Se a cultura não se confundisse nem deixasse que a rebaixassem à sua expressão económica, às tantas actividades de lazer e à promoção de espectáculos que até cancelam o ócio, e mostram pavor do tédio, além da produção e venda de objectos de consumo, que se distinguem cada vez menos de qualquer outro produto de supermercado, talvez dela se pudesse esperar agora um grande descaro e vigor, uma luz insolente que nos desse a ver uma perspectiva auspiciosa diante da pandemia global que enfrentamos. Por estes dias, os artistas e intelectuais estariam, assim, empenhados em criar condições para que a catástrofe fosse antes tida como um desarranjo cheio de promessa. Aguentaríamos o seu cerco, procurando, do interior, um grande êxito. Mas não é de todo isso o que se afigura como plausível. A quarentena e as medidas de distanciamento social ameaçam fazer colapsar o sector, com os cinemas e os teatros fechados, bem como os museus e as livrarias, enquanto as editoras são forçadas a suspender os lançamentos e apresentações. Também os festivais de Verão foram cancelados ou estão em risco, e é preciso ter em conta que, depois desta primeira vaga, e do choque da epidemia, haverá uma segunda vaga, de efeitos mais disseminados, que passará pela recessão, pela situação desesperada em que ficarão as já vulneráveis companhias de teatro ou as livrarias independentes, isto para não falar dos milhares de trabalhadores a recibos verdes. Assim, muito para lá do momento em que se tenha conseguido travar a epidemia, esta ainda irá actuar, até sobre o inconsciente, projectando a sua sombra e deixando-nos diante de um panorama obscuro. E não devemos deixar de ter em conta o efeito corrosivo para o encontro e a partilha, para esse campo de atracção que nos enraíza numa comunidade. Abalado por uma campanha de guerra que, para não dar o flanco ao vírus, cavalgou a paranoia e tem raiado o patético em tantos órgãos de comunicação e nas redes sociais, esse campo gravitacional no qual a cultura se entretece está a ser debilitado. E mesmo para recuperar o que se perdeu, será necessário lavar das ruas o ambiente de suspeita, e quase rezar para que este ruído azucrinante não venha a gerar maldições indeslindáveis que nos levem a excessos melancólicos. Por outro lado, não deixa de ser curioso reparar na anemia que tem caracterizado a cultura e as suas manifestações, agora que, sujeita ao confinamento, procura reinventar-se como uma aurora dos amores estéreis, particularmente nas redes sociais, onde o estado de euforia diante de uma catástrofe que veio romper com a rotina e o tédio a viu “reduzida a jogos de reflexos que se esgotam, cansam ao máximo nas paredes dos quartos dourados” (Genet). Mimetizando as acções espontâneas que têm ocorrido nas varandas das cidades sitiadas, com exultantes manifestações de ânimo, os artistas não se deixaram, contudo, converter à pregnância do anonimato, e surgiram engaiolados, lembrando periquitos num frenesim de loja de animais, produzindo os seus ecos sempre mais surdos, num diálogo inútil. Sintomático do desejo de manter a visibilidade é a mensagem publicada nas redes sociais por um dos dois gigantes da edição portuguesa: “Estamos a debater constantemente estratégias que nos permitam manter o nosso desempenho em alta e para que os nossos livros e os nossos autores continuem a ser falados.” Assim, e numa altura em que seria legítimo esperar um desenvolvimento da capacidade crítica e de pensamento, somos antes confrontados com um mero efeito de nostalgia, sendo que este limiar ou passagem, em vez de se tornar uma zona de mistério, com a insegurança a dar lugar a um desejo de transformação, apenas ambiciona entrar em convalescença. Ora, isso significa negar ao vírus a capacidade de se impor como um acontecimento capaz de engendrar história, de submeter-nos à sua influência e ditar uma interrupção do curso, em si mesmo destrutivo, do capitalismo global. Isto mostra-nos como uma boa parte de nós se mantém em negação face a uma epidemia que, tendo provocado o pandemónio nas nossas sociedades, está investida de uma veemência que faz com que a sua invasão se faça acompanhar de um irresistível apelo moral. É claro que as metáforas sublimes só ocorrem às mentes históricas, as que são capazes de estabelecer uma ligação com a tradição humanista, que extraiu algum sentido desses eventos absurdamente dolorosos, das grandes epidemias que, no passado, arrasaram tudo à sua passagem. E é aqui que a cultura readquire os seus poderes enquanto discurso capaz de, por si próprio, questionar a realidade, fazer uma crítica mais profunda do sistema económico e político, uma vez que lhe é dado o privilégio de ver as suas falhas amplificadas pela epidemia. Como refere o arquitecto, crítico e ensaísta Pedro Levi Bismarck, editor do Jornal Punkto, numa das análises mais fecundas que se produziram nestes dias, “a epidemia é uma espécie de inversão fantasmagórica do liberalismo (…) Se, em parte, podemos ver na epidemia a realização absoluta do liberalismo, a sua utopia plena enquanto construção de um espaço global, único, liso, infinitamente rentável na exploração imunitária dos corpos pelo vírus, ela é simultaneamente o seu maior pesadelo, porque expõe as consequências e as contradições do princípio da concorrência que organiza o corpo social – ‘a guerra de todos contra todos’, como lhe chamava Engels –, ao mesmo tempo que torna evidente um espaço-tempo que longe de ser individualizado e isolável é comum e interdependente.” A incerteza sobre a hora que estamos a viver só nos diz que não devemos continuar a dormir, e que só vozes humanas poderão despertar-nos. São precisas vozes para capitanearem a insurreição, ao invés de nos deixarmos diluir ou naufragar embevecidos pelas sereias, cantando umas às outras, entregues de novo à força das correntes do consumo. Como frisa Bismarck, “talvez haja algo que possamos aprender nesta suspensão da actividade e da produção (e não apenas por razões ecológicas) que nos ameaça agora como ‘dano colateral’. Talvez haja algo que possamos aprender nesse súbito esvaziamento dos espaços, nessa dilatação prolongada do tempo, nesse abandono da economia: um outro uso, uma outra possibilidade, uma outra política. Na epidemia, o pânico é tanto o corolário do capital, como a forma plena da sua auto-consumação. Resistir ao pânico, resistir à epidemia, pelo contrário, significa anular o dispositivo que legitima e generaliza a guerra social do capital, significa reinventar as formas do comum, a possibilidade de um outro modo de existência em comum.”