Cumprem-se neste sábado, dia 26 de outubro, 90 anos da morte do eminente historiador da arte alemão Aby Warburg (1866-1929). À época do ataque cardíaco que o fulminou, Warburg encontrava-se a trabalhar num projeto iniciado cinco anos antes e que batizou com o nome da deusa grega da memória, ‘Mnemosyne’. Trata-se de uma espécie de história da arte sem palavras, composta por 63 painéis, cada qual com fotografias de obras provenientes de épocas e locais muito diferentes, mas que vistas com atenção revelam afinidades insuspeitas para um leigo. Cada painel, cujas imagens o seu autor reorganizava constantemente, formava como que uma constelação de astros que podiam até estar muito distantes entre si, mas que juntos formavam um grupo coerente e com significado.
De tudo isto nos fala outro grande historiador da arte, Ernst Gombrich, na biografia intelectual de Warburg que escreveu em 1970.
Primogénito de uma família judia de banqueiros de Hamburgo, logo aos 13 anos Aby Warburg escreveu ao seu irmão mais novo uma carta em que renunciava aos direitos que lhe cabiam no negócio de família em troca de o irmão lhe comprar todos os livros que desejasse. «Sem suspeitar, dei-lhe o que agora tenho de reconhecer que foi um enorme cheque em branco», diria mais tarde o irmão. Com um plafond generoso, a que se somavam pedidos constantes de reforços, Warburg foi constituindo uma biblioteca altamente singular e especializada, em torno de uma questão que o ocupou toda a vida – a sobrevivência de certos temas, fórmulas e símbolos clássicos nas mais diversas instâncias, que podiam ir desde uma pintura erudita do Renascimento a uma fotografia no jornal ou um desenho num selo.
Apesar do nascimento privilegiado, da enorme bagagem cultural e dos dotes intelectuais indesmentíveis, o percurso de Warburg não foi isento de percalços. A biografia de Gombrich faz apenas breves referências ao calvário de perturbações mentais que o atirou para uma instituição na Suíça em 1918. Mas os demónios de Warburg estão bem patentes, para quem os quiser ver, nos seus escritos, que contêm referências frequentes a um combate entre as forças da razão e as forças obscuras do irracional – um combate com o qual ele próprio se debatia.
Em 1923, após cinco anos de doença, a razão acabaria por sair vencedora. Warburg demonstrou perante os médicos que estava curado dando uma palestra sobre o ritual da serpente dos índios hopi, uma comunidade nativa com que ele tomara contacto numa viagem à América em 1895-6.
Com o seu regresso a Hamburgo, a biblioteca abriria portas para se tornar «um instrumento de esclarecimento, uma arma na luta contra os poderes das trevas». E na Alemanha as trevas estavam mesmo ao virar da esquina: quatro anos depois da morte de Warburg, os nazis subiriram ao poder, lançando a Europa num dos períodos mais negros que alguma vez se viu.