Um feliz acaso ou lapso comunicacional foi a ‘faísca’ que ditou em 9 de novembro de 1989 a queda do Muro de Berlim e a reunificação da Alemanha, após 28 anos de separação física e dolorosa entre povos da mesma língua, proibidos de viajar – salvo para alguns países da órbita da URSS – e impedidos de transpor uma linha fronteiriça de betão numa Europa dividida.
Para desespero do PCP, então sob a liderança de Álvaro Cunhal, a derrocada do Muro foi o fim de um mito que marcou a Europa e o mundo.
O PCP resistiu aos solavancos e, ao contrário dos seus congéneres europeus, que se extinguiram, os comunistas portugueses teimaram na farsa de serem os zelosos ‘guardiões’ do 25 de Abril e da democracia restabelecida, quando a sua natureza e alma os cumplicia com regimes totalitários – de Cuba à Venezuela, à Bolívia ou à dinástica Coreia do Norte –, para citar apenas os mais recentes e óbvios.
Novembro sagrou-se como o mês da libertação do povo do leste alemão, aprisionado na sua própria terra, berço de uma obscura química chamada Angela Merkel, futura líder de um país reencontrado, que se tornou no principal motor económico do continente.
Em estado de choque desde então, o PCP ainda não recuperou do profundo abalo, refém do estalinismo e da cartilha marxista-leninista, num definhamento imparável, como aconteceu aos ‘partidos irmãos’.
Basta observar de perto os países que viveram décadas subjugados pelo poder soviético para se sentirem, ainda hoje, as marcas herdadas dessa época amordaçada.
Claro que há nostálgicos desse passado, envelhecidos e incapazes de perceber o que aconteceu.
Quem tenha viajado pelos territórios do ‘socialismo real’, mesmo onde este era visto como ‘moderado’, desde a antiga Jugoslávia, de Tito, à República Democrática Alemã (RDA) – um paradoxo na designação –, poderá avaliar melhor os equívocos e o pesadelo civilizacional que sentiram na pele.
Fazer a travessia de Berlim ocidental para Berlim oriental, antes do derrube do Muro, equivalia a uma alucinação sensorial, como se fosse obra de uma ‘máquina diabólica’, retrocedendo instantaneamente meio século. Era a metade de uma grande cidade que ficara parada no tempo, como se não houvesse futuro.
Marcelo Rebelo de Sousa, que visitou Berlim a seguir à queda do Muro, interpretou-a como um acontecimento que «mudou a vida na Europa e mudou a vida do mundo, radicalmente», achando esses dias «únicos, historicamente só comparáveis ao 25 de Abril para a minha geração, embora tivessem uma repercussão maior a nível mundial».
Cunhal morreu sem ver brilhar o ‘Sol da Terra’ nem ter conseguido impor uma nova ditadura aos portugueses. Mas deixou farta sementeira que, apesar dos revezes, ainda germina.
Por isso, os comunistas execram quaisquer celebrações evocativas da queda do Muro, como excomungaram o 25 de Novembro por este simbolizar a falência do cerco totalitário montado após o 25 de Abril.
Se a morte física do ditador cubano Fidel de Castro mereceu ao PCP um voto de pesar no Parlamento, o partido rejeitou associar-se, logo em 2009, ao voto de congratulação, aprovado na Assembleia da República, assinalando o 20.º aniversário da queda do Muro. Percebe-se.
Entre o comunicado então divulgado pelo PCP e o último que assinou, a pretexto da efeméride, a cópia é quase a papel químico.
Se em 2009 o PCP achava que as comemorações eram «uma operação de reescrita da História e de branqueamento do capitalismo», em 2019 condena «os falsos prognósticos do ‘fim da História’».
O PCP não alterou uma vírgula ao discurso, nem logrou superar as cicatrizes da implosão da URSS e do desmantelamento da chamada ‘Cortina de Ferro’. Tão-pouco foi capaz de superar as sequelas da queda do Muro e do desaparecimento dos partidos comunistas em Espanha, França ou Itália.
Ultrapassado à esquerda e sem atinar com uma explicação ‘científica’ para o desmoronamento do comunismo na Europa – visível, também, no seu próprio declínio eleitoral –– o PCP dispara em várias direções, inclusive para o seu interior, reconhecendo o comité central o «sistemático ataque» em que «alguns ex-membros e membros do Partido se têm inserido, pela animação de ideias e conceções retrógradas e populistas, em que se inclui o branqueamento do fascismo e do que ele representou».
Jerónimo de Sousa não terá ilusões, como as não terá Francisco Louçã ou Rui Tavares. Mas não desarmam. Todos alimentam a ficção de que somos um país predominantemente de esquerda, quando se abstiveram mais de 50 % dos eleitores, além dos votos nulos ou brancos, enquanto à direita se somaram cerca de 37 % dos votos expressos. Há muros que perduram em partidos que usam paredes de chumbo, em vez de paredes de vidro…