Por entre momentos caricatos e incidentes diplomáticos, a cimeira da NATO deixou a nu os interesses divergentes dos vários países membros. Os 29 líderes que se reuniram em Londres, esta semana, esperavam uma demonstração de unidade, no 70º aniversário da aliança. Acabaram a assistir a um confronto verbal, perante as câmaras, protagonizado pelo Presidente francês, Emmanuel Macron, e o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
O gatilho foram os comentários de Macron, que recentemente declarou a «morte cerebral» da NATO numa entrevista ao Economist. Fazendo Trump – que em tempos apelidou a aliança de «obsoleta» – aparecer como o seu grande defensor, qualificando de «insultuosos» os comentários do Presidente francês. «Uma situação irónica», disse ao SOL Patricia Daehnhardt, investigadora integrada do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), lembrando que nas últimas duas cimeiras foi Trump o «infant terrible, criticando os aliados europeus por não gastarem o suficiente em defesa» – ou seja, cumprir o compromisso de gastar anualmente pelo menos 2% do PIB.
Os dois presidentes trocaram farpas sobre os mais diversos assuntos, com foco nas relações com a Turquia – já se previa que fosse um assunto polémico. «Como é possível ser membro da aliança e comprar [mísseis] S-400 da Rússia?», questionou Macron– enquanto Trump gabava a relação com o Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan. Macron criticou a conivência de Washington com a ofensiva turca contra os curdos sírios – aliados dos EUA e da Europa – e Trump ofereceu-lhe «alguns simpáticos combatentes do ISIS». «Vamos ser sérios», respondeu Macron.
No final, o receio de que Erdogan bloqueasse qualquer declaração conjunta que não se posicionasse contra os curdos mostrou-se infundado. «A Turquia, neste encontro de líderes, regressou a uma posição mais, digamos, consensual», nota Daehnhardt. No documento que saiu da cimeira vê-se um novo foco da NATO, preocupada com a «crescente influência internacional da China» – algo que apresenta tanto «desafios e oportunidades».
À procura de um inimigo comum
Se a NATO foi criada para enfrentar a União Soviética, desde o fim da Guerra Fria que o seu propósito deixou de ser claro. «Hoje em dia, num mundo tão globalizado, com desafios tão complexos, a NATO nunca vai conseguir definir apenas uma ameaça», considera Daehnhardt. «O que há é uma gestão de interesses divergentes».
No caso dos EUA, o interesse prioritário é óbvio, já desde a administração de Barack Obama: a Ásia, particularmente a China. Pequim tem crescente presença em portos estratégicos por todo o mundo, bem como na construção das novas redes 5G. Além de estar a levar a cabo o mais ambiciosos programa de infraestruturas da história, a Nova Rota da Seda: quer construir caminhos-de-ferro, estradas e oleodutos do Sudeste Asiático até à Europa, incluindo em Portugal. Um «desafio» para Washington – mas uma «oportunidade» para muitos países membros da NATO.
Outro potencial adversário da aliança é a Rússia, vista com desconfiança por muitos países do Leste europeu – sobretudo desde que anexou a Crimeia, em 2014. O facto de a maioria dos países da NATO cumpridores da regra dos 2% serem da região é ilustrativo dessa preocupação.
Já Macron, dias antes da cimeira, questionou: «O nosso inimigo é a Rússia, como oiço às vezes? Não creio. O nosso inimigo comum é o terrorismo, que atingiu cada um dos nossos países». Particularmente a França, alvo de uma série de atentados reivindicados pelo ISIS, e cujas tropas enfrentam neste momento uma insurgência de extremistas islâmicos em países como o Chade, Burkina Faso e Mali – onde morreram 13 soldados franceses o mês passado.
Entre Paris e Berlim
Outro assunto em cima da mesa é a opção por maior integração militar europeia ou não, e qual o seu papel. Aqui, há uma fratura no eixo franco-alemão. Ambos os países querem uma maior integração, mas Berlim defende-a como «um pilar europeu dentro da NATO», enquanto Paris fala em «soberania europeia» e «autonomia estratégica», resume Daehnhardt.
Pelo menos no que toca à integração da indústria militar europeia, Washington tem mostrado reticências – não vão as empresas militares norte-americana perder preponderância nesse mercado. Afinal, a Europa, «muito lenta e gradualmente, está a desenvolver uma capacidade de base industrial própria», explica a investigadora. «Inevitavelmente vai chocar com interesses norte-americanos».