Iraque. Querem derrubar o regime a partir de um antigo centro comercial

A morte de centenas dos seus companheiros não demoveu os manifestantes, que ocupam o que dizem ser um antigo ninho de snipers, no epicentro dos protestos que paralisaram o sul do país.

A partir de um centro comercial abandonado em Bagdade, nas margens do rio Tigre, cuja fachada bombardeada foi coberta de faixas e bandeiras do Iraque, milhares de manifestantes desafiam o Governo. Exigem melhores condições de vida e o fim da corrupção e do sectarismo político, organizando-se através de redes sociais, sem líder visível. Ontem, os manifestantes paralisaram o sul do Iraque, bloquearam as principais artérias da capital e tentaram avançar até à zona verde, o complexo fortificado onde ficam embaixadas e edifícios do Governo.

“Não nos conhecíamos uns aos outros, mas aqui tornámo-nos um”, assegurou à Reuters um dos manifestantes, Abu Al-Baqir. O jovem é um dos muitos que percorrem os 18 andares do quartel-general dos protestos, o chamado “Restaurante Turco”, organizando doações de roupa e comida e cantando contra o regime. “Estou aqui desde 25 de outubro e não fui a casa desde então”, contou à Associated Press Ali Hashim, um jovem de 19 anos, que deixou de estudar por não conseguir pagar as propinas. “Esta, agora, é a minha casa”.

Nem a morte de mais de 250 dos seus companheiros às mãos das autoridades demove os manifestantes. Aliás, terá sido esse um dos motivos da ocupação do “Restaurante Turco”, com vista para a Praça de Tahir e para a ponte de Jumhuriya, e a partir de onde as autoridades são acusadas de abater manifestantes, com fogo de snipers, no início de outubro. “Os manifestantes foram muito inteligentes quando o ocuparam. Agora podem monitorizar os movimentos das forças de segurança”, reconheceu à Associated Press um general iraquiano, que admitiu que o edifício tinha sido utilizado pela polícia de choque.

“Tentaram mais do que uma vez entrar, usaram violência, gás lacrimogéneo, alguns de nós morreram, mas não deixámos este edifício”, assegurou à Reuters um dos manifestantes, Khalil Ibrahim. “Hoje estamos aqui neste edifício, amanhã estaremos na zona verde”, prometeu outro manifestante, Ahmed Salah.

 

Pobreza e sectarismo Apesar de o Presidente iraquiano, Barham Salih, ter anunciado que o primeiro-ministro Adel Abdul Mahdi se demitiria mal os líderes políticos concordassem num sucessor, prometendo eleições antecipadas, tudo indica que isso não satisfará os manifestantes.

Num país com vastas reservas petrolíferas, onde ainda 60% dos 40 milhões de habitantes vivem com o equivalente a menos de 6 euros por dia, segundo o Banco Mundial, a raiva não é apenas pelas dificuldades económicas, mas também pelo sectarismo do próprio sistema político.

“As nomeações do Governo são feitas com base em cotas sectárias ou étnicas”, escreveu à BBC Renad Mansour, investigador da Universidade Americana do Iraque, explicando: “Iraquianos lesados dizem que isto permitiu que xiitas, curdos, sunitas e outros líderes abusassem de fundos públicos”.

Não ajuda o facto de o primeiro-ministro – candidato de compromisso entre dois blocos xiitas – ter chegado ao poder o ano passado com a promessa de reformas estruturais, que os manifestantes dizem nunca ter levado a cabo. Entretanto, os protestos alastraram, particularmente no sul, maioritariamente xiita. “Estamos fartos das mentiras do Governo e das promessas de suposta reforma”, garantiu à France Press, Mohammad al-Assadi, um dos funcionários públicos em greve na cidade de Nassíria.