Os juízes de Castela trataram os dirigentes catalães como assaltantes de bancos e o Governo de Madrid trata as manifestações independentistas como casos de polícia. Ora, isso até poderia aceitar-se se esta luta fosse um caso isolado, um fenómeno recente, um produto de circunstâncias particulares. Mas a luta dos catalães pela independência não é de hoje nem de ontem. Não se circunscreve a meia dúzia de miúdos que deitam fogo a caixotes do lixo. É a luta de um povo que dura há séculos. É uma luta cujo testemunho foi passado de geração em geração, de pais para filhos, e como tal merece respeito. Ninguém acredita que uma resistência que dura há tanto tempo se resolva com cargas de Polícia sobre os manifestantes.
Em Portugal ainda há muito quem não perceba o que se passa na Catalunha. Nos anos 60 fui lá com o meu pai. Num café, ele meteu conversa com um homem dos seus 45 anos que, ao fim de uma hora ou mais de diálogo, e depois de saber que ele era português e escritor, lhe foi mostrar uma escola escondida na cave de um prédio. Era uma escola clandestina e destinava-se a ensinar catalão às crianças.
O ensino do catalão era proibido por Franco, mas os catalães conseguiram sempre manter a língua viva durante os quase 40 anos de franquismo, ensinando-a clandestinamente aos meninos depois das aulas oficiais. Isto mostra a sua perseverança e convicção.
Também é sabido que Portugal deve a sua independência à Catalunha – quando as tropas destinadas a travar a rebelião de 1640 em Lisboa foram desviadas para Barcelona, para esmagar uma revolta que ali deflagrou.
As histórias dos nossos dois povos estão, pois, intimamente ligadas. Portugueses e catalães foram dominados por Castela; e, por isso, percebe-se mal que a causa catalã tenha tão pouca simpatia entre nós. ‘Nós conseguimos ver-nos livres dos espanhóis – eles agora que se desenrasquem. Mas não contem com o nosso apoio, nem mesmo moral’.
Custa perceber que pessoas que sempre defenderam a autodeterminação dos povos com base na sua vontade defendam na Península Ibérica uma solução de força, com um povo a dominar outro sem admitir que este se exprima para dizer o que quer.
A Catalunha sente-se uma colónia espanhola, assim como Portugal se sentia durante os anos de ocupação. Os castelhanos são um povo guerreiro, forjado nas lutas pela conquista de território – e para tal espadeiraram à esquerda e à direita, para baixo e para o lado, tentando abrir caminho até ao mar. Os catalães eram negociantes e artesãos – e como tal foram facilmente dominados pelas armas. Mas nunca se resignaram. E continuam hoje a revoltar-se e a ver as forças da ordem como uma força de ocupação. E a Polícia trata-os como cidadãos de um território ocupado, carregando diariamente sobre manifestações de centenas de milhares de pessoas.
Ora, repito: o que vem de tão longe, de há séculos atrás, não se resolverá com certeza com cargas policiais. Uma senhora de certa idade dizia um destes dias a um repórter de TV: «Estamos fartos da Espanha!». E este desabafo resumiria um sentimento muito generalizado.
Madrid afirma que o referendo feito na Catalunha – e que determinou agora as pesadas penas de prisão de dirigentes catalães que tinham sido eleitos – foi ilegal. Pois façam um referendo legal. Perguntem aos catalães se querem continuar a ser espanhóis ou se desejam a independência.
E não se invoque o argumento conservador de que as fronteiras estão definidas assim – e assim deverão ficar. Isto não resiste ao raciocínio mais básico: será que as fronteiras no mundo inteiro vão ficar imutáveis até ao fim dos séculos? Ainda há bem pouco tempo, no Leste europeu, várias fronteiras mudaram…
Há uma única razão para Madrid não admitir um referendo na Catalunha: se o permitisse, abriria uma caixa de Pandora. As outras nações que existem na Península, a começar pelo País Basco, exigiriam o mesmo. Mas então estamos a admitir que Castela domina de facto pela força os outros povos peninsulares…