A prudência aconselharia a que não escrevesse sobre este tema.
O SOL teve acionistas angolanos, pelo que seja o que for que eu escreva sobre Angola é suscetível de interpretações malévolas.
Acontece que nunca me deixei condicionar pelas conveniências.
Nunca escrevi ou deixei de escrever sobre isto ou sobre aquilo por tática ou por cobardia.
O meu compromisso sempre foi com os leitores – e com a minha consciência.
E assim continua a ser.
Ao contrário dos que receberam as notícias sobre Isabel dos Santos com grande excitação, e sem se colocarem dúvidas, eu fiquei de pé atrás.
Quem ‘ofereceu’ ao autoproclamado Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação os 750 mil documentos?
Como entender que, no dia seguinte a saírem as primeiras notícias sobre Isabel dos Santos, o PGR angolano se tenha apressado a dizer que poderia passar um mandado de captura internacional contra a empresária?
E como interpretar a sua vinda a Portugal para pedir colaboração às autoridades portuguesas nas investigações a Isabel dos Santos – quando, há um ano, a justiça angolana tinha feito exatamente o contrário em relação a Manuel Vicente, não querendo que ele fosse investigado em Portugal e exigindo o envio do seu processo para Luanda (como acabou por acontecer)?
A junção das peças do puzzle leva a uma conclusão óbvia: o atual poder em Angola usou o Consórcio Internacional de Jornalistas para eliminar Isabel dos Santos.
O Presidente João Lourenço usou-se do Consórcio para dirigir um ataque à filha primogénita do ex-Presidente.
E muitos portugueses aplaudiram – não percebendo até que ponto vamos sofrer as consequências desta guerra.
O que vai suceder às empresas portuguesas onde Isabel dos Santos tem investimentos?
O EuroBic vai rebentar – não tenho qualquer dúvida sobre isso; a Efacec se calhar também; a NOS e a Galp vão sofrer; e outros investimentos mais pequenos irão ao ar.
E isto remete-nos para outro aspeto do caso: qualquer que seja a origem da fortuna de Isabel dos Santos, os seus investimentos em Portugal eram feitos às claras e importantes para a economia portuguesa.
Ela não investiu na droga, nem na prostituição, nem no jogo ilegal – investiu em empresas ‘normais’ e em setores coerentes com a sua atividade empresarial, no ramo das petrolíferas e da eletrónica (recorde-se que foi presidente da Unitel).
Dizem os mais excitados que o Banco de Portugal e a CMVM não deveriam ter autorizado os investimentos.
Mas porquê e como?
O BdP e a CMVM metiam-se no avião e iam a Angola investigar as atividades de Isabel dos Santos e o modo como tinha ganho o dinheiro?
E fazia o mesmo em relação ao investimento chinês? E ao investimento brasileiro? Ou todos os investimentos de países ‘duvidosos’ deveriam pura e simplesmente ser vetados?
E estaria Portugal em situação de o fazer?
Num país capitalista sem capitalistas, como um dia disse Sarsfield Cabral, poderemos dar-nos a esse luxo?
Haverá noção dos milhares de milhões de euros que angolanos e chineses injetaram na economia portuguesa em quase todas as áreas – das telecomunicações ao imobiliário, passando pelos media, pelas petrolíferas, pela eletrónica, pela energia, etc.?
E de quanto isso significou de contribuição para o PIB português? E de quantos empregos criou?
Os portugueses, portanto, deveriam estar preocupados e não exultantes.
Eu tenho uma vantagem sobre a generalidade dos portugueses: entrevistei João Lourenço há uns anos e pude conhecê-lo um pouco.
Ele era secretário-geral do MPLA, num tempo em que o MPLA era abertamente pró-soviético – e ele era um ortodoxo.
Nessa entrevista, recitou a cartilha partidária, mostrou-se um homem pouco aberto e reagiu com alguma agressividade às perguntas incómodas.
Quem pense que ali está um democrata lutando contra os corruptos antecessores, desengane-se: está ali um duro pronto a eliminar os adversários.
Aliás, um homem que foi posto no poder por José Eduardo dos Santos e a primeira coisa que fez foi começar a perseguir-lhe a família, metendo uns na prisão, demitindo outros, arrestando os bens a outros, mostra que não tem escrúpulos nem recua perante nada.
Esta guerra agora começada vai ser terrível para Angola e para Portugal.
Angola era para Portugal, nos últimos tempos, a grande oportunidade em termos de relações externas: os portugueses iam para lá trabalhar, os angolanos vinham cá investir, nós levávamos para lá o know-how que lhes faltava, eles traziam para cá o capital que nos faltava.
E esse intercâmbio, a presença de portugueses, as relações amigáveis entre Estados, também contribuíam para a democratização de Angola.
Ora, tudo isto está hoje em causa.
Os portugueses vão deixar de ir para lá, os angolanos vão deixar de investir cá, o intercâmbio vai acabar.
Angola vai fechar-se ao exterior, entregando-se a uma guerra intestina.
A relação com um país com o qual planeávamos fazer grandes coisas, pode estar irremediavelmente comprometida.
Julgo que, a partir daqui, o regime angolano se vai tornar mais intolerante.
As guerras de poder conduzem a isso.
Uma guerra destas, formidável, vai levar necessariamente ao endurecimento do regime.
No tempo de Eduardo dos Santos ainda havia uns ares de democracia: Rafael Marques andava por lá e publicava um jornal que todos os dias atacava a família do Presidente em termos violentos. Amanhã haverá lá jornais assim?
Angola pode acabar numa ditadura sem lei, igual à de outros países de África.
Caso isso aconteça, o dito Consórcio de Jornalistas terá tido um triste papel, entrando numa guerra a favor de uma das partes.
Aí verá a armadilha em que ingenuamente caiu.