Ao longo dos séculos, muitos objetos mudaram de mãos pelas mais variadas razões antes de serem musealizados pelos seus atuais proprietários, como é o caso dos leões de São Marcos, hoje um símbolo de Veneza, mas que são espólio de rapinas venezianas. Os obeliscos egípcios que contemplamos em várias ruas e praças de Roma foram retirados das suas localizações originais e levados para a capital do Império. Algumas das obras mais relevantes da História de Portugal estão hoje em bibliotecas estrangeiras, em muitos casos por via de roubos, como os que foram perpetrados durante as Invasões Francesas, de que o exemplo maior é o volume original da Crónica dos Feitos da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara.
Atualmente, está em curso nas ex-colónias um processo de interiorização da importância do património existente e muitos monumentos deixados pelos europeus como símbolos do seu poder ultramarino, ou mesmo como marcas de colonização, são hoje assumidos como património identitário dos novos estados, pois estes sabem que a sua identidade não é compreensível sem todo o passado histórico. É por isso que, recentemente, a Namíbia obteve a devolução pela Alemanha de um padrão deixado na sua costa por Diogo Cão – um símbolo do imperialismo marítimo português (não se pode falar de colonização para o século XV nos territórios da atual Namíbia) que é assumido como parte da identidade do estado africano contemporâneo (que nunca foi colonizado por Portugal). E é pela mesma razão que estátuas erigidas pelos portugueses em vários sítios de Cabo Verde ou na ilha de Moçambique (são os que eu conheço por ter visitado os locais) foram apeadas em 1975, mas foram depois repostas pelas populações, já não como símbolos portugueses, mas antes como marcas da identidade dos novos países. O mesmo se pode dizer de outros monumentos que estavam nas ruas de Lourenço Marques e hoje estão musealizados na fortaleza de Maputo.
Tenho participado em reuniões da Unesco em África e na Ásia em que a grande preocupação da organização e dos países atuais se relaciona com a preservação in situ do legado patrimonial deixado pelos europeus. Visitei há pouco mais de uma semana o liceu da Cidade da Praia, onde admirei os painéis de azulejos alusivos a diversos acontecimentos da História de Portugal, que ali permanecem inquestionáveis desde a inauguração do liceu em 1960. Ou seja, existe hoje nas ex-colónias uma consciência de que o seu passado é multicultural e só pela preservação dessa totalidade é que os seus países são compreensíveis.
Dirijo atualmente um projeto internacional sobre o surgimento das sociedades coloniais nas margens do Oceano Atlântico na Idade Moderna em que uma das ações é a pesquisa arqueológica (terrestre e subaquática) em Cabo Verde. Os resultados são tão animadores e interessam tanto ao país que o projeto chegou a ser referido em debates parlamentares com pedidos para que seja alargamento a áreas do território que ainda não foram cobertas.
É indiscutível que muitos museus europeus e muitas bibliotecas e arquivos têm nos seus espólios artefactos que foram recolhidos de modo violento ou simplesmente abusivo. No entanto, no caso português julgo que Portugal é sobretudo vítima dessas violências do passado. É verdade que temos referências nas crónicas ao saque de praças marroquinas nos séculos XV e XVI, e ao de Malaca, em 1511, mas a maior parte das peças obtidas neste último afundou-se logo na viagem de regresso à Índia, e no caso marroquino não há menção a nenhuma peça específica e muito menos a algo representativo desse povo, nem os museus nacionais têm peças relativas a esse contexto, salvo alguns artefactos militares.
As peças de origem ultramarina produzidas nos séculos XV a XVIII que eu conheço nos nossos museus resultaram, sem dúvida, de negócios, e em muitos casos até de encomendas. Aliás a sua produção revela muitas vezes o hibridismo cultural provocado pelos contactos entre povos que acabavam de se descobrir mutuamente.
A polémica atual, no caso português, só pode relacionar-se com artefactos considerados pela nossa lógica museológica como de cariz etnográfico, e que terão sido trazidos para Portugal sobretudo nos séculos XIX e XX. Uma vez mais, não conheço referências a saques que tenham originado a obtenção de artefactos hoje guardados em museus portugueses. Também não conheço referências a protestos ou rebeliões ocorridas por alguém ter ofendido uma comunidade retirando-lhe uma peça com valor sagrado ou patrimonial identitário. Do que eu sei, a esmagadora maioria das peças de origem ultramarina existentes nos museus nacionais foram recolhidas pacificamente, num quadro de legitimidade de acordo com as práticas desses tempos e sem sobressalto que se conheça das populações.
Tanto quanto percebo, a esmagadora maioria das peças existentes nos museus portugueses não são raridades, mas apenas exemplos de vivências culturais de diversos povos. Com efeito, não conheço nenhuma reclamação que afirme que está em Portugal uma qualquer peça que seja um elemento identitário de uma comunidade ultramarina, pelo menos com a força identitária que a Namíbia atribuiu ao padrão de Diogo Cão.
Reconheço como pertinente que objetos com valor identitário para um povo e que foram retirados violentamente dos seus sítios de origem podem ser reclamados, mas então a preocupação dos deputados portugueses deve estar focada na recuperação de livros tão marcantes como a Crónica da Guiné, ao mesmo tempo que as autoridades devem aguardar serenamente que alguma das ex-colónias (ou qualquer outro país) apresente um pedido formal de um determinado objeto com razões fundamentadas.
Portugal é hoje um país multicultural e os seus cidadãos têm origens pluricontinentais. Os museus portugueses devem ser testemunho dessa História complexa e de origens diversificadas. Ou seja, parece-me fundamental que os cidadãos portugueses com antepassados africanos, americanos ou asiáticos possam contactar em Portugal com o legado das civilizações dos seus antepassados. Aliás, uma das causas das inúmeras manifestações de racismo que ocorrem em Portugal têm origem num ensino distorcido da História, com a narrativa totalmente focada na Europa Ocidental, só olhando para fora para explicar a sobreposição momentânea dos europeus sobre as outras civilizações passando uma falsa mensagem subliminar de inferioridade dessas outras civilizações. Este é provavelmente o primeiro alimentador do racismo em Portugal. Considero, por isso, como um ato racista querer reduzir o património cultural e museológico dos portugueses a uma ‘ancestralidade branca’.
* Professor catedrático de História da Nova FCSH; diretor do CHAM — Centro de Humanidades