Aveiro: ‘Antigamente, sim, isto ficava tudo inundado. Hoje não’

Em Aveiro, o cais dos Bacalhoeiros inunda mesmo no verão – basta a maré subir. As obras na barra facilitam a entrada de mais água e a poluição é uma das preocupações de quem ali vive. 

Obras na barra, assoreamento, construção de paredões e poluição. Estes são os principais problemas que a população do distrito de Aveiro encontra para justificar as inundações das estradas e, em alguns casos, habitações. Na semana passada, a instituição Obra de Frei Gil, junto ao canal de Mira, inundou. E este é apenas um dos exemplos dos estragos deixados pela tempestade Elsa. «Quase todos os anos temos inundações, já construíram um paredão para reter a água, mas este ano já tivemos água outra vez», explicou António, que pesca na ria de Aveiro há 40 anos. Além disso, o pescador acrescenta que a construção de paredões não parece ser uma solução viável a longo prazo, até porque «na praia nota-se que a água tem subido bastante». 

As alterações na zona costeira através da construção de paredões para evitar a subida no nível da água têm sido uma constante. O distrito de Aveiro é um exemplo disso, já que na maioria das praias se veem os enormes aglomerados de pedra. E os pescadores que olham para os paredões todos os dias, não concordam com a estratégia. «Isto é como ter um copo de água e deitar lá pedras, algum dia a água vai transbordar», diz António, outro pescador da Ria de Aveiro, acrescentando que a erosão da zona costeira também é um problema. «Em Espinho [distrito de Aveiro] a gente andava, andava para ver a água, e hoje Espinho não tem praia, só com a maré vazia, e o paredão está lá», recorda. 

Na praia da Barra, onde a ria de Aveiro se encontra com o mar, as pessoas multiplicam-se em passeios pelos paredões e a areia é cada vez menos. E as barragens também são chamadas ao assunto. Para Paulo Ramalheiro, do Movimento Amigos da Ria de Aveiro (MARIA), a «sucessão de barragens, nomeadamente no rio Douro, fez com que o litoral deixe de ter as areias que eram lançadas pelo rio Douro». Para diminuir este problema, o Porto de Aveiro decidiu, segundo o membro do movimento, aproveitar as areias que retira das dragagens de expansão do porto e devolvê-las ao mar. «Antes o porto vendia esses inertes retirados do fundo da Barra e agora vão reforçar o cordão de Ovar e Mira», explicou Paulo Ramalheira.  

 

Obras na Ria 

Nas ruas de Aveiro, corre a notícia que dá conta do perigo futuro da subida do nível da água. Célia, por exemplo, viu através do Facebook o estudo publicado pela revista cientifica ‘Nature Communications’, mas diz não estar preocupada, porque as inundações na cidade de Aveiro há muito que «não são graves». «Antigamente, sim, isto ficava tudo inundado, mas hoje já não, porque desde que fizeram as obras na Ria, conseguem controlar o nível da água», diz a mulher que trabalha nas salinas e conhece bem a dinâmica da água. 

O estudo divulgado no final de outubro refere que cerca de 300 milhões de habitantes, em todo o mundo, poderão ser afetados com a subida do nível da água a partir de 2050. Relativamente a Portugal, são identificadas as zonas críticas – Aveiro é uma delas. 

No centro da cidade, o nível da água da Ria é controlado através dos diques, que estão mesmo à entrada da cidade, evitando assim que a água passe as margens. Embora exista um controlo, «quando há marés vivas, o parque de estacionamento que está por baixo da A25 inunda», diz António. Além disso, o Movimento Amigos da Ria de Aveiro, criado para defender a preservação da Ria, refere que existem zonas que antigamente não eram alagadas e que agora são. «Mas isso tem a ver com as obras na barra, afundaram a barra para permitir barcos de maiores dimensões e, ao afundar a barra, entra mais água e com mais força», explicou Paulo Ramalheira, da MARIA. Para este movimento, o conhecido cais da Bacalhoeira, onde atracam os navios bacalhoeiros, «é a zona mais crítica, porque há alturas em que, conjugando as marés-vivas com a preia-mar, faz com que a marginal inunde» – e pode mesmo inundar em pleno mês de agosto. As consequências da expansão do Porto de Aveiro já levaram, aliás, esta estrutura a começar a fazer um levantamento das zonas críticas. «O desenvolvimento do porto tem alguns inconvenientes, porque está a abrir-se um processo para que entre mais água dentro do estuário da Ria de Aveiro», explicou Paulo Ramalheira. 

O assoreamento da Ria, que é a obstrução do canal por excesso de areia acumulada, é outro dos problemas que quem ali vive, precisa e quer a continuidade da Ria reconhece. Este excesso de areia provoca, naturalmente, a subida da água. Desde julho que estão a ser feitas dragagens que, segundo os habitantes de Aveiro, são insuficientes. «As dragagens vão apenas fazer a limpeza dos canais de navegação e deixam para trás tudo aquilo que são infraestruturas, clubes náuticos, infraestruturas de pesca artesanal», explicou o MARIA. 

 

Poluição 

Há 20 anos, António pescava o dobro do peixe. Hoje, leva um ou dois peixes e às vezes oferece-os antes de chegar a casa. Há menos peixe a nadar na Ria de Aveiro e, quem ali para todos os dias diz que os tempos mudam e a mudança nem sempre é boa, sobretudo quando a natureza se mete ao barulho e a intervenção humana não chega. «Está a ver, este é um dos grandes problemas», diz António enquanto tira do isco um jacinto de água. Uma semana depois da tempestade Elsa, sobram jacintos-de-água embrulhados em espuma que já não é branca. 

Os pescadores dizem que a poluição se agrava de dia para dia, as descargas das fábricas não ajudam e, «isso sim, é pior do que a subida das águas», acrescenta António, que relembra o dia em que foi para o mar e apanhou com a rede um saco repleto de fraldas. 

Com as mudanças chegam também novos peixes à costa de Aveiro: «Já apanhei um robalo que antes só havia no Algarve. Isto acontece porquê? Porque a água está a ficar cada vez mais quente», atirou António.