Era para arrancar logo no início do ano, mas a complexidade do processo e o facto de ainda faltarem algumas diligências levou o juiz Ivo Rosa a adiar o debate instrutório da operação Marquês para março de 2020. As sessões que marcam o fim da instrução – fase optativa em que o juiz vai decidir se há ou não indícios suficientes para o caso avançar para julgamento – terão assim início a 4 de março, prolongando-se pelos dias 5,6 e 9, sendo que o magistrado também já reservou outros três dias (11,12 e 13) para o caso de os trabalhos se estenderem mais do que o expectável.
No âmbito do processo Marquês esta semana foi conhecida uma nova nega do Tribunal da Relação de Lisboa a Ivo Rosa – que não queria que as declarações que Ricardo Salgado prestou no âmbito dos processos Monte Branco e GES fossem válidas para o caso Marquês. Após um recurso do Ministério Público, os desembargadores Cid Geraldo e Ana Sebastião não tiveram dúvidas e anularam a decisão do juiz de instrução, acusando-o mesmo de estar a extravasar os seus poderes.
Salgado ouvido em 2014 e 2015, antes do Marquês
O antigo presidente do BES foi interrogado como arguido em julho de 2014 no âmbito do chamado caso Monte Branco e um ano depois na investigação ao caso GES/BES. De acordo com o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), cujo recurso está na origem da decisão da Relação a que o SOL teve acesso, os interrogatórios de 2014 e 2015 «foram transferidos» para a Operação Marquês «por se ter entendido serem relevantes uma vez que traduziam a evolução das respostas dadas pelo arguido Ricardo Salgado a um mesmo conjunto de questões que, ao longo do tempo, foram abordadas em diferentes inquéritos». O Ministério Público lembra ainda no seu recurso, por exemplo, que no primeiro interrogatório o BES ainda não tinha caído e Salgado foi confrontado com «a utilização da entidade Enterprises Management e com a existência de várias contas no exterior, suas e [de] Helder Bataglia, tendo se pronunciado sobre a utilização e relacionamento do Grupo GES com as mesmas».
Ao considerar inválidos os depoimentos prestados noutros inquéritos, defendem os procuradores, o juiz Ivo Rosa extrapolou «para a fase de instrução uma norma dirigida e integrada no regime de fase de julgamento», ou seja, extravasou a sua competência de juiz de instrução.
E os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa que julgaram o recurso deram razão ao Ministério Público e atacaram a decisão de Ivo Rosa: «Importa ter em conta que ‘cada processo é um processo’, mantendo-se entre eles a sua ‘autonomia’, a não ser que haja uma ‘junção’, ‘apensação’ ou ‘incorporação’ processual. No caso presente, as declarações do arguido Ricardo Salgado, prestadas no inquérito 324/14.OTELSB [caso GES/BES], sobre a matéria das transferências financeiras e seus justificativos, dizem respeito à mesma matéria dos presentes autos e, nesta conformidade, estamos numa situação muito próxima duma ‘incorporação processual’».
«Como bem salienta o recorrente [o MP] a acusação deduzida nestes autos ‘absorveu’ esta matéria das transferências de fundos entre o GES e Zeinal Bava que, assim, deixou de constituir objeto do dito inquérito 324/14.OTELSB, pelo que, as declarações do arguido Ricardo Salgado, prestadas no inquérito 324/14.OTELSB, sobre esta matéria […] terão de considerar-se declarações prestadas ‘no processo’», acrescentam os desembargadores Cid Geraldo e Ana Sebastião no acórdão datado da última terça feira.
Explicam igualmente que se os depoimentos prestados por Salgado no caso GES/BES sobre este tema fossem considerados inválidos no processo Marquês não serviriam de nada, dado que a suposta prática de tais atos deixou de ser investigada no caso GES/BES a partir do momento em que passou a ser alvo do caso Marquês. «Mal se compreenderia, de facto – como bem salienta o recorrente – que, constatando-se em determinado momento a pendência de dois processos versando matéria parcialmente comum, em que o princípio ne bis in idem impõe o conhecimento dessa matéria comum num só processo, deixando o outro de ter tal matéria por objeto, não pudessem ser utilizadas como prova indiciária no processo que prevaleceu», justificam.
Desembargadores lançam duras críticas a Ivo Rosa
Salvaguardando que não vislumbram «motivos para a decisão que recusou a utilização e valoração» das declarações que Salgado prestou noutros processos nesta fase de instrução do caso Marquês, os desembargadores repreendem mesmo a decisão de Ivo Rosa: dizem que confunde «conceitos e possibilidades de prova, por não entender que, nesta fase de instrução, se trata de prova indiciária, sobrevalorizando, por outro lado, o elemento literal, sem querer perceber que está em causa um mesmo objeto de prova e não um mesmo processo».
Concluem que ainda que «fosse correta a interpretação» que Ivo Rosa fez das normas, não se poderia ter «por correto o seu entendimento» de que da impossibilidade de usar declarações em julgamento «decorre a impossibilidade de valoração, em fase de instrução, como prova indiciária, de declarações anteriormente prestadas pelo arguido».