Tenho-me por uma pessoa ‘humana’. Francisco Pinto Balsemão chamava-me ‘madre Teresa de Calcutá’, pelo empenho que eu colocava na defesa dos trabalhadores que estavam sob a minha direção, sobretudo os mais vulneráveis.
Vem isto a propósito do caso da jovem que atirou um recém-nascido para um contentor do lixo, condenando-o a uma morte quase certa. Não o colocou à porta de alguém, ou junto de um hospital ou centro de saúde, ou mesmo na rua – deitou-o para o lixo.
E deitou-o para o lixo nu: não teve sequer a caridade de o cobrir com um agasalho.
Depois de um movimento inicial de revolta, começaram as manifestações de comiseração. A jovem era uma sem-abrigo, vivia numa tenda na rua, cometeu aquele ato numa situação de desespero.
E Marcelo Rebelo de Sousa veio reforçar esta corrente, dizendo que a jovem precisava era de «compreensão humana», pois situações como esta resultam de «profundo desespero», sendo «mais avisado compreender para ponderar as ações adequadas do que condenar à partida, no pressuposto de crueldade intencional».
Quando eu era adolescente, pedi ao irmão mais velho do meu pai, professor de Física, para me dar umas explicações. E um dia coloquei-lhe um problema que não era de Física mas de Sociologia, de Direito ou de Humanidades em geral: «Tio Mário, não é verdade que os homens são em grande parte produto da sociedade?». Perante a sua resposta afirmativa, continuei: «Então os criminosos são em boa parte um produto da sociedade». Ele voltou a dizer que sim. E eu rematei: «Como se explica então que a sociedade, que os fez assim, os condene depois? No fundo, eles não são responsáveis por serem como são e não deviam ser presos…».
O meu tio ficou uns momentos calado e depois disse-me que não podia ser esquecida a responsabilidade individual.
Ora, Marcelo já não é um adolescente e tem perfeita noção de que existe uma coisa que se chama ‘responsabilidade individual’. E uma mulher que deita um filho num contentor de lixo não pode ser desresponsabilizada. Assim, por muito que tenha querido ser ‘compreensivo’, Marcelo não deveria ter cometido a ingenuidade, ou a imprevidência, de desresponsabilizar um ato hediondo. Ele foi cometido num momento de desespero? Claro que sim. Mas um filho que mata os pais, ou uma mulher que mata o marido, ou um namorado que mata a namorada também o faz certamente em situação de desespero. Mas por isso deve ser desresponsabilizado, não deve ser condenado?
As penas, como Marcelo sabe tão bem como eu, têm dois objetivos: um punitivo e outro preventivo.
Por um lado, visam ‘punir’ o crime, condená-lo. Por outro, visam ‘prevenir’ a prática de crimes semelhantes. E nessa medida têm de ser suficientemente exemplares para os desincentivarem.
Ora, se do posto de vista ‘punitivo’ a condenação daquela mulher pode ser discutível, admitindo-se que haja dúvidas sobre se tinha ou não a intenção de matar o bebé – e, portanto, se deve ser condenada por crime ou por abandono –, do ponto de vista ‘preventivo’ não há quaisquer dúvidas: deitar um bebé no lixo é um ato repugnante e tem de ser objeto de uma condenação severa para que fique claro que ninguém o pode repetir.
O que diriam de nós daqui a umas décadas se se soubesse que uma mulher que deitou o filho num recipiente de lixo foi objeto de compreensão e clemência? Como seria vista uma sociedade incapaz de castigar um crime tão vil?
Repito: considero-me uma pessoa bastante humana. Não quero o mal daquela mulher, que não conheço. Mas não se trata de uma deficiente mental nem de alguém inimputável por qualquer outra razão. Trata-se de uma pessoa perfeitamente normal, e portanto responsável pelo que faz.
E a sociedade tem de lhe dizer com toda a clareza: o que ela fez é intolerável. A questão não é haver ‘compreensão’ como diz Marcelo. A questão é haver ou não ‘responsabilização’. E se deixarmos instalar o laxismo, se não formos capazes de condenar atos como este, qualquer dia viveremos na selva.
Ou pior do que isso: porque os animais na selva, regra geral, defendem com unhas e dentes as suas crias.