Churchill é um grande herói tanto para republicanos como para democratas.
Ouvi-o dizer numa entrevista que escreveu este livro de mais de mil páginas em cem dias. Pode falar-me um pouco do seu método?
Sim. Acordo muito cedo, por volta das 4h30, cinco da manhã, e começo a escrever. Sei que tenho quatro ou cinco horas antes de começarem os telefonemas. Depois tomo banho e trabalho até à hora do almoço. Aí, ou faço uma sesta siciliana, por uma hora, e trabalho durante a tarde, ou tomo um Red Bull. Ouvi dizer que engorda muito, mas…
E funciona?
Sem dúvida. Mantém-me completamente desperto… até fico com as mãos a tremer. Este livro tem meio milhão de palavras e, quando estou ao meu nível mais alto, consigo escrever cinco mil palavras por dia. A minha mulher diz que houve um período – quando estava a escrever o capítulo sobre os Dardanelos, que foi o mais complicado, porque há tantas coisas a acontecer ao mesmo tempo, em tantas áreas diferentes – em que passei três dias de chinelos e roupão, sem tomar banho, mas eu não tenho a certeza… Parece-me muito pouco higiénico! [risos] Não obstante, significa que podemos ficar completamente concentrados – e fazer o trabalho todo.
E toda a gente lá em casa sabe que não o pode interromper?
Sim, este foi o meu 13.º livro. Os meus filhos estão muito bem treinados. Sabem que podem falar comigo ao pequeno almoço e ao almoço. [risos]
Já são crescidos?
A minha filha mais velha está na mesma faculdade em Cambridge que eu frequentei, por isso sabe muito bem o que é ser-se perturbado quando se está a trabalhar.
E a sua mulher, não fica aborrecida com o seu alheamento?
Não. A minha mulher é uma mulher de negócios com um cargo de grande responsabilidade, e compreende a importância de trabalhar no duro. É uma situação reciprocamente vantajosa.
Sei que tem um papillon…
É verdade, comprei em leilão um dos laços que Churchill usava.
E na sua biografia de Napoleão menciona um chapéu.
Cheguei a pô-lo na cabeça, mas esse não é meu. Foi vendido por 250 mil libras. Adoraria ter o chapéu de Napoleão, mas não tenho dinheiro para o pagar! Mas comprei uma mecha de cabelo de Napoleão e tenho duas cartas assinadas por ele e um bocadinho do papel de parede do quarto onde ele morreu, na ilha de Santa Helena. Admito que sou um bocadinho obsessivo.
Como historiador, gosta de ter estes objetos à sua volta, um pouco como o médium que usa pertences das pessoas desaparecidas para convocar a sua presença?
[risos] Espero não ter um distúrbio psicológico!
Digo isto no bom sentido, de poder ter algo concreto e palpável que o ajude a compreender e a evocar aquela personalidade.
Sim, gosto disso. Neste momento estou a escrever um livro sobre o Rei Jorge III, e comprei uma estatueta dele que foi feita em 1820, o ano em que morreu. E ele olha para mim enquanto estou a escrever sobre ele. Como historiador é maravilhoso estar rodeado de objetos interessantes com história.
Gostava que me falasse do título do seu livro: Caminhando com o Destino. A ideia que pretende dar é a de que Churchill andou sempre a par com o seu tempo e que, quando foi preciso, estava lá para ajudar a escrever a História?
Há um pouco disso, sem dúvida. E ele próprio certamente acreditava nisso. Sobre o dia em que se tornou primeiro-ministro, 10 de maio de 1940, diria mais tarde: ‘Senti-me como se estivesse a caminhar com o destino e toda a minha vida anterior não fosse se não uma preparação para esta hora’. O que tentei fazer foi descascar isso, aprofundar essa ideia, porque acho que para compreender Churchill e o que ele fez é essencial perceber que ele tinha a noção de ter um destino a cumprir. Nessa altura em que se tornou primeiro-ministro olhou para o seu percurso, e a preparação para o cargo envolveu ser chanceler do Tesouro, secretário dos Assuntos Internos, primeiro lorde do Almirantado na Primeira e na Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, achei fascinante porque logo quando tinha 16 anos ele contou ao seu melhor amigo que um dia iria salvar Londres e salvar Inglaterra. Isso revela um extraordinário sentido do destino. Se você ou eu disséssemos que sentíamos que tínhamos um destino a cumprir, se acreditássemos genuinamente que tínhamos uma coisa importante para fazer na vida – e nem falo de salvar os nossos países –, acho que algumas pessoas olhariam para nós de lado e pensariam se não seríamos um bocadinho doidos. Churchill acreditava nisso e fez o seu percurso para cumprir o que tinha previsto 50 anos antes. O facto de ele ter este sentido do destino também significou que quando o meu país passou pelo momento mais crítico da sua História, ele estava calmo, contava piadas e dava moral à sua entourage, ao resto da população, à Câmara dos Comuns, porque sabia o que tinha a fazer enquanto estivesse naquele lugar.
Tinha uma grande confiança em si próprio.
E na vitória. No momento da queda da França ele fica na dúvida. Fora isso, a sua personalidade pública – e privada – mostra sempre uma confiança inabalável de que a Grã Bretanha acabará por sair vitoriosa. E não havia nenhuma razão lógica para ele acreditar nisso. A França tinha caído, os russos estavam do lado dos alemães, os americanos não estavam nada interessados no assunto, Hitler derrotava toda a gente contra quem lutava, mas havia algo em Churchill e no seu sentida da História e do destino que o levava a acreditar que no final ele estaria do lado dos vencedores.
Falámos de preparação. A forma como Churchill foi criado e educado preparou-o para as batalhas que viria a travar ou ele teve de aprender às suas próprias custas?
Obviamente, a nível físico não teve uma infância difícil, porque era neto de um duque, nasceu num palácio, sabia sempre de onde vinha a próxima refeição. Mas a nível psicológico penso que foi uma infância complicada. O pai não gostava verdadeiramente dele e escrevia-lhe cartas cheias de desdém e de desprezo, que devem ter sido extraordinariamente dolorosas para ele.
Até porque tinha uma enorme admiração e respeito pelo pai, não é verdade?
O pai era chanceler do Tesouro, um grande orador, um gigante da política da era vitoriana. E a mãe também lhe negou o seu amor, não por não gostar dele, mas porque não tinha tempo. Andava a ter casos amorosos com o Príncipe de Gales e o embaixador austríaco e tinha uma vida social inacreditável. Ao longo dos seis primeiros meses de 1884 [quando Churchill tem dez anos] ela só passa seis horas e meia com o filho. Mas vai a festas, a jantares e a bailes todas as noites sem exceção. Uma coisa extraordinária. E no entanto Churchill não permite que esta falta de ligação o afete. Escreveu a biografia do pai, chamou Randolph [o nome do pai] ao filho, adotou as convicções políticas do pai, o estilo oratório do pai, estava sempre a citar o pai, e continuou sempre a admirar e a amar o pai muito para lá da morte deste. Acerca da mãe, ele escreve na sua autobiografia, My Early Life: «Ela cintilava para mim como a estrela polar: luminosa… mas distante». É uma coisa péssima para uma criança dizer sobre a mãe. Emocionalmente acho que foi uma infância que o pôs à prova.
Mas no final de contas parece ter produzido um bom resultado.
Um excelente resultado. Há um momento extraordinário em 1947 em que ele se encontra com o fantasma do pai e tem uma longa conversa com ele. E nunca diz ao fantasma do pai que tinha sido primeiro-ministro. Pode ver-se toda a carreira de Churchill como uma tentativa de impressionar a sombra do seu pai falecido.
Viu a entrevista de Cristiano Ronaldo a Piers Morgan há umas semanas?
Não, não vi.
Houve um momento em que Ronaldo chorou ao falar do pai, porque o pai não viveu o suficiente para ver tudo o que ele conquistou e o sucesso que atingiu.
Fascinante… É a mesma coisa. Quando Churchill já era velho, um dia estavam a jantar na sua casa de Chartwell, no Kent, e havia uma cadeira vazia. E a filha perguntou-lhe: ‘Se pudesse escolher alguma figura da História para se sentar nesta cadeira, quem seria?’. E Churchill respondeu: ‘O meu pai, como é óbvio’. Podia ter escolhido Napoleão, Júlio César, qualquer personalidade que quisesse. Mas a pessoa com quem mais gostaria de falar era o pai. Acho que há um pouco de Churchill em Ronaldo – ou talvez de Ronaldo em Churchill! [risos]
Durante a I Guerra, Churchill foi responsável pelo chamado desastre de Galípoli, nos Dardanelos [uma tentativa de invasão da Turquia que falhou, provocando pesadas baixas]. Este foi o ponto mais baixo da sua carreira?
De longe. Clementine, a sua mulher, disse que foi a única altura em que Churchill considerou suicidar-se. Isso diz muito sobre como ele se sentia. No entanto, julgo que é errado dizer que Churchill tinha tendência para a depressão. Só usou a expressão ‘cão negro’, que é associada à depressão, uma vez em toda a vida, quando escreveu à mulher, Clementine, em julho de 1911. Ele ficou deprimido com a queda de Tobruk [Líbia] em junho de 1942, a queda de Singapura em fevereiro de 1942 e os Dardanelos. Mas esses foram momentos em que qualquer decisor sensato ficaria deprimido, dado as coisas estarem a correr tão mal. Ele não tinha aquele desequilíbrio químico que leva a pessoa a cair na depressão quando não há razão exterior para isso. E presidiu a 900 reuniões do comité de defesa do Gabinete de Guerra, a todas as horas do dia e da noite, o que não conseguiria fazer se fosse maníaco-depressivo ou sofresse de algum dos distúrbios psicológicos que já tenho visto serem-lhe atribuídos.
A Primeira Guerra foi para ele uma experiência valiosa, uma espécie de ensaio para o que viria a ser a Segunda Guerra Mundial?
Quase como um ensaio, é uma excelente maneira de o definir. Churchill aprendeu imensas lições com a experiência da Primeira Guerra. Uma delas foi o tanque. Ele foi o ‘padrinho’ do tanque, angariou o dinheiro para o desenvolver, acreditava na eficácia do tanque – e os tanques, como sabe, foram absolutamente essenciais. A segunda foi a compreensão de que era preciso combater numa frente incrivelmente extensa para enfraquecer os alemães, e isso foi feito em ambas as guerras. O bloqueio naval – muito mais difícil de fazer na II Guerra, mas que também foi um aspeto importante. E por fim toda a organização política da guerra. Na Primeira Guerra Mundial os generais tinham demasiado poder. Em conjunto com os almirantes basicamente podiam definir toda a estratégia. Na Segunda Guerra Mundial – em que acumulou o cargo de ministro da Defesa com o de primeiro-ministro – Churchill pôde impor um comando político da guerra. Foram incontáveis as lições da I Guerra que ele levou para a Segunda.
Churchill adorava a guerra, como ele próprio reconheceu. Era um belicista?
Ele ficava extremamente entusiasmado com as guerras, não há dúvida. Mas isso não significa que se opusesse à paz e que preferisse a guerra. Nada disso. Ele sabia bem o que era a guerra, tinha-o sentido na pele. Combateu cinco guerras em quatro continentes, viu amigos morrer, viu homens com as entranhas de fora a arrastar pelo chão, num sofrimento horrível, sabia o quão medonha a guerra era. Mas acreditava que quando estás numa guerra tens de ir com tudo. Não é verdade que fosse um belicista, não era. Era um homem dedicado à paz. Mas assim que a guerra deflagrava, apostava as fichas todas e sabia que precisamos de fazer tudo o que esteja ao nosso alcance para obter a vitória.
É bem sabido que Churchill gostava muito de beber álcool. Penso que era apreciador de vinho da Madeira.
Apreciava vinho da Madeira e também vinho do Porto. Não sei o que teria sido dele sem Portugal! [risos]
Esse gosto pelo álcool não interferia com o desempenho das suas funções?
Sim, ele bebia muito. Mas não era alcoólico. Tinha a capacidade de beber muito sem ficar bêbedo. Tinha uma saúde de ferro, a compleição de um rinoceronte… Um dos seus amigos, E. P. Scott, disse que Churchill nunca poderia ter sido um alcoólico, ‘porque um alcoólico nunca conseguiria beber tanto’. Acho que é uma tirada maravilhosa. O facto é que nos 2148 dias, penso, da II Guerra Mundial só há uma ocasião em que ele fica bêbedo. Quando pensamos nas pressões extraordinárias a que foi sujeito ao longo do conflito… É evidente que não estava sempre perfeitamente sóbrio, porque bebia um copo de champanhe, vinho branco e vinho tinto ao almoço, o mesmo ao jantar, por vezes ficava a beber uísque com água gaseificada até às três da manhã. Ele mantinha o álcool no sangue num certo nível mas não ia para lá dele. A expressão que julgo que define melhor esta relação é que o álcool foi sempre o seu servidor e nunca o seu amo.
Também foi sempre um grande defensor, admirador e apologista do Império Britânico, e acabou por assistir ao seu desmembramento, com a independência da índia e do Paquistão, em 1947. Tinha chamado a Gandhi, ‘o faquir nu’.
Semi-nu. [risos] Não completamente nu.
Ele subestimou Gandhi?
Sim. Profundamente.
E desrespeitou-o?
Também, nomeadamente quando o mandou prender durante a II Guerra, porque Gandhi queria que os britânicos deixassem a Índia durante o conflito quando os japoneses estavam às portas, o que Churchill – acertadamente, na minha opinião – achou que era um risco tremendo. Se os japoneses entrassem pela Índia adentro e matassem a mesma proporção de pessoas que mataram nas Filipinas, isso custaria 15 milhões de vidas. As relações com Gandhi foram péssimas, o que levou a esse discurso do ‘faquir semi-nu’, que é tão politicamente incorreto… para hoje. Mas não nos esqueçamos de o colocar no contexto histórico da época. Quando Churchill nasceu Charles Darwin ainda era vivo. E as pessoas acreditavam que havia uma hierarquia das raças com os brancos no topo. Embora hoje consideremos isso obsceno e absurdo, na época era um facto científico. Era por isso que ele tinha esta teoria do imperialismo. Mas o imperialismo em que ele acreditava era completamente diferente do tipo de postulados raciais de Hitler e dos nazis. Na sua ideia de imperialismo, era o dever dos britânicos dedicarem as suas vidas a elevarem os povos nativos ao mais alto grau possível de desenvolvimento, educação, etc. E muito do que ele viu os britânicos a fazer na Índia era algo que achava que valia a pena defender e promover. Isso também explica porque é que, ao morrer, nos últimos anos de vida, antes de ficar com demência, sentia que tinha falhado. Embora o resto de nós pense sobretudo nas suas grandes vitórias, como assistiu ao império a desmoronar-se, entre 1947 e 1957, ele achava que a sua vida e a sua carreira tinham sido um falhanço.
A ideia de que são os grandes homens que conduzem a História está hoje fora de moda e tem muitos adversários. Há até quem diga que não existem grandes homens, que os homens são todos iguais. Concorda?
Não. Acho isso um disparate. Não tenhamos dúvida de que há grandes homens e grandes mulheres, grandes heróis, e não conseguimos compreender certos períodos da História se não os tivermos em conta. França nunca teria invadido a Rússia em 1812 senão fosse Napoleão. A Grã-Bretanha facilmente teria feito paz com Hitler em maio ou junho de 1940 se não fosse Churchill. Há épocas em que precisamos de ter certas pessoas em certos cargos de decisão que não fazem parte daquilo a que T. S. Eliot chamou «as vastas forças impessoais». O que é perverso na História é pensar que a Humanidade vai ficando cada vez melhor. Isso sim, é completamente ridículo. Não se pode olhar para o século XX – com a Revolução Russa, Auschwitz e por aí fora – e acreditar que a Humanidade está a progredir para um patamar mais elevado. Do mesmo modo, o conceito marxista do materialismo dialético e de que a História é um carril para a ditadura do proletariado também é completamente errado e ridículo. Quando se olha para o que de facto acontece, é a história de milhões de pessoas a tomar milhões de decisões nas suas vidas e muito pontualmente um indivíduo – um grande homem ou uma grande mulher – muda o curso dos acontecimentos. Isso não quer dizer que eu defenda a teria de uma História feita apenas por grandes homens, que se resume a isso. Claro que não. Há questões como a industrialização, a ascensão da ciência, grandes movimentos populacionais que nada têm que ver com grandes homens e mulheres. Mas negar que há momentos em que estes assumem uma importância decisiva é igualmente uma loucura.
Essas duas visões da história resultam de a direita ser mais individualista e a esquerda mais coletivista?
Acho que é perfeitamente razoável ver nelas o prolongamento da visão política do individual contra o coletivo.
Uma última questão. Ao lermos esta biografia é inevitável que nos sintamos empolgados com os grandes feitos de Churchill e com a sua bravura. De que forma é que o exemplo dele o inspirou na escrita e porventura até na própria vida?
Ele tinha uma grande capacidade para aprender com os seus próprios erros. Cometeu erro atrás de erro na sua vida – esteve do lado errado no sufrágio feminino, esteve do lado errado no padrão-ouro, na crise da abdicação [de Eduardo VIII], etc. – mas aprendeu com cada um destes erros, o que é muito importante na política. Mas não só na política, todos nós podemos aprender com os erros. Portanto por vezes tento fazer um ‘julgamento sumário’ a mim próprio para perceber onde é que me enganei e onde posso corrigir-me. Penso que esse foi um efeito que ele teve sobre mim. A outra coisa que admiro é a sua ousadia, a sua audácia. Acho que é preciso um certo grau de hubris ou atrevimento para escrever uma biografia de mil páginas de alguém sobre quem já foram escritas 1009 biografias. Nesse sentido, penso que o próprio ato de escrever este livro foi em si churchilliano.