A despenalização da eutanásia foi aprovada ontem, na generalidade, no Parlamento. Já se esperava, mas a novidade resulta do facto de todos os cinco projetos terem sido aprovados. O debate, com 2 horas e 44 minutos, acabou pouco antes das 18 horas. No universo de 221 deputados presentes (há dois anos foram 229), todos os projetos foram aprovados e o texto socialista foi o que teve mais votos: 127. O Bloco reuniu 124, o PAN 121 e o PEV e a Iniciativa Liberal obtiveram o mesmo número: 114 votos. As abstenções oscilaram entre as 14 e as dez e o voto contra não foi além dos 86 votos, num processo nominal. Agora, os textos seguem para a especialidade, com a promessa do PS, mas também dos bloquistas, de um trabalho minucioso.
No final do debate, tanto a líder parlamentar do PS, Ana Catarina Mendes, como a coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, avisaram que são contra o referendo. A dirigente socialista assegurou que o PS será “frontalmente contra”, em direto para as televisões. E Catarina Martins acrescentou que os direitos não são referendáveis. Ou seja, quando a proposta chegar ao Parlamento não terá condições para avançar, porque também o PCP e o PAN votarão contra, ainda que com argumentos diferentes.
Já Rui Rio, o líder do PSD que votou a favor de todos os projetos, também em direto na SIC Notícias foi questionado sobre o que fará com a proposta de referendo que está a ser gizada na sua própria bancada. “Acha que vou alimentar uma coisa dessas?”, atirou Rio. O registo não deixa margem para dúvidas. O tempo é do Parlamento e o presidente social-democrata não quer alimentar polémicas. Mais: o principal promotor da iniciativa na bancada, Pedro Rodrigues, nem foi ao debate e fez uma confissão no Facebook.
No rol de argumentos pró e a favor ficou claro que o PS está disponível para melhorar o diploma na especialidade, mas também ficou a promessa, via CDS, de que haverá “resistência”, leia-se “dando a palavra o povo”. Está em marcha o pedido de referendo, com as assinaturas a serem recolhidas a todo o vapor pela Federação Portuguesa Pela Vida e outros movimentos. E os centristas dar-lhe-ão apoio. Na lista de argumentos a favor, na abertura do debate ficou expresso que uma proposta de referendo terá muitos obstáculos na casa da democracia. A primeira crítica à ideia foi feita por José Manuel Pureza, do BE. O parlamentar abriu o debate sobre a despenalização da eutanásia a citar João Semedo, antigo coordenador do partido, já falecido e um dos principais impulsionadores do movimento Direito a Morrer com Dignidade. Depois atacou quem usa argumentos como a legalização de um processo com “rampas deslizantes” e que há dois anos não pediu um referendo porque sabia que não haveria maioria no Parlamento para despenalizar a eutanásia. Por isso, considerou que se trata de uma “jogada política” e recusou um debate feito de “chantagens emocionais”.
Do lado oposto estiveram o CDS e o PCP, com a intervenção do deputado António Filipe a ser aplaudida noutras bancadas (num debate onde houve liberdade de voto nas bancadas do PSD e do PS).
António Filipe começou a sua intervenção a sublinhar que a postura dos comunistas “não foi tomada de ânimo leve”. Apesar de reconhecer que quem propõe a despenalização da eutanásia o faz para “poupar o sofrimento humano e respeitar a opção de pôr termo à vida”, o deputado lembrou que “uma sociedade organizada não é uma soma de autonomias individuais”. E o debate que se coloca é qual o papel do Estado.
“A morte é uma inevitabilidade, não é um direito fundamental”, lembrou o deputado. Se o fosse, “não seria lícito fazer depender a antecipação da morte da decisão de terceiros, como sucede em todas as iniciativas em debate”. Pelo caminho, ainda alertou para a verdadeira “indústria” da eutanásia lá fora.
André Silva, do PAN, ainda lembrou ao PCP as posições de Lenine ou da União Soviética. António Filipe foi pronto na resposta: o PCP pensa pela sua própria cabeça. Assunto arrumado.
Estreia centrista Na sua estreia como líder parlamentar do CDS, Telmo Correia considerou, por seu turno, que a aprovação da despenalização da eutanásia é “um sinistro retrocesso civilizacional”. E garantiu que a “resistência não só é legítima como obrigatória”.
E a resistência passaria por “dar a palavra ao povo”, ou seja, realizar um referendo.
Antes assistiu-se a um momento algo inédito no Parlamento, com o PSD a dividir o seu tempo a duas vozes: António Ventura (contra a despenalização) e André Coelho Lima (a favor). André Coelho Lima, que é vice de Rui Rio, defendeu que o que está em causa é o “ direito da autodeterminação sobre a nossa própria vida”. E António Ventura deixou um alerta sobre a aprovação da despenalização, admitindo que possa “ganhar asas”, ou seja, que mais à frente se pretenda alargar o processo. Os argumentos do sim e do não repetiram-se mais à frente pela voz de Sofia Matos (pela despenalização) e Cláudia Bento (pelo não).
Do lado dos socialistas tomaram a palavra as deputadas Isabel Moreira e Maria Antónia Almeida Santos. A primeira lembrou que o que está em discussão não é a liberalização da eutanásia, mas a despenalização da morte assistida, sendo sempre aplicada em “condições especiais”. Numa segunda fase da discussão, Maria Antónia Almeida Santos acrescentou mais argumentos para defender que a despenalização só se aplica a quem está plenamente consciente da sua decisão em todo o processo. “O juízo não é meu, não é seu, não é de cada deputado da Assembleia da República; é de cada pessoa”, disse o deputado Pedro Delgado Alves.
O PEV sustentou que a eutanásia só pode ser feita no SNS e não em hospitais privados, para evitar qualquer margem de “negócio”, e com regras muito específicas. Esta será, aliás, uma das medidas a serem discutidas num texto comum, na especialidade.
Por sua vez, João Cotrim de Figueiredo, da Iniciativa Liberal (que só votou a favor do seu projeto de despenalização), defendeu uma maior aposta nos cuidados paliativos. Já André Ventura, do Chega, lembrou a “provocação histórica” de se votar a despenalização da eutanásia nos 100 anos da morte de Jacinta Marto (canonizada), uma das pastorinhas videntes de Fátima.
Na tribuna do Parlamento, André Ventura ainda mostrou uma cópia da legalização da eutanásia por Adolf Hitler, em 1939. Não teve qualquer réplica. O parlamentar fez também um apelo ao Presidente da República para “não se esquecer dos portugueses que estão lá fora e que querem votar sobre isto”.
Marcelo também foi mencionado nas intervenções do PAN, pela voz de André Silva, e de Pedro Filipe Soares, do BE. Ambos lembraram que o Presidente considerou, em maio de 2018, que houve um debate muito participado “por todos os quadrantes político-partidários, religiosos e sociais”. Esta foi a resposta a quem argumenta que o debate foi feito à pressa, para justificar um referendo. E foi também um aviso a Belém.