A luta contra um ‘inimigo comum’

Numa semana marcada pela morte do jovem médico que alertou para o surto em Wuhan, a China reforçou medidas para travar o vírus. Em Portugal, houve críticas à preparação. Graça Freitas sublinha que a resposta está a ser estruturada e defende que não se deve ativar meios desproporcionais à situação atual.

Duas semanas depois de a China ter colocado mais de uma dúzia de cidades sob quarentena, entre as quais Wuhan, o epicentro do surto do novo coronavírus, ainda não há sinais de que a epidemia esteja controlada e não foi descartado o cenário de pandemia. As autoridades de Wuhan começaram nos últimos dias vistorias porta a porta para tentar perceber se há pessoas com febre em casa que possam estar infetadas e a continuar a cadeia de contágio, no que a vice-primeira-ministra da China, Sun Chunland, descreveu como medidas de guerra, evocando a pandemia de gripe espanhola em 1918. Hong Kong e Macau avançaram também com medidas de força para tentar evitar que o vírus, a manifestar-se, se espalhe na comunidade como aconteceu na província de Hubei, na China Continental.

Macau fechou casinos por duas semanas e pediu à população para ficar em casa. As ruas estão desertas, os restaurantes vazios e até as igrejas fecharam e as missas passaram a ser transmitidas online. Independentemente do que acontecer daqui para a frente, o impacto na economia deverá ser brutal: por toda a China, várias empresas anunciaram o encerramento de fábricas e lojas, de cadeias internacionais como a Pizza Hut e KFC – que enceraram temporariamente 30% dos restaurantes no país – a fabricantes automóveis como a Toyota, Hyundai ou Kia, que alargaram a suspensão da produção agora até dia 16. 

A corrida a máscaras por todo o mundo – a Tailândia ou por exemplo a cidade russa de Khabarovsk tornaram o uso obrigatório – levou a Organização Mundial de Saúde a reconhecer que faltam equipamentos de proteção, desde logo na China, e anunciar que serão distribuídos milhares de kits. Em muitos países, joga-se já pelo seguro. Na Coreia do Sul, as autoridades permitiram esta sexta-feira a realização do tradicional casamento coletivo na Igreja da Unificação, mas entre os 30 mil participantes vários casais apareceram de máscara. Os hábitos alteram-se e com o número de casos na China a duplicar a cada quatro dias – ontem passaram a barreira dos 30 mil – não parece haver certezas de como vai evoluir a epidemia – a última estimativa das autoridades chinesas é que o momento de viragem, em que os casos começarão a diminuir, possa acontecer agora a 20 de fevereiro, disse esta semana à CCTV Jiang Rongmeng, do grupo de peritos da comissão nacional de saúde do país.

Nessa altura, terão passado dois períodos máximos de incubação do coronavírus (14 dias) desde o início das medidas de isolamento na província mais afetada, Hubei. O diretor-geral da OMS tem feito apelos veementes para que os países não baixem a guarda e ativem planos de contingência, numa altura em que a preocupação, fora da China, é conter a disseminação do vírus e evitar que casos importados levem a surtos de maior dimensão. «Nenhum país e nenhuma organização pode parar este surto sozinho. A nossa melhor esperança – e a nossa única esperança – é trabalharmos juntos», apelou esta sexta-feira Tedros Adhanom Ghebreyesus. «Temos um inimigo comum que é perigoso e que pode trazer sérios distúrbios – sociais, económicos e políticos. Este é o momento de combatê-lo em uníssono», afirmou. 

Ao SOL, a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, admitiu que, apesar de existirem simulações matemáticas, é impossível prever com rigor quando chegará o pico e como vai evoluir a epidemia. Resta a preparação. «Há boas notícias que são o facto de apesar de haver casos fora da China, não haver até ao momento a proliferação de focos de contaminação, à exceção da situação num cruzeiro no Japão e dos casos na Baviera. A má notícia é que a epidemia na China continua bastante ativa».

Morreu um herói
A morte do jovem médico que no final de dezembro tinha sido dos primeiros a alertar para o surto em Wuhan, mostrou o drama de uma doença que pode evoluir de forma galopante. Li Wenliang, que foi uma das oito pessoas identificadas pela Polícia chinesa acusadas de difundir rumores, fora hospitalizado no final da semana passada e o seu quadro agravou-se rapidamente. 

As autoridades anunciaram a abertura de um inquérito à morte do médico e segundo os relatos publicados na imprensa internacional, a rede social chinesa Weibo foi inundada de forma inédita de mensagens em memória do médico de 34 anos, considerado um herói e agora um símbolo contra a censura no país. E surgem novos apelos sobre o momento delicado que se vive no país, em particular na região onde está limitada a circulação de pessoas e bens e que abrange 50 milhões de habitantes. Esta sexta-feira, a revista médica Lancet publicou o ‘apelo desesperado de um cidadão comum na China’, uma mensagem recebida a 2 de fevereiro. «Uma larga fatia da população está a sofrer não só com o vírus mas com o isolamento, a elevada incerteza, ansiedade, stress, recursos e liberdade reduzidos e perda de rendimento. Com um sistema de proteção social fraco, aliado ao facto de 60% do trabalho ser na economia informal, a falta de benefícios de emprego e proteção torna as pessoas extremamente vulneráveis a crises como esta. Teria havido protestos sociais se isto acontecesse num país ocidental, mas porque isso não acontece na China não faz das pessoas menos pessoas». Ainda segundo o mesmo relato, aqueles que não têm recursos estão a ser deixados para trás e essa é uma realidade pouco falada. No final de janeiro, o próprio Li Wenliang, na altura já hospitalizado, contou à revista Caixin que na altura já tinha uma conta considerável a pagar no hospital.

Graça Freitas, diretora-geral da Saúde, recusou ontem que o caso de Wenliang ponha em causa a confiança nas autoridades chinesas, assegurando que há vários peritos internacionais no país e total transparência. «As autoridades chinesas têm sido exemplares no controlo do surto e na disponibilização da informação», disse Graça Freitas. 

Aprender com os erros
Durante esta semana surgiram críticas à forma como foi agilizada a resposta em Portugal, sobretudo depois do caso do homem italiano que esperou cinco horas numa ambulância à porta de uma fábrica em Felgueiras antes de ser levado para o hospital, onde viria a dar negativo para o vírus. A Ordem dos Médicos defendeu mais formação e meios de resposta para uma eventual epidemia. Num artigo publicado na revista Ata Médica Portuguesa, quatro especialistas, entre os quais a ex-secretária de Estado Raquel Duarte, deixaram o aviso de que, apesar dos planos de contingência e guidelines, o país pode não estar ainda preparado. «A falta de preparação que testemunhámos ao lidar com um único caso suspeito (que felizmente não se confirmou) deve ser usada para que os serviços de saúde corrijam os seus erros e estejam melhor preparados. No entanto, estas lições deviam ter sido aprendidas há muito tempo», escreveram os médicos. 

Nos últimos dias, a resposta foi reforçada. O presidente do INEM, Luís Meira, anunciou que além de duas ambulâncias preparadas para lidar com casos suspeitos no Porto e em Lisboa foram ativadas mais duas ambulâncias em Coimbra e Faro. Além dos hospitais de referência para casos suspeitos (Curry Cabral e Estefânia em Lisboa e S. João, no Porto) tem havido reuniões nas administrações regionais de saúde para preparar uma segunda vaga de resposta, em caso de epidemia. «A nossa prioridade são as regiões autónomas. E ter um hospital na região Centro – Coimbra — e no Sul do país. E haverá ainda uma outra linha, com 15 a 20 hospitais preparados do ponto de vista laboratorial e de seguimento dos doentes. A escalada de meios é à medida da escalada da epidemia», disse Graça Freitas, que adiantou ao SOL que está a ser feito o levantamento do material necessário nos serviços, nomeadamente máscaras. «Neste momento temos de preparar a resposta mas não devemos ativar meios que são desproporcionais para a situação atual do país, em que não há casos confirmados», disse.

Mais uma semana de isolamento 
O SOL tentou perceber junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros se houve mais algum pedido de repatriamento de portugueses na China, mas não teve qualquer resposta. O grupo que regressou de Wuhan no passado fim de semana continua em isolamento, agora todos no Hospital Pulido Valente, onde irão repetir os testes ao vírus durante a próxima semana. Graça Freitas adiantou ao SOL que os resultados estarão disponíveis antes da data prevista para o final do isolamento, desde domingo a oito dias. 

As autoridades portuguesas foram entretanto informadas de que há oito cidadãos com passaporte português retidos no cruzeiro colocado sob quarentena ao largo do porto de Yokohama, no Japão. O navio transportava 2000 pessoas e 61 testaram positivo para o vírus, mas os portugueses não estão neste grupo. Dos oito portugueses, cinco são tripulantes e três passageiros. O cônsul geral de Portugal em Macau e Hong Kong revelou que há também sete pessoas com passaporte português num cruzeiro retido em Hong Kong, não havendo informação sobre o seu estado. Serão assim 15 os portugueses retidos em cruzeiros. À hora de fecho desta edição, a Direção Geral da Saúde não tinha recebido ainda informação sobre este segundo grupo.