Em maio de 2018, quase à tangente, por cinco votos de diferença, a eutanásia não vingou no Parlamento, apesar das várias propostas em cima da mesa. Menos de dois anos decorridos sobre essa votação, o tema foi reposto, aproveitando-se os proponentes do facto de a composição do hemiciclo ser mais favorável aos desígnios das esquerdas, e das dúvidas existenciais de alguns deputados à direita. Assim, à ‘segunda’, a ‘morte assistida’ venceu. O direito à morte sobrepôs-se ao direito à vida.
Tudo feito de afogadilho, com um debate a ‘contrarrelógio’ para cumprir calendário, como se houvesse necessidade de despachar o assunto para resgatar algum acordo de bastidores – oferecendo a ‘morte assistida’ em troca de um ‘prato de lentilhas’.
Se tal aconteceu, como o admitiu Manuel Ferreira Leite na TVI, só poderá concluir-se que o PS e o Governo já negoceiam tudo, desde que assegurem os seus objetivos políticos – neste caso, a abstenção do Bloco de Esquerda na votação do Orçamento do Estado. A ter acontecido assim, é simplesmente repugnante.
Seria expectável, aliás, que um tema tão sensível tivesse dominado, desde logo, o primeiro debate quinzenal do ano com o primeiro-ministro. Afinal, os parlamentares estiveram mais motivados pelo alegado racismo no futebol do que em confrontar a bancada do Governo com a eutanásia, tratada de raspão.
Foi uma oportunidade perdida. Mas, paulatinamente, a ‘agenda fraturante’ dos bloquistas soma e segue, para gáudio dos adeptos das ‘causas’ radicais.
A panóplia é sortida: aborto, casamentos gay, adoção de crianças por gays, exploração do racismo e das minorias étnicas, ‘ideologia do género’, tudo serve de pretexto para pressionar o espaço mediático, contornando outros temas incómodos para as esquerdas.
Como não dispõe de sindicatos, nem de autarquias, nem de capacidade de mobilização, o Bloco apostou nos media para doutrinar a opinião pública e os ingénuos de serviço.
Graças aos complexos do grupo Balsemão, Francisco Louçã é o pregador incansável na SIC e nas colunas do Expresso, além das sinecuras no Conselho de Estado e no BdP. Basta lê-lo para perceber o que o move, sem nunca sujar as mãos em contacto com o ‘povo’.
A eutanásia faz parte desse arsenal de hipocrisia, da qual o Bloco se apropriou, com a cumplicidade do PS, numa cruzada a favor da suposta ‘dignidade’ da ‘morte assistida’ mas rejeitando a consulta popular – como se o direito à vida fosse uma irrelevância, e abreviá-la constituísse apenas uma formalidade.
O ‘ruído’ à volta da eutanásia encobre, porém, outras realidades bem chocantes, designadamente a escandalosa falta de hospitais de retaguarda, habilitados para a prestação de cuidados continuados e paliativos.
De facto, nada ou quase nada se fez nos últimos anos para aliviar o sofrimento na doença. No setor público, a escassez de camas é gritante. Houve progressos nos privados, mas a custos insustentáveis para a maioria. E as instituições religiosas fazem o que podem – mas podem pouco – para dar resposta a famílias em aflição e sem recursos.
Seria de esperar que um Governo socialista, amparado nas esquerdas, tivesse na Saúde uma das suas principais prioridades, valorizando o SNS, em lugar de privilegiar as cativações das Finanças, deixando os hospitais à míngua de meios.
Mas não. A ministra da Saúde é uma caricatura, e o quotidiano dos hospitais públicos transformou-se num pesadelo.
Ou seja, enquanto se ‘avia’ a correr a eutanásia, como se fosse uma prioridade política e social, o Governo alheia-se dos dramas daqueles que desesperam, meses a fio, sem resposta do SNS, seja para cuidados continuados, seja para consultas, exames ou cirurgias, cronicamente adiados.
Somos uma sociedade envelhecida. Segundo o Ageing Europe 2019, divulgado em outubro passado pelo Eurostat, prevê-se que o envelhecimento da população progrida mais em Portugal do que noutros países. Em três décadas, 47,1% da população terá 55 anos ou mais e, em 2050, nenhum outro país da União terá a população tão envelhecida como Portugal.
Em 2018, Portugal já era considerado o sexto país mais envelhecido do mundo. O declínio populacional continuou em 2019, mantendo-se o saldo natural negativo. Ou seja, concretamente, uma diferença de 25 200 pessoas.
Os números são oficiais. Tudo isto se sabe mas ‘empurra-se com a barriga’.
Sejamos claros: a eutanásia é uma urgência? Parece óbvio que não. Será legítimo repetir projetos ‘chumbados’ há tão pouco tempo no Parlamento só porque se alterou a sua composição? No plano ético, é um oportunismo.
Se a distribuição de deputados favorecesse a direita, o que se diria se alguém se lembrasse de reverter, por exemplo, o casamento gay ou a lei que permite, desde 2013, a co-adoção de crianças por casais homossexuais, aprovada com cinco votos de diferença, a mesma que ‘chumbou’ então a eutanásia? E se fosse reposto o tema do aborto, referendado e despenalizado em 2007? E por que se quer negar essa consulta popular no caso da eutanásia?
As Ordens, em uníssono, a dos Médicos e a dos Enfermeiros, estão contra a lei. O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida também, considerando no seu parecer que o diploma «abrirá uma lacuna de relevante significado ético e social».
Pelo menos dois grupos hospitalares privados (CUF e Luz) já anunciaram que a eutanásia não poderá ser praticada nas suas unidades. As confissões religiosas representadas em Portugal, incluindo a Igreja Católica, são igualmente contra a legalização da eutanásia, não escondendo a sua perplexidade e declarando que «a possibilidade legal da morte assistida por eutanásia ou suicídio assistido, equivale a empurrar para a opção pela morte».
O que move então o PS, que nunca assumiu tal posição perante o seu eleitorado? Ou o PSD, que vai a reboque?
Falta saber o que fará o Presidente da República. Em coerência, só poderá vetar o diploma. E comunicar ao país por que o faz. De uma vez por todas, Marcelo Rebelo de Sousa terá de deixar-se de selfies e de afetos e dar um ‘murro na mesa’. O país ficar-lhe- -á grato.
Doutro modo, aprovada a eutanásia, virá a seguir o comprimido letal gratuito para maiores de 70 anos ‘cansados de viver’, um ‘remédio santo’ sem exigir sequer prescrição médica, ao seu dispor numa farmácia perto de si, como hoje se discute na Holanda… A vida perdeu importância.