O Irão perdeu o seu principal estratega, o general Qassem Soleimani, morto esta quinta-feira por um drone norte-americano perto do aeroporto de Bagdade. Mas ficou mais próximo de um dos seus objetivos: acabar com a longa presença militar dos Estados Unidos no vizinho Iraque.
A fúria e o luto dos manifestantes encherem as ruas de Bagdade e das cidades santas xiitas de Karbala e Najaf, por onde passou a procissão fúnebre de Soleimani, este sábado. Logo no dia seguinte, o Parlamento iraquiano votou por 170-0 a expulsão dos militares norte-americanos do país. A decisão terá de ser ratificada pelo primeiro-ministro do Iraque, Adel Abdul Mahdi – e este este já indicou que o poderá muito bem fazer.
Importa lembrar que entre os oito mortos no ataque que vitimou Soleimani, esta quinta-feira à noite, estava Abu Mahdi al-Muhandis, líder da milícia iraquiana xiita Kata’ib Hezbollah (Brigadas do Partido de Deus, em árabe), apoiada pelo Irão. O grupo integra as Força de Mobilização Populares, com cerca de 150 mil combatentes – a quem o Estado iraquiano deu postos e salários equivalentes aos outros ramos das forças armadas.
“É muito difícil ver como é que qualquer força política no Iraque pode defender a presença dos EUA neste momento”, notou Heiko Wimmen, diretor do Crisis Group para a região, em declarações à DW. Algo sentido pelos 158 deputados iraquianos que não compareceram na votação, sobretudo sunitas e curdos, enquanto os líderes xiitas faziam uma rara demonstração de unidade. Oficialmente, os cerca de seis mil soldados dos EUA estão no país a convite do Governo iraquiano – está por saber se Washington acatará a eventual expulsão.
Fica mais complicada a situação do resto do contingente da NATO no país, dedicado ao combate ao Estado Islâmico – foram canceladas todas as missões de treino após o assassinato. Entre os efetivos no terreno estão 31 militares portugueses, que dão instrução às forças armadas e de segurança iraquianas na base militar de Besmayah, a cerca de 40 quilómetros da capital.
Durante o fim de semana foram disparados morteiros para a Zona Verde – o enclave fortificado onde fica a embaixada norte-americana em Bagdade – e mísseis Katyusha contra a base aérea de Balad, sem perdas de vidas, segundo as autoridades iraquianas. Os militares portugueses estão longe destas áreas, bem e tranquilos, assegurou no domingo o Ministério da Defesa português. Tanto o Governo de António Costa como o Presidente português mostraram preocupação com a situação e apelaram à contenção.
Entretanto, o Kata’ib Hezbollah emitiu um aviso às forças de segurança iraquianas, para “ficarem longe das bases americanas, a uma distância de não menos de um quilómetro, a partir de domingo à noite”, noticiou a al-Mayadeen TV, citada pela BBC.
Tensão Ao mesmo tempo, uma maré humana inundou Ahvaz, no sul do Irão, à passagem da procissão fúnebre de Soleimani e dos outros quatro iranianos mortos, a caminho de Teerão. Dezenas de milhares de pessoas, levaram bandeiras verdes, brancas e vermelhas, em representação do sangue dos mártires, enquanto gritavam: “Morte à América”.
Importa lembrar que Qassem Soleimani liderava desde 1998 as Forças Quds, as tropas de elite da Guarda Revolucionária do Irão, encarregue das operações não-convencionais no estrangeiro. Presidente iranianos foram e vieram, mas a influência do general manteve-se, secundada apenas pelo Supremo Líder, o aiatolá Ali Khamenei.
Tanto a Administração de George W. Bush como a de Barack Obama consideraram que assassinar o general era demasiado arriscado, temendo incendiar a região. “Já devia ter sido feito há muito tempo”, declarou o atual Presidente dos EUA, Donald Trump, garantindo que o assassinato “salvou vidas americanas” de potenciais ataques orquestrados por Soleimani. A decisão foi tomada após a invasão da embaixada dos EUA em Bagdade, por manifestantes furiosos com o bombardeamento norte-americano a bases das milícias xiitas iraquianas, que fizeram 25 mortos.
“Sem hesitação” Como seria de esperar, Teerão prometeu imediamente vingar-se. Mas Trump voltou à carga no Twitter, este domingo, lembrando os biliões de dólares de armamento norte-americano, prometendo direcioná-lo “sem hesitação” contra o Irão, em caso de ataques às muitas bases militares dos Estados Unidos no Médio Oriente.
Trump – cuja geração tem bem presente a humilhante captura de 52 reféns norte-americanos, na embaixada dos EUA em Teerão, em 1979 – ameaçou atingir de forma “muito rápida e muito dura” 52 alvos “importantes para o Irão e para a cultura iraniana”. Já o ministro dos Negócios Estrangeiros iranianos, Javad Zarif, lembrou no Twitter que “visar património cultural é um crime de guerra”. E assegurou: “Começou o fim da presença maligna dos EUA no Médio Oriente”.
Vingança “O meu pai vingava os seus amigos se o seu sangue era derramado. Agora, quem vinga o sangue do meu pai?”, perguntou entre lágrimas Zeinab Soleimani, filha do general, ao presidente iraniano, Hassan Rouhani. “Todos vingaremos o sangue do mártir”, respondeu, perante as câmaras. Mas muitos terão dúvidas no Irão, onde Rouhani e Zarif eram vistos como favoráveis a uma abordagem mais diplomática ao conflito com os EUA – Khamenei e Soleimani representavam a linha dura.
Mais que os seus mísseis balísticos, forças convencionais ou o inacabado programa nuclear, o Irão tem dois grandes trunfos: a proximidade ao Estreito de Ormuz – por onde passa cerca de um quinto do petróleo mundial – e a sua rede de satélites por toda a região.
O Irão chama-lhe o “Eixo de Resistência”, arquitetado pelo próprio Soleimani. Estende-se da Síria de Bashar Al-Assad, passando pelo poderio militar do Hezbollah no Líbano, mais as milícias xiitas iraquianas, até aos rebeldes houthis no Iémen.
“A lição de Soleimani – que ele cristalizou como doutrina no Irão – é que para um poder mais fraco como o Irão, a geoestratégia funciona apenas por confrontação indireta”, escreveu o analista Graeme Wood no Atlantic. “Encontras pontos frágeis nos teus inimigos, nervos expostos em sítios esquecidos”, explicou. Assassinando Soleimani, Trump deixa a bola no campo do Irão, obrigado a responder de forma decisiva ou perder reputação – na mesma altura em que ficou sem o seu principal estratega.