Jorge Lage: ‘Se não fosse a castanha, não estaríamos no mesmo ponto civilizacional’

Filho de agricultores de Mirandela, é talvez o maior especialista português na castanha, sua história, cultura e tradições. Conta-nos como percorreu milhares de quilómetros para registar a memória imaterial deste fruto e que visita um castanheiro doente como se fosse um amigo.

Jorge Lage: ‘Se não fosse a castanha, não estaríamos no mesmo ponto civilizacional’

Nasceu na aldeia de Chelas, concelho de Mirandela, e ali fez a instrução primária. Depois da tropa em Mafra, passou pela Guiné em 1973 e 74. De regresso a Portugal licenciou-se em História. Hoje é talvez o maior especialista na castanha, sua história, cultura e tradições. Para recolher a memória imaterial deste fruto tão apreciado pelos portugueses, percorreu milhares de quilómetros pelo país fora. Partilhou o que descobriu em livros como Memórias da Maria Castanha (edição de autor) e valoriza cada nova descoberta como uma preciosidade. Ontem, dia 14, discursou na cerimónia de entrega da distinção de ‘árvore do ano’ ao Castanheiro dos Vales (freguesia de Tresminas, Vila Pouca de Aguiar), que foi classificado ‘árvore de interesse público’ por sua iniciativa.

De onde lhe vem este interesse pela castanha? Tem alguma coisa a ver com memórias de infância?

As memórias de infância não são muitas, mas são bonitas. Nasci e passei a infância numa aldeia rodeada por dois rios, o Rabaçal e o Tuela, que se juntam ali e formam o Tua. Em novembro, os tios da minha mãe desciam da Serra dos Passos e vinham à aldeia deixar um saco de castanhas.

E como eram cozinhadas?

A minha mãe só fazia cozidas ou no assador, nos magustos. Os serões também eram importantes. Até ao meu 7.º ano [atual 12.º] não havia luz na aldeia, só havia candeias a petróleo, aqueles petromax. Vinha sempre uma pessoa ou outra que o meu pai convidava para a nossa casa, e passávamos o serão com um copo de vinho, umas castanhas assadas, conversa e histórias. Mas a minha mãe não tinha tradição de pratos de castanhas, toda essa magia das receitas só a descobri mais tarde.

Foi sobretudo na Galiza que fez essa descoberta?

Na Galiza, um dia dei com um souto [um pomar de castanheiros] antigo que dizia: ‘Nós vimos nascer todos os habitantes desta terra, vimos nascer os vossos avós, os vossos pais’. Aquilo teve impacto em mim: eles preservavam as árvores antigas e nós fazíamos o contrário. Já estávamos no período em que se arrancavam os olivais, até olivais centenários.

Embora Portugal tenha a mais antiga lei de preservação de árvores e monumentos vegetais, de 1938…

Sim. Mas a busca desenfreada de riqueza de um momento para o outro com os subsídios da União Europeia gerou as maiores barbaridades no mundo rural. E as maiores fraudes.

Esses serões que mencionou eram à volta da lareira?

À volta da lareira. O que a terra dava as pessoas tinham em abundância. Havia sempre lenha, batatas, feijão, grão de bico, figos, por aí fora. Não havia fome. Aquilo que não se produzia lá, como o arroz, é que era quase só nos momentos de festa. E nem todos chegavam às castanhas, por exemplo, porque não as produziam. A minha zona é uma zona de terra quente, de azeite, vinho e figos, que na altura eram importantes na alimentação no inverno. A minha mãe tinha sempre uma arca grande de figos para os porcos e os cães. E tinha uma outra de figos tratados – escaldados, todos passados, enfarinhados, uma coisa maravilhosa – para nós. Havia sempre essa questão da abundância, da dispensa, dos porcos, etc. E a castanha, como o tempo era mais frio do que hoje, conservava-se melhor. Hoje aconselho as pessoas a comerem a castanha no espaço de uma semana, máximo duas. Este ano foi terrível. Há muita castanha estragada.

Como começou então a interessar-se pela castanha e a sua história?

Não me conformava que nas feiras e festas da castanha só houvesse castanha em verde. Não havia castanha cozida, não havia sequer castanha assada, e bolos de castanha ou outros pratos nem pensar. Na Galiza estavam a fazer diferente. Na altura era professor e andei dois ou três anos a insistir para ver se as escolas faziam trabalhos. Ao cabo de dois, três anos, pensei: ‘Se eles não fazem, vou fazer eu’. E comecei a imaginar um caderno de receitas que desse uma base às pessoas para fazerem uns bolos, uns pratos, um caldo de castanhas. Mas distraí-me um bocado e quando dei por ela tinha informação que dava para um livro. Saiu com duzentas e tal receitas, desde as entradas aos licores. A partir daí percebi que não sabia nada de castanhas. A palavra mágica foi ‘falachas’.

O que são as falachas?

É o pão mais primitivo que temos, que ainda se vai fazendo no Baixo Douro – Régua, Resende, Lamego e Cinfães. Fiz para aí 600 quilómetros para conseguir ver fazer falachas. A partir daí fiz outro livro, que ficou meio cultural, meio gastronómico. E só depois desse tomei a decisão de registar a memória imaterial da castanha. Aí foram milhares de quilómetros.

Esse trabalho resultou em dois livros – Memórias da Maria Castanha e Maria Castanha – Outras Memórias. Por onde começou?

O que me deu força para fazer esses dois livros foi sentir os nossos antepassados a dizerem: ‘Esta memória tem que se fixar e se tu não fazes, ninguém vai fazer, desaparece tudo’. E não foi fácil. Muitas vezes não tinha tempo nem para comer. Passei de tudo. Naqueles sítios mais generosos acabava a conversa e já tinham a mesa posta sem eu ter de perguntar. E ouvi histórias que me tocaram muito.

Pode dar um exemplo?

Houve uma pessoa que me falou de um café da água de castanhas com uma aguardente de medronho com uma felicidade imensa. Como é possível beber uma água onde foram cozidas as castanhas com um bocadinho de aguardente e achar que aquilo é do outro mundo? Podemos ser felizes com pouca coisa.

Desde quando há castanheiros em Portugal?

O castanheiro é autóctone. Na Serra da Estrela existe desde há cerca de oito mil anos. Os romanos não a trouxeram, mas foram quem mais incrementou e desenvolveu a cultura da castanha. Associavam-na às glandes de Júpiter. O próprio Plínio, o Moço, dizia que a castanha é afrodisíaca. Se é, se não é… Na Albânia chamam ‘castanhas’ aos peitos das meninas quando estão a desenvolver. E os nossos romanceiros estão cheios de alusão à castanha associada à virgindade. ‘Menina que está à janela, com licença do seu pai, tenha cuidado com o ouriço, que a castanha já lá vai’ [risos]

Há sempre uma conotação mais maliciosa…

Um dia, estava na serra de Montesinho com um grupo da Confraria da Castanha e citei o Plínio. E eles: ‘Não vejo porque é que a castanha é afrodisíaca’. Então mandei-os cheirar o aroma dos candeeiros, aquelas flores das candeias do castanheiro, para verem se não cheirava a esperma. E cheira, tem um cheiro muito parecido.

Também há tradição de castanha noutros países da Europa?

Os italianos são tremendos. É o país da Europa que mais castanha produz e mais castanha consome. Eles fazem tudo: cerveja, açúcar, tudo o que possa imaginar. Comem castanha de todas as maneiras. E em França também há tradição. A cultura da castanha não tem dificuldade nenhuma, é só plantar a árvore, ou brotou naturalmente, e apanhar as castanhas, mais nada. Salvo erro, Luís XV de França pensou se havia de cortar os castanheiros, porque nas zonas que tinham castanha as pessoas quase não trabalhavam. Antes dos Descobrimentos, e mesmo mais tarde, a castanha fazia as vezes do feijão, do milho e da batata. A batata só no século XVIII é que começou a popularizar-se. Olhavam-na com desconfiança. Os russos até diziam que era diabólica – como saía da terra, produto bom não podia ser. Depois o próprio Luís XV fez um decreto: mandou que as pessoas todas comessem batata, porque a batata produz bastante e naqueles anos de míngua evitava que o povo tivesse fome. Todos eram obrigados mas ninguém comia. Então plantou batatas nos jardins de Versalhes, e mandava os empregados guardar durante o dia. Mas à noite os guardas saíam, e então houve quem começasse a ir lá roubá-las. Se eram para o rei, deviam ser boas para comer…

A castanha era, por excelência, a refeição de sobrevivência dos pobres, não era?

Chamavam-lhe até ‘o pão das serras’. Em Portuzelo, ao pé de Seia, ouvi uma coisa que me tocou imenso. Uma senhora a explicar que eram dez ou onze irmãos, pobres, e à noite a mãe – dói ouvir estas coisas – pegava numa malga do caldo, cozia castanhas e dava uma malguinha a cada um. E era a refeição deles – se calhar a melhor que tinham durante o dia. Penso que hoje a humanidade não estaria no mesmo ponto civilizacional se não fosse a castanha ao longo dos séculos. Na Idade Média, em anos de fome, de má produção agrícola, os reis proibiam a exportação de castanhas.

Porque era essencial…

Era essencial. Quando alguém queria abrir um comércio, ou loja, era obrigado a ter sempre castanha. Era um produto barato mas que matava a fome às pessoas. O castanheiro não precisa de terras muito férteis para produzir. Produz em terras secas e sobretudo quer terras frescas, não expostas, nas encostas viradas a nascente ou a norte.

Embora seja alimento de sobrevivência também é associado à festa, ao magusto. De onde vem essa tradição?

A castanha aparece num dos quatro momentos-chave do ano, o outono, que coincide com a altura em que se iniciava o ano celta, de 31 de outubro para 1 de novembro. E era motivo de festejo, como nós festejamos hoje o ano novo. O magusto era uma festa no campo, uma celebração. E era um momento de libertação, permissivo, licencioso. Os jovens nessa altura tinham autorização de ir para os montes, a floresta – tudo o que brotava da terra era visto pelos nossos antepassados celtas como sagrado. A floresta era o ‘mosteiro’ deles. Esses magustos duravam até de madrugada. Depois coincide com a chegada do vinho novo. Castanhas e vinho são uma associação feliz. E a própria castanha no magusto – o rebentar, o sujar as mãos – provoca momentos de libertação, que antigamente não eram muitos.

Fale-me então das suas peregrinações. Por onde se começa quando se vai fazer uma pesquisa dessas?

Fui pesquisando e vi os locais onde havia mais castanha. A Guarda, Fundão, Arganil, Oleiros, Sertã, etc., são zonas que tinham bastante castanha, mas os castanheiros têm muito mato em volta e os incêndios têm queimado quase tudo. Depois fui avançando e tudo o que descobria era novo. Se me dão uma palavra nova, um dito, um provérbio ou uma quadra, valorizo mais isso do que uma prenda. Para mim era uma magia ouvir que nos magustos, quando apanhavam duas castanhas juntas, um convidava outro para ficarem compadres, ou como sopravam uma castanha para ver se era menino ou menina, vitelo ou vitela. Chegava a levantar-me de madrugada, ir para a estrada, dividir as horas – duas aqui, uma e meia além, etc., – e ao fim do dia nem me sentia cansado. Das coisas que me tocaram mais foi um dia em que me indicaram-me um pastor de noventa e tal anos em Seia. Sentámo-nos no topo da serra, estava um dia muito límpido, penso que víamos o mar. Nunca vi pessoa tão feliz como aquele pastor da Serra da Estrela. Conversámos imenso, registei saberes imensos, mas o que me deu mais alegria foi vê-lo feliz.

Como encontra essas pessoas? Vai ao café e pergunta?

Às vezes era assim, mas a maior parte dos casos era programado com os lares de idosos e centros de dia. As animadoras sociais, que são a alma de um lar, preparavam-nos para eles recordarem, porque não é fácil ir buscar essas memórias. E muitas vezes elas próprias registavam. Algumas faziam trabalhos melhores do que algumas teses de mestrado da universidade que eu vi. Depois aquela informação era toda tratada e verificada. Exigia telefonemas e mais telefonemas e às vezes até voltar ao local.

Falou da memória imaterial. Se não fosse esse seu trabalho de pesquisa, provavelmente esses saberes iam-se perder?

Houve certos sítios que quando lá cheguei tive a sensação de que devia ter ido cinco ou dez anos antes. A gente aprende indo aos locais e ouvindo as pessoas. Isso fez com que eu desse mais ouvidos ao saber transmitido ao longo dos séculos, mas claro que tem de ser cruzado e verificado. E depois é preciso ver com os nossos olhos. Vi como se fazem as falachas e tive a honra de ter como amigo a primeira pessoa que fez marron glacé na Península Ibérica, o José Posada. Morreu de ataque cardíaco – foi uma pena, tínhamos uma merenda para fazer debaixo de um dos maiores castanheiros da Galiza.

Como se faz o marron glacé?

A castanha é descascada automaticamente, mas de uma maneira menos agressiva do que o descasque da castanha descongelada. Depois de descascada vai num tabuleiro para um tanque com xarope e está ali dois ou três dias. Retiram-nas dali, põem noutro tabuleiro, e passa por três ou quatro tanques diferentes, cada vez mais densos. No fim é seca e embrulhada como se fosse um bombom. Isso provém de os romanos terem o hábito de conservarem os produtos secos em ânforas de mel, e foi uma prática que passou talvez através dos mosteiros.

Mencionou esse castanheiro da Galiza. Ainda temos muitos castanheiros notáveis em Portugal?

Temos alguns. Nem todos têm sido muito bem tratados. Recordo-me que em Vinhais, junto a Castanheira de Alvarelhos, mesmo pegada à vila, tinha lá uma castanheira que era bastante frondosa…

Espere aí: castanheira ou castanheiro?

É engraçado que nalguns sítios, quando são muito grandes, chamam-lhe castanheira. Noutros sítios só quando são pequenos é que lhes chamam castanheira. Depende do lugar. Nas Beiras, na zona da Gardunha, existia na Mata do Alcaide o maior castanheiro de sempre do país. O povo chamava-lhe Taloca das Almas. Dava para lá meter uma junta de bois dentro do tronco.

O tronco era oco?

Taloca: o próprio nome indica isso. Chamavam-lhe a Taloca das Almas porque corria o dito que aqueles que não respeitavam os feriados e os domingos, que trabalhavam nesses dias, em vez de irem para o céu ficavam por ali como almas penadas e acoitavam-se no tal tronco do castanheiro. Penso que aí por volta de 1940 acabou por sucumbir devido a um raio. Seria talvez do tempo de D. Dinis, que foi quem mandou plantar toda aquela mata. Depois havia outro castanheiro em Aldarete, na Régua, nas fraldas do Marão, virado a nascente, que também era grande. Vivia lá uma família.

Permanentemente?

Sim, sim. Era a casa deles. E não viviam mal. Tinha uma portinha e até tinham um tear lá dentro.

Ainda há vestígios?

Só o buraco. Depois temos um castanheiro ainda vivo, mas já bastante doente, na estrada Guarda-Pinhel, em Pêra do Moço, o castanheiro de Guilhafonso. Disse-me um engenheiro que ele tinha cancro e tinha a doença da tinta, que é mais primitiva, são os fungos que entram pela raiz. Visito-o sempre como visito qualquer amigo. É capaz de haver uns dez ou doze castanheiros classificados. Entre mortos e vivos devem ser duas dúzias.

Sei que há uma história relacionada com os postais que aparecem na capa dos seus livros da Maria Castanha. Pode contá-la?

Isso foi no Gonçalves, um colecionador que tinha uma casa num 5.º andar da Rua do Crucifixo. Vendia postais e fotografias antigas. Fui lá procurar postais e encontrei dois que me agradaram. Disse que queria aqueles postais e passei-lhe o cartão de crédito para a mão. Ele começa a fazer contas: ‘Cento e não sei quanto… duzentos e tal euros’.

Por dois postais?!

E diz: ‘Duzentos euros’, como quem já está a fazer um bom preço. Estavam mais pessoas, ele tinha o cartão na mão e eu tive receio de dizer que não queria. Às vezes conto esta história a amigos, mas nunca contei à família.