O cheiro de Luanda já me enche a alma quando, fora do aeroporto, faço memória do 30 de Maio de há 45 anos e ali pousei, então de farda vestida, para servir as Forças Armadas Portuguesas na construção do País novo que ia nascer. Estava em Angola, em jornada de saudade e, ainda no avião da TAP, olhando a baía luandina, já redescobrira os aromas desta terra enorme, já reachara os seus cheiros, a sua grandeza.
O meu caminho era para o Uíge, por onde, em 1974/75, fiz a minha jornada angolana de África e esperavam-me o Mário Ribeiro e o João Nogueira – que iriam ser companheiros de um tempo de 18 dias a galgar o chão angolano e a reencontrar sítios onde, com orgulho, com garbo, muitos militares portugueses arriscaram a vida para garantir o processo de descolonização.
«Furriel Viegas?!», perguntou-me, ao lado, um angolano, o engenheiro Eugénio Silva, que fez vida na prospecção de petróleos e que nos trágicos primeiros 6 dias de Junho de 1975 morava em Carmona, a actual cidade do Uíge, e foi um dos milhares de cidadãos uíjanos que a tropa portuguesa recolheu nas ruas da cidade e refugiou no quartel, salvando-os da matança que foram os dramáticos combates que regaram a cidade de sangue e de mortes.
«Acolheram várias famílias no quartel, incluindo a minha, famílias que não se sentiam em segurança, após os conflitos iniciados na madrugada de 1 de Junho de 1975. Todas foram servidas pelas tropas, com as três refeições diárias! No nosso caso, estivemos lá 14 dias, mas, antes de nós, muitas famílias por lá passaram e já estavam em Luanda! Todas foram muito bem tratadas!», escreveu e repetia Eugénio Silva, angolano de Camabatela, ao tempo morador em Carmona.
Deixei-me abraçar por aquele então jovem estudante, que não se cansou de repetir, no aeroporto e depois na sua casa de família: «Este homem salvou-nos a vida».
Este homem, o surpreendido e emocionado antigo furriel, entendam-o como o colectivo dos Cavaleiros do Norte do BCAV. 8423, os últimos militares portugueses do Uíge angolano, para onde ia eu, agora – recordando terras de várias guarnições: Ponte do Dange, Vista Alegre, Aldeia Viçosa e o saudoso Quitexe, depois Carmona, mas também Santa Isabel, Zalala, Luísa Maria, o Songo.
A Luanda de ontem, a Luanda de hoje!
Luanda, a cosmopolita Luanda que conheci há 45 anos, tem a sua baía ainda mais bela, com a imensa restinga cheia de gente, jovens a bambolearem o corpo, passeando-os meios despidos nas areias e águas da praia e a viverem os prazeres de um domingo bem encalorado, olhando o mar; e homens de negócios, famílias inteiras, gente despida de qualquer preconceito, sem importar o estatuto social ou a cor de pele, ou a etnia, toda a gente nivelada em todos os sentidos.
Procuro, mas já não acho a mítica Portugália, a Paris Versailles, o Amazonas, nem os Florestas e o Polo Norte – locais de culto da tropa colonial. Estão ocupadas com outros serviços, ou foram demolidos (o Polo Norte) numa cidade em bulício permanente e que se agigantou para os lados de Viana (onde prosperam muitos empresários portugueses), para o Kilamba e Talatona – cidades satélites, modernas, onde se respira confiança e segurança. E para a Corimba, a Praia do Bispo, por aí fora, até quase à Barra do Quanza ou ao Cacuaco.
Resiste o Mutamba, são coloniais os edifícios dos Correios e da Polícia, o Porto de Luanda continua aberto ao mundo, o Estádio dos Coqueiros (onde treinavam os zambianos do Green Eagles, para a «champions» africana, com o 1º. de Agosto, passando os angolanos) e fui espreitar a Fortaleza – histórico palco das bravas lutas com os invasores holandeses e mandada construir por Paulo Dias de Novais, a primeira estrutura militar defensiva construída em Angola, nos idos anos de 1575.
A Fortaleza de S. Miguel de Luanda, assim se chamou, foi transformada em Museu de Angola (em 1939), em 1961 voltou a assumir funções militares (nela se instalando o Comando das Forças Militares.
Portuguesas) e, após a Independência, em 1978, passou a albergar o Museu das Forças Armadas Angolanas.
Foi lá que achámos, com grande surpresa, as estátuas de D. Afonso Henriques, de Diogo Cão e de Paulo Dias de Novais. Assim os angolanos guardam a sua própria História. Dias depois, já no Huambo (a antiga Nova Lisboa) viria a encontrar a de Norton de Matos – num jardim ao lado da praça principal, a que chamam Jardim da Cultura e debaixo dos olhos do Palácio do Governador Provincial.
A caminho do chão do Uíge!
O caminho para o Uíge foi o mesmo de há anos, em asfalto, passando Cacuaco e Caxito (de trágicas batalhas no ido ano de 1975, entre MPLA e FNLA), terras onde muita gente se via na rua, tranquilamente e olhando o jeep grande e branco, que parava e perguntava: «Como é que vai Angola?».
Gente anónima, ao acaso achada nas largas ruas, foi-nos contando da sua esperança: «Nós vai no futuro, nós acredita no João Lourenço, os Angola vai ser muito melhor».
Os caleluias (pequenas motorizadas com atrelados cheios de gente, a caminho de um qualquer destino) e os táxis azuis levam e trazem pessoas de e para todo o lado, os machimbombos, mais raros mas também sobrelotados, galgam os mais de 300 quilómetros da viagem, mais difícil nas duas cordilheiras com troços de 10% de inclinação – onde, lentos e cautelosos, três pesados camiões carregavam madeira para o porto de Luanda e nos demoraram a viagem.
O futuro parecia escrito nos olhos desta gente que, para trás e para a frente, brancos e negros, sem distinção de cores, galgava as estradas longas, de uma Angola imensa e por onde íamos matar as saudades da nossa jornada africana do Uíge. Depois Úcua e o Piri, o corte para o Quibaxe e, deixando a província do Bengo, a entrada na do Uíge, pela Ponte do Dange – onde os Cavaleiros do Norte do BCAV. 8423 fizeram guarda nos últimos 15 meses da soberania portuguesa, garantindo a segurança do principal itinerário de Luanda a Carmona – num tempo, o de 1974/75, em que os movimentos de libertação, em busca de implantarem a sua ideologia política e social, a todo o custo queriam enraizar os seus ideais nas populações e não se incomodavam em provocar frequentes quezílias com a tropa portuguesa.
A velha ponte colonial foi destruída pela guerra e uma nova construção dá passagem para o norte, pela Estrada do Café fora, até Vista Alegre, depois Aldeia Viçosa, Dambi Angola e o corte para a Fazenda Santa Isabel, até ao Quitexe, a 40 quilómetros de Carmona, depois o desvio para a mítica Fazenda de Zalala: «a mais dura escola de guerra».
Os bananais e a imensa mata entram na estrada, parecendo aparados por tesoura de jardim, mas vê-se, a nu olho, que é cortada pelos pesados camiões que de lá acarretam madeira. Disse-nos voz do povo: «Para a China, para pagar dívidas, mais o petróleo».
Um Quitexe muito igual
O Quitexe está igual, quase igual do «nosso» saudoso Quitexe de 1974/75. Logo na entrada, o velho Posto 5 – onde se guardava a vila e detia quem menos bem se comportava, em jeito. Depois, a administração (muito bem conservada), as casas dos Morais (agora o Banco BIC) e do Carlos Gaspar, os restaurantes Topete, o Rocha e o Pacheco, a escola primária, a casa dos Correios, o Clube do Quitexe (onde em 1974 vimos «Eusébio», o filme do pantera negra), o hospital, tudo na Rua de Cima (a Estrada do Café).
O edifício do Comando do BCAV. 8423, na de Baixo (a avenida) está em ruínas, aparentemente com uma família lá dentro, num contentor. Há roupa a secar numa corda e crianças a espreitar. Outras, perguntam-nos o que por ali fazemos e brincam com carrinhos de madeira. O espaço das casernas, oficinas, refeitório, balneários e parada do BCAV. 8423 está ocupado com pavilhões, de onde saem e entram jovens estudantes, todos de bata branca e a olhar-nos com curiosidade. Ao lado, mesmo ao lado, está o adro da Igreja de Santa Maria de Deus e a missão onde pastoreou o padre Albino Capela, agora a viver em Barcelos.
O «nosso» quartel inexiste, na sombra de um enorme embondeiro. Da porta d´armas, resta o sítio e uma avenida que foi de alcatrão está agora esburacada, aqui e ali ainda com o separador central com alguns verdes a alegrar o espaço.
Um comerciante de Malanje abriu loja na antiga messe de oficiais e diz: «Isto está muito parado». A messe e bar de sargentos, a secretaria e a casa dos furriéis são habitações ocupadas, de gente que nos espreita e saúda com sorriso largo: «Saúde, papá…, brigado», dizem-nos algumas crianças. E recusam-se a vender os seus pequenos brinquedos de madeira.
A casa do comandante está destelhada, pintada de azul e abandonada.
Mesmo em frente, a moradia que foi de Rui Rei e é agora a Delegação da Polícia Nacional. Ao lado, a antiga enfermaria militar está ocupada por serviços públicos. Funcionam a escola, a administração e o hospital coloniais, edifícios coloniais bem conservados.
Deixámos o Quitexe com emoção, deixando cair uma traiçoeira lágrima de alegria e já saudade. Íamos a caminho de Carmona – cidade fundada por Montanha Pinto e batizada pelos portugueses com o nome de Presidente da República. Que os angolanos fizeram Uíge, capital da província deste nome, no norte de uma Angola que foi chão de muitas lutas e hoje é terra de esperança.
O regresso a Carmona,
Carmona, a agora cidade do Uíge, está aqui à frente, já a cortar para praça central, onde reencontro os edifícios coloniais da Zona Militar Norte (agora Tribunal Militar), a Câmara, os CTT, o Tribunal, o jardim bem cuidado e a avenida Capitão Pereira, agora Agostinho Neto, e com um edifício novo – o de apoio dos deputados provinciais.
O cheiro uíjano é o mesmo de há 44 anos, sinto-o…, e a emoção reaviva a memória, recuando no tempo, a 1 de Junho de 1975, quando, enlutada em guerra aberta, com ferozes e sangrentos combates entre FNLA e MPLA, os Cavaleiros do Norte acudiam a todos, sem diferença de cor e de ideologia.
«A matança prossegue em Carmona (…). As ruas estão cheias de cadáveres (…)», noticiava o Diário de Lisboa, acrescentando: «Comandos da FNLA invadiram e destruíram as casas de dezenas de simpatizantes do MPLA; os que escaparam refugiaram-se no Paço Episcopal e no aquartelamento Português» – o BC12.
Os trágicos combates de Carmona tornaram os Cavaleiros do Norte homens sem sono, em missão permanente e sem um recuo. Sem descanso, sequer fome, nesses 6 dias de guerra aberta, rasgada e multiplicada pelos cantos da cidade. Referia o jornal: «o Exército Português procura impedir os raids dos homens de Holden Roberto, que retomaram tragicamente, os métodos da UPA, em 1961».
O quartel (o BC12) acolheu milhares de civis, assim evitando a matança, que chegou a ser tentada nas camas do hospital, impedida pelos militares portugueses, logo a 1 de Junho e dias seguintes de 1975, quando Carmona era um inferno de fogo e combatentes da FNLA e do MPLA lutavam quase corpo a corpo, ensaguentando e enlutando a cidade.
Obuses, morteiros e granadas rebentavam noite e dia. As rajadas faziam estranhos coros nos céus e a tropa portuguesa tinha a missão de proteger os civis e equipamentos públicos, numa cidade que não a tinha em grande cuidado e respeito.
Ao passar frente ao liceu, nessa alvorada de domingo, a Berliet em que seguíamos para o BC12 foi atacada e uma rajada silvou sobre as nossas cabeças.
«Filhos da p…», ouviu-se um grito de aflição. Foram momentos sem recuo, de enfrentar tudo e todos, sem temores. Nada iguais aos vividos sempre que galgávamos os trilhos e picadas e as matas semeadas de ameaças – de arma em riste, imaginando e temendo que, no horizonte misterioso e a perder de vista, um qualquer perigo nos amortalhasse.
Foram piores.
Tudo isso me renasceu na memória: o cruzamento do sinaleiro da Rua do Comércio, onde mulher europeia dias antes nos cuspira e batizara a tropa de cobardes e traidores e nessa madrugada, com 4 ou 5 crianças, nos pediu apoio e levámos para o quartel; a Rádio Clube de Uíge, de onde «vimos» a matança do capinzal, para o lado da zona industrial, e de lá recolhemos feridos, onde achámos uma bota com pé negro dentro, de corpo regado a gasolina e cortado a catanada; os combates dos bairros suburbanos, regados de sangue de angolanos que entre si lutavam, irmãos da mesma luta pela independência mas ali inimigos de morte; o choro da muita gente que não entendia aquela guerra e pedia apoio à tropa portuguesa. Nunca recusado. O edifício do Banco de Portugal, de onde escoltámos pesado carregamento de valores, para o aeroporto.
A Carmona colonial continua quase igual !
O Exército Português estava limitado ao Batalhão de Cavalaria 8423 – e nem todas as Companhias… – e Deus sabe quanto heroísmo, quanta bravura, se soltou da alma dos bravos homens que do BC12 saíam para a cidade, enfrentando mil perigos e salvando centenas de vidas, permanentemente arriscando as suas!
Tudo isto me vem à memória, neste regresso à saudosa Carmona, que agora é Uíge, e era cidade moderna, jovem, febril e super-activa, parecendo desenhada a régua e esquadro, com bairros e jardins onde se semeavam verdes, os bairros habitacionais compartilhados por brancos e negros, angolanos de todos os credos e origens! A piscina, a zona industrial, a praça dos serviços públicos: Tribunal, CTT, Paços do Concelho e Comando Militar. Tudo soltou memória de saudade da terra uíjana de Angola!
A malha urbana colonial continua praticamente igual – mas agora rodeada de bairros, que a cercam, até e depois do BC12 e na estrada para o Songo. Há alguns edifícios não concluídos e abandonados e escolas novas, na saída para o Quitexe, por lá se achando muitos estudantes.
Os locais de culto da tropa portuguesa ainda por lá se encontram: o renovado Pinguim, o bar do Eugénio, o mercado, o velho Cine Moreno, o pavilhão do Recreativo do Uíge, as piscinas, a emblemática Rua do Comércio, o bairro Montanha Pinto, o aeroporto, o bar Diamante Negro – quem o pode esquecer? Fechadas, achámos muitas lojas do tempo colonial e também o restaurante Escape, moda dos idos 1975.
Foi esta Carmona que recordei, 45 anos depois, em jornada de saudade pela terra africana do Uíge angolano.