A discussão não é de hoje. Em 2018, tornou-se mais palpável em França com a decisão do Presidente Emmanuel Macron de devolver ao Benim um conjunto de obras que tinham sido pilhadas pelo exército francês no final do século XIX. Na academia, a conversa já vinha de longe.
Em Portugal, chegou à esfera política através do Livre, com a proposta de aditamento ao Orçamento do Estado apresentada pela deputada Joacine Katar Moreira(à qual na noite de quinta-feira, já depois disso, o partido retirou a confiança política) que recupera o ponto do programa do Livre às legislativas para a «descolonizar a Cultura, contextualizando a História de Portugal nos museus, exposições, performances e materiais didáticos para que seja estimulada a visão crítica sobre o seu passado esclavagista, colonial e de violências perpetradas sobre outros povos e culturas e reconhecido o seu legado e influência na sociedade atual». Isto através da criação de condições para a elaboração de uma «listagem nacional de todas as obras, objetos e património trazidos das ex-colónias e que estão na posse dos museus e arquivos portugueses de forma a que possam ser restituídos ou reclamados pelos Estados e comunidades de origem». Na proposta apresentada pela deputada, essa listagem seria feita por um grupo de trabalho composto por museólogos, curadores e investigadores científicos.
E não foi o Livre o único partido a endereçar-se a esta questão no seu programa. Também o PAN faz uma proposta semelhante, ainda que não exatamente nos mesmos termos, e diz o programa do partido de André Silva: «Devolver o património cultural das ex-colónias existente em território português, após levantamento deste património por uma comissão técnica, assegurando-se assim a reposição de justiça histórica e que está já a ser levada a cabo em alguns países europeus, onde estão a ser restituídas algumas peças do património cultural das ex-colónias que integravam as coleções públicas desses países».
Património não está inventariado
A questão da inexistência de um inventário nacional do património trazido para Portugal das suas ex-colónias, levantada por ambos os partidos, vem há vários anos preocupando António Pinto Ribeiro, ex-curador da Fundação Calouste Gulbenkian e investigador associado do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, e uma das vozes que mais têm procurado trazer para a discussão pública o que descreve como um «problema gravíssimo», cuja resolução deve ser tomada como «tarefa prioritária» pelos decisores políticos.
«Podem ser 10 mil, 50 mil ou 80 mil. Os próprios diretores dos museus não sabem», afirmava na delegação da Gulbenkian de Paris no dia em que, em novembro de 2018, era divulgado o resultado do relatório encomendado pelo Presidente francês, Emmanuel Macron, sobre a restituição das coleções de arte africana provenientes do período colonial.
Como resultado desse relatório, da autoria da historiadora de arte francesa Bénédicte Savoy e do economista senegalês Felwine Sarr – que nas conclusões recomendava a devolução tanto das obras levadas para França, como também das que chegaram ao país por via de missões científicas ou doações de administrações coloniais – Macron tomou uma decisão sem precedentes e anunciou a devolução «sem demoras» à República do Benim de 26 obras integradas na coleção do Museu do Quai Branly – Jacques-Chirac, tomadas pelo exército francês em 1892.
«Muitos desses objetos estão nas reservas, nem sequer estão expostos», lembrava Pinto Ribeiro . É por exemplo o caso da peça de arte africana avaliada em dois milhões de euros e na posse do Museu de Faro, que, segundo uma notícia do Público de dezembro passado, aguardava «a ‘melhor oportunidade’ para ser exposta numa mostra sobre misticismo e religiosidade».
Pela altura da discussão suscitada em França pelo próprio Presidente, no Reino Unido, o Financial Times publicava um artigo descrevendo a «febrilidade» que tomara conta dos «círculos de curadores e administradores dos grandes museus do mundo». Depois do exemplo francês, outros países poderiam ver-se forçados a fazer o mesmo, escrevia o jornalista Philip Stephens num artigo em que lembrava, por um lado, que «em muitos casos as coleções foram adquiridas legalmente», e recordando por outro como, «ao longo da História, a arte seguiu o poder – os vencedores acumularam os despojos. Muitos dos acordos feitos pelos colonialistas eram, provavelmente, duvidosos, mas é muito espinhoso aplicar os atuais critérios éticos ao comércio, alguns dos quais são bem antigos».
No mesmo artigo, identificava um «consenso cada vez mais alargado» em torno do tema: «Cada vez é mais difícil recusar a devolução de objetos culturais levados pelos saqueadores coloniais».
Uma ‘forma de homenagear’ a relação Portugal-Angola
Em Portugal, a apresentação da proposta do Livre esteve na origem do primeiro ataque xenófobo vindo de um deputado na Assembleia da República, quando André Ventura sugeriu que a deputada Joacine Katar Moreira fosse «devolvida ao país de origem» (o comentário mereceu naturalmente o repúdio do presidente da AR e dos partidos). Quanto à proposta, André Ventura haveria de a descrever como «um ataque a Portugal», bem como à sua História. «Como a Dr.ª Joacine, sou deputado eleito pelos portugueses, não fui eleito por nenhum outro povo estrangeiro.
Quando nem os outros povos nos pedem a restituição dos bens das ex-colónias, qual é o sentido, em vez de serem os outros a pedir-nos, ser uma deputada portuguesa vir dizer: ‘Sim senhor, nós fomos uns criminosos terríveis, temos que devolver o nosso património a outros países’?».
A verdade é que Angola já tinha demonstrado a intenção de o fazer. E esta semana, ouvido pela TSF, o secretário de Estado da Cultura, Aguinaldo Cristóvão, voltou a sublinhá-lo. «Faz sentido que Portugal reflita sobre a devolução do património museológico exportado de Angola», afirmou. «A temática da exportação e da devolução dos bens culturais é antiga e insere-se muito bem nas relações entre os dois países». A devolução desses bens, acrescentou, seria uma «via salutar para homenagear as relações culturais entre Portugal e Angola».
A mesma linha de argumentação segue Pacheco Pereira que, na Circulatura do Quadrado (TVI24) discordou da forma como a questão foi colocada pelo Livre, por implicar «uma noção de culpa». «Ou seja, os portugueses são culpados pelo seu passado de colonização e de alguma maneira têm de pedir desculpas. […] Sou contra estes pedidos de desculpa – acho que isso é uma maneira errada de ver a História». Ainda assim, concorda com a devolução de obras ou objetos em casos específicos:«Há casos em que se justifica devolver, porque há duplicados, há obras que não são muito relevantes [para nós] e são importantes como fator de identidade para esses países». Advertiu, contudo, para o facto de nem todas as obras serem resultado de saque ou de pilhagens. «Nalguns casos, o facto de terem vindo para a Europa salvou-as […] Admito que há casos em que se justifique devolver [mas] não deve haver uma norma genérica e muito menos que se baseie num princípio de culpa».
O mesmo cuidado na avaliação de cada situação defende também Pinto Ribeiro, que já antes de 2018, iniciava o capítulo com o qual contribuiu para o livro Geometrias da Memória: Configurações Pós-Coloniais (2016, ed. Afrontamento) com a frase: «os museus ou são pós-coloniais ou não são nada».
Dizia o investigador na Gulbenkian de Paris, em 2018: «As peças devem ser reclamadas pelos Estados, não pessoas particulares. Há que ver os critérios da legitimidade de como as obras chegaram à Europa». E explicava: «É preciso analisar se uma determinada peça faz parte do património essencial de um país ou de uma tribo. E há ainda a questão dos arquivos coloniais. Devem ser dados os originais ou cópias digitalizadas?».