Mais um ano que acabou, mais um ano em que o sistema informático Citius preferiu o juiz Ivo Rosa na hora de distribuir processos. O sorteio é aleatório, garantem, mas os números a que o SOL teve acesso mostram que continua a haver um desnível que se acentua ano após ano.
No total, entre 1 de janeiro de 2017 e o final de 2019, Ivo Rosa conseguiu mais 31 distribuições – entre cartas rogatórias, processos em fase de inquérito e instruções – do que Carlos Alexandre.
Atentando apenas no ano de 2019, até 19 de novembro o juiz Ivo Rosa já havia visto o programa atribuir-lhe 55 processos, enquanto que o seu colega se ficara apenas pelos 51 – ou seja uma diferença de quatro distribuições. Depois disso, sabe o SOL, a diferença não se terá esbatido. E isso nota-se até nos processos mais mediáticos: se nos últimos tempos Carlos Alexandre ficou com a instrução do caso Tancos, o juiz Ivo Rosa (neste caso a magistrada que o substitui) ficou com as instruções do caso Hells Angels e do processo relativo ao furto de 55 armas Glock do armeiro da Direção nacional da PSP.
Questionado pelo SOL sobre a diferença de processos distribuídos, o Ministério da Justiça afirmou ontem que «os critérios de distribuição eletrónica resultam do que está previsto na Lei, nomeadamente no art.º 204º e seguintes do Código do Processo Civil». O gabinete de Francisca Van Dunem – numa resposta conjunta com o Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ) – admite que será feita uma análise dos algoritmos de distribuição eletrónica no âmbito da modernização dos Sistemas de Informação de Suporte à Atividade dos Tribunais.
Um Histórico de preferências
Desde 2016, em que o número de distribuições teve um desnível de três processos – Carlos Alexandre terminou o ano com 84 processos e Ivo Rosa com 81 -, que o fosso foi crescendo, sempre em benefício do juiz que tem em mãos a instrução do processo mais mediático do país, a operação Marquês.
Como o SOL já havia revelado há uns meses, o ano de 2017 terminou com 73 processos distribuídos a Ivo Rosa, contra os 60 que ficaram nas mãos de Carlos Alexandre. No ano seguinte, ou seja, em 2018 – ano em que foi feita a distribuição para fase de instrução do caso que tem José Sócrates como peça central – o desnível acentuou-se: Ivo Rosa ficou com 76 processos, mais 14 do que Carlos Alexandre. E no ano que agora terminou, a tendência manteve-se com Ivo Rosa a ganhar a guerra das distribuições, apesar de estar em exclusivo com operação Marquês. É que apesar de ter pedido para ficar unicamente dedicado à instrução deste processo, foi colocada outra juíza – primeiramente Ana Peres, entretanto substituída por Conceição Moreno – para fazer as suas vezes. Mas, ainda que na prática haja três juízes, a distribuição continua a ser apenas pelos dois.
As listagens a que o SOL teve acesso mostram ainda que em 2015, Carlos Alexandre acabou o ano com 119 distribuições, menos do que as que conseguiram João Bártolo e Ivo Rosa – que estiveram em momentos diferentes naquele tribunal e ficaram no total com 121 processos.
O SOL pediu ontem uma posição ao Conselho Superior da Magistratura, mas não recebeu qualquer resposta até à hora de fecho desta edição.
O programa que dá ‘muitos erros’
Quando em 2018, o Citius distribuiu a operação Marquês a Ivo Rosa, os três erros que o sistema deu antes de indicar o nome do magistrado perante uma plateia de jornalistas, funcionários judiciais e o próprio trouxeram o assunto da fiabilidade do programa informático novamente para a ordem do dia.
Mas tais erros continuaram, levantando ainda mais suspeitas sobre a fiabilidade do Citius. Um desses casos, segundo o SOL apurou, foi a recente distribuição do processo Hells Angels, a 10 de outubro de 2019, que foi parar ao juiz Ivo Rosa, depois de sete tentativas falhadas – todas elas feitas com vários minutos de diferença.
Confrontado com esta situação, o Ministério da Justiça e o IGFEJ garantiram desconhecer o episódio: «Não obstante não ter sido indicado o NUIP (Número Único de Identificação do Processo) que permitiria uma análise mais rigorosa, o IGFEJ não tem registo de comunicação da situação referenciada».
E, na sequência das questões feitas sobre os erros sucessivos, nomeadamente com os que se verificaram na distribuição processo Hells Angels, a tutela admitiu que o algoritmo será analisado nos próximos tempos, não referindo, porém, se se analisarão possíveis erros passados, bem como se se procederá a uma qualquer minimização de possíveis falhas registadas até então.
«No âmbito da modernização dos Sistemas de Informação de Suporte à Atividade dos Tribunais está prevista a análise e revisão de diversos componentes de software, o que incluirá a análise dos algoritmos de distribuição eletrónica», garantiram ontem ao SOL o Ministério da Justiça e o IGFEJ na referida resposta conjunta.
Mas os erros que surgem durante os processos de distribuição não são o único sinal que põe em causa a fiabilidade do sistema. Como o SOL revelou em dezembro de 2018 o histórico da tramitação do processo Marquês no sistema informático usado nos tribunais, o Citius, desapareceu durante algum tempo deixando de estar acessível até ao juiz que tem em mãos a instrução do processo.
O desaparecimento do histórico de um processo foi considerado na altura algo inédito – sobretudo porque o apagão apenas afetou o caso Marquês. E Ivo Rosa chegou mesmo a enviar na altura um ofício para o presidente do IGFEJ.
Estes episódios vêm reforçar as fragilidades do sistema – cuja gestão a cargo de um instituto tutelado pelo Ministério da Justiça, o IGFEJ, é já criticada.
Aliás, a Associação Sindical dos juízes e o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público já há muito que alertaram para o facto de a distribuição dos processos estar nas mãos de um instituto que depende de tutela política, sendo a opção mais consensual para a gestão deste sistema o Conselho Superior da Magistratura.