Esta última sexta-feira de março não é um dia normal. Aliás, já não há dias normais. José, 57 anos, auxiliar de enfermagem no São Francisco Xavier, regressa de mais um turno na Unidade de Cuidados Intensivos. Passa pela receção vazia e atravessa como um sonâmbulo o lobby submerso por um silêncio duro. Caminha em direção ao pátio interior do hotel, onde a mulher e uma colega aproveitam os últimos raios de sol e, enquanto fumam, vão tecendo estranhos prognósticos sobre o seu destino. José parece possuído por um mal que lhe percorre o corpo todo. As palavras chegam-me arrastadas, como se tivessem feito uma longa viagem antes de lhe saírem da boca: «Já temos cinco pessoas ligadas ao ventilador e, quando estava a sair, disseram-me que estava a chegar outra».
Apolónia, a mulher, também ela auxiliar de enfermagem, olha-o apreensiva. Conhece-o do avesso e mede-lhe a tristeza que alastra à medida que o tempo passa: «O meu marido está triste. Não diz, mas está. Está saturado de estar aqui preso e de não poder ver as filhas. Pior: nem o mesmo quarto podemos partilhar. Por prevenção, dormimos em quartos separados. Um está numa ponta, o outro na extrema oposta». Segurando na ponta dos dedos o cigarro que dá à vida um toque de normalidade, a mulher faz um esforço para se situar na realidade. Tudo o que presenciou até aqui parece-lhe estar a acontecer num sonho: «Ainda não estou em mim. Sou daquelas pessoas que só quando as coisas estão em cima da cabeça é que dão por elas».
O seu rosto, perplexo, move-se para a réstia de sol que penetra no pátio e cria como que uma zona de doçura. Apesar de ainda duvidar da realidade, como qualquer sobrevivente, Apolónia reagiu por instinto quando decidiu, com o marido, abandonar a família. «Quando me apercebi que os idosos e as pessoas com certas patologias eram mais vulneráveis à doença, decidi sair de casa. A minha filha mais nova tem asma e a minha mãe, que vive connosco, depois de há um mês ter sido internada com uma infeção pulmonar, voltou ligada a um ventilador. Quando pensei que podia levar alguma coisa para casa e que ela podia morrer, não hesitei e vim para aqui». Soltam-se-lhe as lágrimas. Tapa o rosto trigueiro com as mãos e desabafa: «Odeio chorar, sou forte», diz repetidamente, como se batesse o pé a uma contrariedade.
Só depois de ter feito o check-in no hotel, o casal deu a notícia à família. A mãe de Apolónia, confundida pelo metralhar das notícias difundidas pelos telejornais que todos os dias contabilizam os mortos vítimas da covid-19 – que, na maioria, andam pela sua faixa etária – colocou-se no centro da tragédia: «A culpa é minha, eu é que trouxe esta doença para casa!». E Apolónia, a quem ainda não foi feito o teste para saber se é positiva ou não, responde-lhe, com a angústia da partida a agitar-lhe o coração: «Não, mãe, a culpa não é sua, é do mundo».
A mulher regressa ao presente com violência, como se estas lembranças fossem mais perigosas do que a força devastadora da epidemia. Agarra-se ao lado prosaico da vida para se libertar da conversa que começa a deprimi-la.
Vive com o salário mínimo nacional e, apesar de estar instalada no Ópera, as despesas da casa e da família obrigam-na a grande disciplina. O hotel oferece o pequeno almoço, mas a restante alimentação fica por conta do casal, que tem de gerir o apertado orçamento: «No hospital, cada refeição fica por 3,20 euros. Para nós os dois, é o dobro e não temos dinheiro para isso. Por isso, umas vezes vamos ao McDonald’s, que oferece uma refeição por dia aos profissionais de saúde, à Padaria Portuguesa, que também dá o lanche, mas geralmente compro umas saladas no supermercado para comer aqui e levar para o hospital».
‘Os nossos velhinhos vão morrer todos’
A cidade parece paralisada como se os seus habitantes tivessem desertado. Está na hora da caminhada junto ao Tejo, uma espécie de liberdade provisória. Meia dúzia de mulheres, de fato de treino, mantendo entre elas a distância de segurança estabelecida para evitar contágios, atravessa o lobby em direção à saída do hotel, de onde se avista o rio. Apolónia junta-se ao grupo.
Numa proximidade diária com a morte, os profissionais de saúde, seguros de que o pior ainda está por vir, tentam manter intactas as reservas de energia para o combate que se avizinha.
José assiste à partida da mulher, entregue às suas congeminações. As manobras do cérebro teimam em levá-lo sempre para o mesmo espaço. A longa experiência na Unidade de Cuidados Intensivos, onde a morte é uma visita rotineira, não o impermeabiliza à dor. Escuta os gritos do futuro e o seu eco. Foi educado para salvar vidas, e as notícias que chegam de Itália e da vizinha Espanha, onde a salvação de um doente passou a depender da balança da idade, sufocam-no: «Os nossos velhinhos vão morrer todos». O seu rosto exprime dúvidas e resignação: «Eu noto que não estou igual, não me reconheço. Apesar de não nos faltar material de proteção, voltei a ter medo. Ainda se sabe muito pouco da doença, no hospital dizem-nos que a situação é grave e que não podemos facilitar. Quando vou posicionar um doente ventilado, penso sempre que se pode soltar um tubo e contaminar-me».
‘Até o roçar do cão nas pernas me faz falta’
Mais um dia que passa sem nada acrescentar ao fluxo de outros dias. O hotel continua barricado em silêncio. Quem adormecera na véspera crente de que tudo poderia não ter passado de um pesadelo cai de imediato no desencanto. Os media fazem matinalmente a contabilidade dos mortos e infetados. Num intervalo de horas, a pandemia tomara progressões indecentes.
Daniela sai do elevador como se carregasse todo o peso dos sonhos desmoronados. Tem 23 anos, mas não aparenta. Com o curso de enfermeira terminado há pouco mais de um ano, a mais recente catástrofe que atingiu a humanidade precipitou-a para o pior da vida de um adulto.
Trabalha nos serviços de Medicina do Amadora-Sintra, um dos hospitais problemáticos da região Lisboa, onde o azar bateu à porta logo no início de março, três dias depois de a Organização Mundial de Saúde ter declarado o surto da pandemia: «Inicialmente, não tínhamos equipamentos para nos proteger. Tivemos o primeiro infetado a 13 de março, e um dos meus colegas, que estava sem máscara, foi infetado. Fizeram o rastreio a quem tinha estado em contacto com ele, tinha sido quase o serviço inteiro. Eu fazia parte do grupo, mas o primeiro teste deu negativo. Toda a gente sabe que o primeiro teste não é fiável eu já devia ter feito o segundo, até porque depois disso já tive contacto com doentes infetados».
Daniela ainda não tem idade para saber que não há nada mais contagioso do que o pânico, mas nesta matéria da triagem nem os entendidos se entendem. Com o ar desafiador da juventude, volta ao ataque com informação desconcertante: «Claro que estou ansiosa e tenho medo de estar infetada. Como não estar, se só hoje chegaram os novos equipamentos de proteção para a covid e nos foi explicado pela enfermeira-chefe como os usar?».
A conversa, de repente, é cortada. As emoções andam à flor da pele e Joana, 35 anos, enfermeira no São Francisco Xavier – e que, perante a contínua devastação provocada pelo vírus, se esforça no dia a dia por manter a calma –, esconde agora as lágrimas quanto cumprimenta a colega.
Quando há uma semana chegou ao hotel, trazia na bagagem meia dúzia de peças de roupa como se estivesse ali de passagem. Hoje, com a noção de que irá enfrentar provas cada vez mais duras, decidiu ir a casa para fazer uma mala maior. Foi como tocar em todas as coisas esquecidas. Vive com a mãe, doente oncológica, e o marido. Antes de entrar, tomou todas as cautelas: colocou luvas e máscara, despiu-se na escada e tirou os sapatos. Só depois tocou à campainha. O marido abriu a porta. Não se tocaram, refrearam o impulso do desejo. «Já falamos», disse quase sem o olhar. Receava cometer qualquer erro. Entrou no banho, saiu e desinfetou tudo por onde passara. Regressou ao hotel a tremer: «Ir a casa mostrou-me tudo o que estou a perder. O cheiro da casa… já não me lembrava! Até o cheiro e o roçar do cão nas minhas pernas me faziam falta».
Para a minha mulher, a minha saída de casa foi um alívio
De passada larga, como se corresse contra o tempo, João Mendes, homem da medicina intensiva, reage à abordagem da jornalista do SOL, à saída do hotel, como se nele tivessem despertado todos os instintos da destruição. O médico estende o braço para impor a distância da quarentena enquanto alerta: «Cuidado, faço parte de um grupo de risco!». Trabalha nos cuidados intensivos, o palco central onde se trava o combate entre a vida e a morte. Sentado ao fundo do lobby do hotel, discorre sobre os novos tempos. Nas suas costas, ao longo da parede, em nichos retangulares envidraçados, filas de manequins trajando fatos de uma ópera cedidos pelo Teatro Nacional de São Carlos carregam a atmosfera de um mundo suspenso.
João Mendes, que se divide entre os hospitais Amadora-Sintra e a Cuf Descobertas, sabe que, apesar de todas as precauções, nada trava, para já, a trágica ameaça de a doença crescer e se desenvolver. Depois da resistência inicial, o humor substitui a apreensão do médico: «Estou aqui porque praticamente fui posto na rua pela minha mulher». O riso tem uma função terapêutica. O médico abre as cortinas da sua privacidade: «Tenho dois filhos, um de cinco e outro de sete anos, e a minha mulher andava muito ansiosa. Ter todos os dias alguém que entra em casa e põe a família em perigo cria um ambiente de insegurança. Para ela, a minha saída foi um alívio. Para mim, também. Somos nós que entubamos e ligamos ao ventilador os doentes, temos um risco acrescido e a ansiedade de voltar a casa e ser um potencial contaminador das pessoas de quem gostamos é muito stressante. Sei que tão cedo não saio daqui. As saudades hão de apertar, mas com estas novas formas de comunicação on-line tudo se torna mais simples do que antigamente, quando aparecia uma carta de vez em quando».
Na verdade, a visita à humanidade do vírus macabro não surpreendeu este médico que, além de intensivista – isto é, especialista em cuidados intensivos –, é professor de Fisiologia na Faculdade de Medicina de Lisboa. João Mendes recusa as teorias da conspiração daqueles que procuram incessantemente os artesãos da criação de uma arma biológica: «Isso não faz sentido nenhum. Quem o fizesse teria de ter criado em simultâneo um antídoto, o que não aconteceu. Na verdade, para quem estuda as doenças emergentes, tudo isto era algo de expectável. Apenas não se sabia em que forma ia aparecer. Este risco pandemiológico está presente na natureza, como é visível na história da humanidade. A história é cíclica e as pandemias também. O problema é que, num mundo global, com a facilidade de circulação de hoje, o risco ganhou outras proporções».
‘A forma de tratar os doentes já mudou várias vezes’
Enquanto a conversa corre, o médico mantém um ar calmo que, no entanto, não pressagia nada de bom: «Estamos perante uma doença com um perfil global que nos coloca a todos em risco. Só que é uma doença completamente diferente das que conhecíamos e que, para todos os efeitos, não sabemos tratar. Podemos tirar algumas ilações das que já conhecemos e utilizá-las na terapêutica, mas é dos inputs que vamos recebendo hora a hora dos colegas de outros países que lidam há mais tempo com ela que nos vamos orientando no dia a dia. Posso dizer-lhe que, desde 2 de março – quando surgiu o primeiro doente infetado em Portugal –, na minha cabeça e na comunidade médica internacional a forma de tratar esse doente já mudou por diversas vezes».
João Mendes, para um leigo, explica-se de uma maneira ambígua, que deixa numerosas dúvidas por trás de cada uma das palavras: «Na verdade, na luta contra esta doença que se propaga a grande velocidade, não temos tempo. Isto vai acabar invariavelmente em erros, porque a ciência não se pode apressar. Mas é o que temos».
Nestes novos tempos, um homem sozinho pode apenas gemer e esperar a morte. O homem da ciência desdobra-se no humanista. Terá o vírus macabro a força de acabar com as fissuras sociais? João Mendes não hesita: «Esta doença não escolhe entre ricos e pobres. Pela primeira vez na história da humanidade, todos os países dependem uns dos outros. Somos todos iguais e a cura será igual para todos. Não há exceções, até porque os hospitais privados, normalmente utilizados por quem tem mais posses, estão agora ao serviço do SNS».
O especialista compreende melhor do que nunca a força da união. Só uma solidariedade intransigente produzirá efeitos: «Isto só se cura quando for descoberta uma vacina. Até lá, tem de haver um enorme sentimento de união entre as pessoas do mundo para nos conseguirmos manter de quarentena o tempo que for necessário». Confiemos no otimismo, pois então! Um homem infeliz não é de confiança.