«Jorge Jesus é o novo treinador do Flamengo»: corria o último mês de junho quando o técnico foi oficializado no comando técnico do clube do Rio de Janeiro, tinham passado seis meses desde que tinha deixado os sauditas do Al-Hilal. A novidade caiu que nem uma bomba e a missão era espinhosa. Com a época já em andamento, o português chegava a um dos gigantes do futebol brasileiro, é certo, mas o emblema atravessava uma seca de títulos de tal ordem que já passava uma década desde que não vencia um campeonato. E nem falemos de provas internacionais: nesse campo, já se contam quase 40 anos. Desde 1981, ano em que venceu a única Taça Libertadores da história, bem como a única Taça Intercontinental, que o Fla não mais voltaria a ter dias de glória por estas bandas.
Ainda assim, o treinador português decidiu aceitar o desafio. Mas o sentimento não foi recíproco. Num momento em que Jesus ainda nem tinha aterrado em solo brasileiro, o técnico foi escrutinado pela imprensa brasileira, que foi lesta a criticar a escolha do novo treinador. Tornaram-se virais, por essa altura, os comentários feitos por Marco de Vargas, jornalista brasileiro da FOX Sports. «Tem três títulos na porcaria do campeonato português?», interrogou ainda antes da oficialização de JJ no Fla. O jornalista questionou também a idade do treinador e o facto de não estar por dentro da realidade do clube: «Se for para trazer um técnico estrangeiro, então tragam da América do Sul. O cara está longe da nossa realidade. Não sabe o que é o Flamengo». Também analista daquela estação televisiva, Fábio Sormani fez duras críticas ao Flamengo, neste caso pelo tempo de contrato assinado com o ex-treinador do Benfica e do Sporting. Segundo o comentador, era uma «burrice» aceitar o vínculo por um ano. «O Flamengo não deveria ter aceitado o que o Jorge Jesus propôs, que foi o contrato de um ano, para vencer na metade da próxima temporada. Foi um grande erro da direção do Flamengo. Foi uma coisa de burro. Foi burrice o Flamengo aceitar isso», atirou, em junho, Sormani.
Muricy Ramalho, ex-treinador do Mengão e atualmente comentador televisivo, foi outra das figuras a julgar pela negativa a chegada do português ao clube, salientando que a ida de Jesus para o Rio de Janeiro foi um negócio de empresários.
«Eles não vão para a Europa. Eu duvido que a direção do Flamengo tenha feito uma reunião para falar sobre a contratação do Jesus. ‘Quem é o melhor técnico para o Flamengo? É o Jesus?’ Eu duvido que eles tenham discutido sobre isso. Foi algum empresário que falou ‘olha, nós temos esse técnico aqui, que é muito bom’ e realmente é muito bom», atirou no programa Bem, Amigos, do canal SporTV. Os dirigentes brasileiros «escolhem muito mal», sentenciou Muricy.
Passou menos de meio ano desde que os comentários mencionados foram feitos e, hoje, a história é diametralmente oposta. Jesus conduziu a equipa à final da ‘Champions’ da América do Sul, que esta noite disputa em Lima, com o River Plate, atuais campeões da prova, e há já várias semanas que tem as faixas de campeão do Brasileirão encomendadas. Aliás, refira-se que o Fla pode ser campeão já este domingo, sem sequer entrar em campo.
Com quatro jornadas por cumprir até ao final do Brasileirão, o Mengão lidera com treze pontos de vantagem sobre o segundo classificado, o Palmeiras – que joga amanhã com o Grémio e, se não vencer, o Flamengo é oficialmente campeão brasileiro.
Basicamente, se a equipa de S. Paulo perder, o máximo que poderá ganhar são doze pontos. Mesmo que se verifique um empate, o máximo que poderá ganhar são treze pontos, os mesmos que o conjunto de Jorge Jesus tem de vantagem, sendo que o Fla ganha no desempate direto por ter mais vitórias.
Se o Palmeiras vencer, o Fla poderá festar o título com um triunfo na receção ao Ceará (28 novembro).
De notar que a equipa rubro-negra era terceira classificada no campeonato quando Jesus assumiu o cargo de treinador – e na prova caseira apenas perdeu por uma vez (em agosto, num dos primeiros jogos que assumiu no comando técnico da equipa).
De resto, entre Brasileirão e Libertadores, Jesus está há uns impressionantes 25 jogos sem perder (20 vitórias e cinco empates). A um pequeno passo de tornar-se o primeiro estrangeiro campeão do Brasileirão em 60 anos – depois de Carlos Volante, pelo Bahia –, e o segundo da história da competição, era inevitável: até os mais críticos tiveram de render-se ao trabalho do português.
‘Eu te aceito e te peço perdão’
Depois de ter questionado o currículo do técnico, Marco de Vargas retratou-se, pedindo desculpas a Jorge Jesus através das redes sociais: «É a alma desse Flamengo que quebra paradigmas e parte de braços abertos ao encontro do sucesso retumbante. Aliás, Jesus, eu te aceito e peço perdão pelas porcarias dos meus pecados de ontem, hoje e sempre», escreveu em finais de outubro, altura em que a equipa disputava a meia-final da Libertadores, fase que não atingia há 35 anos.
Foi, recorde-se, após ultrapassar os brasileiros do Grémio que o Mengão garantiu presença na final. Antes de medirem forças, Renato Gaúcho, treinador dos tricolor, falou sobre o português. «Só fico curioso, pelo trabalho maravilhoso que ele vem fazendo no Flamengo – mas aí é que entram os 65 anos dele – por nunca ter ouvido o nome dele e por ele nunca ter treinado uma grande equipa da Europa, e nunca ter saído de Portugal», disse. Seria entretanto triturado ao perder por 6-1 no conjunto das duas mãos.
As duas equipas voltaram a encontrar-se no último fim de semana, com o golo solitário de Gabigol a colocar o Fla a dois pontos do título. No final do encontro, Gaúcho penitenciou-se: «Não é de hoje, o Flamengo vem há horas a jogar o melhor futebol do Brasil. O Grémio era o que jogava melhor, mas caiu um pouco. Flamengo fez um investimento muito grande e tem o título de campeão garantido. Está também na final da Libertadores. Por isso há que dar o mérito ao Flamengo. Eu gosto muito da forma como o Grémio joga, acho que nós jogamos muito bem, mas o Flamengo é a melhor equipa do Brasil, sim. Não há forma de ser diferente», assumiu. Não falou expressamente em Jesus, mas está implícito.
Ainda mais recentemente, foi a vez de Pelé, figura maior do futebol brasileiro e mundial, analisar a aventura do português por terras de Vera Cruz e também ele não tem dúvidas: «Já houve alguns técnicos estrangeiros no Brasil, mas nestas condições acho que não teve nenhum que se comparasse a ele».
«Há uma evidente má vontade com técnicos estrangeiros no Brasil. Por corporativismo mais até que por xenofobia», escrevia, em julho, o jornalista brasileiro Juca Kfouri no seu blogue. Em nova entrada publicada ontem dizia: «E se o Flamengo não ganhar [a Libertadores]? Boa parte do país vai entrar em depressão». E conclui: «Enfim, melhor virar a boca pra lá e confiar em Jesus. Mister Jesus!».
Ainda há quem desconfie dos méritos do treinador português – caso de Joel Santana, que se mostrou perplexo com o fenómeno de popularidade que se criou à volta de Jorge Jesus: «O cara [Jorge Jesus] está aqui há 3 meses e já é o melhor do mundo? De onde ele saiu? Da galinha dos ovos de ouro? Vamos devagar, o santo é de barro».
Mas são muito poucos.
E JJ não os deixa sem resposta. O amadorense citou Camões para falar da «inveja». «No último parágrafo de um livro que ele [Camões] escreveu, ele escreveu a palavra inveja. Por que é que há tantos anos Camões escreveu a palavra ‘inveja’? É um problema que muitas das vezes acontece, está a acontecer», atirou.
Agora, é entrar em campo. Afinal, este fim de semana Jesus pode ganhar a Libertadores e o Brasileirão. Só chegar aqui, já foi obra. E uma coisa é certa, só no Brasil são 40 milhões de flamenguistas a torcer pelo mister Jesus, o mais querido do Rio…