A conversa estava agendada para o seu gabinete na Fundação Calouste Gulbenkian, cujo conselho de administração integra desde 2015. Mas as circunstâncias acabaram por ditar que se realizasse por telemóvel. Guilherme d’Oliveira Martins, reconhece a importância da tecnologia, mas alerta para que as pessoas não se tornem «instrumentos dos instrumentos».
Com um vastíssimo currículo na política e na administração pública, foi ministro de três pastas e detém três doutoramentos honoris causa. Acaba de assinar o número 100 da coleção de ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos: Património Cultural: Realidade Viva.
Publicou em 2016 o livro Ao Encontro da História; também em 2016 coordenou o Ano Europeu do Património; e agora publica Património Cultural: Realidade Viva. Isto significa que o tema do património lhe é particularmente caro?
O património cultural é um tema que tenho acompanhado com um especial cuidado, até porque coordenei, no Conselho da Europa, o grupo que redigiu a convenção de Faro [2005], sobre o valor do património cultural na sociedade contemporânea. Etimologicamente, património quer dizer ‘o que nós devemos fazer relativamente àquilo que recebemos dos nossos pais’: patres munus. Munus é serviço, patres é pai. O património não tem a ver apenas com determinado tipo de bens ou valores – não, tem a ver com a própria sociedade e tem a ver com a nossa capacidade de preservar a memória. Nesse sentido, tenho procurado sensibilizar as pessoas para o valor do património como realidade dinâmica. E para um conceito fundamental que é o conceito de património comum como fator de paz.
Em que me medida o património pode contribuir para a paz?
Quando em Estrasburgo presidi ao grupo do Conselho da Europa sobre o valor do património, uma das preocupações fundamentais era precisamente essa: como o património pode ser um fator de paz, um fator de compreensão mútua. Não tenho dúvidas que sim. Porque muitas vezes o património é, pelo contrário, um fator de conflito, o que se compreende se tivermos a noção fechada de identidade. Não podemos esquecer o que se passou e se está a passar na Síria, nomeadamente a destruição de Palmira. E a destruição de Palmira, como refiro no livro, inclui também a morte do maior especialista, o maior estudioso dessa realidade. Nunca nada está adquirido, temos de ser muito exigentes para que o património seja um fator de paz, um fator de entendimento, e um elemento de enriquecimento mútuo. Se tivermos uma noção aberta de identidade encontramos justamente essa realidade viva, transversal, que tem a ver com a vida do dia-a-dia.
Portanto o património não é algo que se encontra num plano distinto ou que ficou parado no tempo, é isso?
É isso. O património é uma realidade dinâmica. E eu dou três exemplos muito simples. Um tem a ver com as borboletas-monarca, que migram da América do Sul para a América do Norte e cuja vida – estamos a falar do património genético, portanto – só abrange uma viagem. As aves migratórias, por exemplo as andorinhas, têm na sua vida várias migrações; no caso das borboletas-monarca têm uma só viagem, a aprendizagem está nos seus genes. Elas chegam ao destino, põem os ovos, morrem e vão ser os seus descendentes que vão fazer a viagem em sentido contrário. O segundo exemplo que dou é a memória das árvores.
Memória da árvores?
Os jacarandás de Lisboa, que vêm da América do Sul, designadamente do Brasil, têm duas florações. Ora, como sabemos, uma árvore em princípio só tem uma floração, na primavera. Porque é que os jacarandás têm outra floração? Porque as árvores têm memória: a memória da primavera da América do Sul. Há dois anos por acaso até floresceram bastante, mas normalmente florescem muito pouco, devido às condições atmosféricas, mas em outubro voltam a florir. Florescem em maio e depois florescem em outubro, porque têm essa memória. O terceiro exemplo que dou é o do firmamento. Olhando para o firmamento, grande parte dos corpos celestes já morreu, já lá não está, e no entanto nós vemo-los, a luz chega-nos como se fosse uma realidade. Ou seja, nós somos contemporâneos, pela luz, de algo que desapareceu muito tempo antes de nós. Esta noção de património é pois uma noção viva, porque envolve o património genético, envolve a nossa ligação com quem nos antecedeu e simultaneamente a preparação relativamente àqueles que nos vão suceder, e que vão receber a nossa memória.
Estes exemplos que deu implicam uma noção de património que não contempla apenas coisas feitas pelo homem, contempla também a sua relação com a natureza.
Exatamente. Há aliás dois aspetos muito importantes que foram salientados por mim no livro, que são o património natural e o património paisagístico – a natureza, de que dei estes exemplos, e simultaneamente a paisagem. A paisagem, como o professor Gonçalo Ribeiro Telles costuma dizer, ‘é a imagem do país’. É a nossa relação de transformação da natureza. Quando falamos, por exemplo, do risco dos fogos em Portugal, uma das causas é a nossa mata tradicional ter sido desvalorizada, importaram-se espécies de outros pontos do globo – resultado, também, da nossa da nossa aventura global – mas verdadeiramente é preciso percebermos que a natureza tem que ser protegida e preservada, e aí as árvores autóctones têm de ser consideradas. A natureza é de extraordinária importância e soma-se ao património material, às construções, aos edifícios, aos monumentos e aos documentos e simultaneamente às tradições – a receita da nossa avó, a receita de culinária que chega até nós é um elemento muito importante. Da mesma maneira, a língua, as palavras, os idiomas, tudo isso faz parte do nosso património.
Este livro, até pelas características da coleção, é relativamente curto. Podemos considerar que é uma destilação da sua experiência, daquilo que estudou e refletiu ao longo destes anos acerca do património?
Nem mais. Tive o grande gosto e honra de me terem convidado para assinalar o número cem e os dez anos desta coleção. Quando o dr. António Araújo e o dr. Jaime Gama me fizeram esse convite foi justamente no sentido de valorizar essa experiência numa síntese muito acessível. Trata-se de um livro propositadamente feito com uma linguagem simples, não técnica, sobretudo para dizer: é indispensável não deixar o património ao abandono. E o património não é apenas o vestígio arqueológico que encontramos, é também aquele documento que temos em nossa casa, que herdámos dos nossos avós ou antepassados e que representa um elemento importante da memória.
Nos últimos anos o conceito de património tem-se alargado a olhos vistos. Isto tem que ver com uma mudança de atitude, mas também de consciência e de sensibilidade?
Inequivocamente, sim, mas é necessário continuar a fazer a sensibilização dos mais jovens. Eu dou em determinado passo do meu livro um exemplo: Portugal foi no Ano Europeu do Património um dos países com maior número de atividades em torno do património porque as escolas estiveram envolvidas. Designadamente a rede das bibliotecas escolares, que teve aqui um papel muito importante. A biblioteca é um pouco o coração das escolas, onde os vários professores, os vários estudantes, se podem encontrar. Hoje uma biblioteca escolar não é apenas um sítio de livros. É um local de livros e de leitura, mas é também um centro de documentação, e de tecnologia. É muito importante que saibamos lidar com as novas tecnologias, mas percebendo que elas devem ser postas ao serviço das pessoas. Em determinado momento chamo a atenção para o facto de muitas vezes nos tornarmos instrumentos dos instrumentos. Vemos isso às vezes no restaurante. As pessoas, em vez de conversarem…
Estão a olhar para o telemóvel.
O telemóvel é muito importante, é um instrumento fundamental, mas mais importante do que isso é o contacto olhos nos olhos. Respondendo à sua pergunta, há um dado que quero salientar: é verdade que há uma tomada de consciência maior relativamente à importância do património nestes vários domínios – património natural, paisagístico, industrial, tudo isso. Mas é indispensável que o património não seja uma realidade fechada. Muitas vezes vemos a tentação de as sociedades se fecharem sobre si mesmas, e ao fecharem-se não põem a devida ênfase no património comum. Não é por acaso que a UNESCO usa a classificação de Património da Humanidade: é porque todos nós estamos perante o dever de proteger esse património comum, onde quer que ele esteja. É a humanidade que está em causa, é a dignidade humana que está em causa.
Todos temos a responsabilidade de cuidar do património, mas eu diria que o Estado tem uma responsabilidade acrescida.
Naturalmente que sim.
No entanto às vezes vemos monumentos históricos ao abandono. Acha que o património em Portugal é bem tratado?
O património em Portugal, ao longo dos anos, tem tido um aperfeiçoamento na sua valorização. Todos nos lembramos do célebre texto de Almeida Garrett no século XIX ao passar por Santarém e ver o estado lastimável em que se encontrava o património. Quando celebrámos o Ano Europeu do Património Cultural, Portugal era dos 28 o país que mais valorizava o património em abstrato mas depois era o último país em que as pessoas iam aos museus ou tomavam iniciativas concretas de preservação e de salvaguarda do património. Felizmente, durante o ano europeu, foi possível contrariar um pouco isso. Mas a questão continua. A sociedade portuguesa ainda está muito desatenta em relação ao património cultural e à necessidade da sua salvaguarda.
Nos últimos anos tivemos o fado, os bonecos de Estremoz, agora os caretos de Podence. Há pouco falou-me da receita da avó. Acha que um dia poderemos ter a alegria de ver o cozido à portuguesa ou as barrigas de freira elevadas a Património da Humanidade?
[risos] Certamente que sim. Mas, quando falamos da classificação do património, não podemos esquecer uma coisa: antes da declaração de património da humanidade é preciso que preservemos local e nacionalmente esse património. Na minha experiência na UNESCO, quando estive na comissão nacional, muitas vezes via que as pessoas queriam começar logo por cima, pela classificação mais exigente. E eu perguntava: ‘Já está classificado em termos regionais? Já está classificado em termos locais?’. Isso é muito importante. Falou de vários casos, eu não posso deixar de salientar as duas últimas classificações de património material, que foram o Convento de Mafra, que é um caso único, uma vez que reunimos não apenas o edifício, a biblioteca, mas também os carrilhões, os seis órgãos, que são únicos no mundo; e o Bom Jesus de Braga. E neste momento penso que há outras candidaturas relevantes, que não podem deixar de ser consideradas, porque o património português é muito rico e está espalhado por todo o mundo.
O património e o turismo são duas realidades indissociáveis. A pandemia de covid-19 já está a ter consequências dramáticas na atividade turística. Acha que isso terá consequências para o património?
É indispensável que a resposta a esta pandemia envolva também a iniciativa cultural. Nós precisamos de garantir, em primeiro lugar, a gestão inteligente do turismo. Todos sabemos que o turismo de massas obriga a uma regulação. Recordo, já há alguns anos, a primeira vez que visitei Florença tive de marcar a ida aos Uffizi com dias de antecedência. E hoje vemos isso a propósito das medidas de emergência que estão tomadas para não haver concentração de pessoas: há que introduzir fatores de regulação para que o turismo seja gerido inteligentemente.
Mas o problema não passará antes a ser a escassez de visitantes?
A pandemia é preocupante mas, como os biólogos têm dito, em breve encontrarão solução. Mas é um alerta. A nossa sociedade é uma sociedade vulnerável, pode ser afetada a todo o momento por fatores que alteram tudo e que empobrecem a sociedade. Temos que estar preocupados, sobretudo porque este é um elemento novo e inesperado. E precisamos não apenas de resolvê-lo mas de prevenir situações similares que possam vir a ocorrer.
Acha que alguns aspetos do nosso modo de vida podem estar ameaçados? Referimos o turismo, mas há outras dimensões. Acha que isto vai ter repercussões para lá destes próximos meses?
Repercussões terá certamente. Haverá lições a tirar, mas lições muito mais vastas, que têm a ver não apenas com esta pandemia mas com a grande questão relativamente à preservação do meio ambiente, ao combate ao desperdício e fundamentalmente à necessidade de apostar muito na educação, uma educação de qualidade, uma educação para todos e uma educação que nos permita responder melhor à incerteza.
O conselho de administração da Fundação Calouste Gulbenkian convocou alguma reunião, tomou algumas medidas relativas à pandemia?
Além das medidas de prevenção, estamos muito atentos porque entendemos que temos responsabilidades, não apenas no domínio da prevenção e de acorrer a situações, mas simultaneamente também na possibilidade de fazer com que a cultura tenha um papel positivo relativamente às consequências. Como há pouco lhe dizia, de facto vai haver mudanças, e uma das mudanças será certamente a necessidade de a educação, a cultura e a ciência terem um papel acrescido, e a Fundação Calouste Gulbenkian estará certamente na linha da frente.
Nomeadamente com apoios?
Nomeadamente com apoios. Oportunamente eles serão anunciados.