“Ninguém te vai bater com mais força do que a vida”

Pedro, estarias disponível para uma conversa por videochamada?». «Vamos a isso», respondeu sem hesitar. «Quinta-feira?». «Combinado!». E assim foi. Pedro Carvalho é mais um dos muitos atletas que foi afetado pela crise motivada pela pandemia da covid-19.

O lutador, que há cerca de duas semanas estava convicto da conquista do título mundial de artes marciais mistas (MMA), na categoria de peso-pena do circuito Bellator, viu o combate com o brasileiro Patrício ‘Pitbull’ Freire (atual campeão), ser cancelado. O combate do vimaranense, que decorreria no passado dia 13 de março, na Mohegan Sun Arena, no estado do Conneticut, nos Estados Unidos, não se realizou devido ao surto do novo coronavírus. Sem data prevista para voltar a lutar, o atleta de 24 anos conta-nos como está a encarar esta fase de isolamento social e fala-nos da outra luta fora dos ringues, que passa por tentar normalizar o desporto de combate em Portugal.

 

Como reagiram a este cancelamento tão em cima da hora?

Na altura, quando soube… Nem consigo bem descrever, porque foi mesmo das maiores desilusões da minha vida, principalmente porque estávamos a três horas de começar o evento. O pior de tudo nem foi o cancelamento, mas sim terem dito que iria ser realizado à porta fechada e, depois, à última, disseram que ia ser cancelado. Ora se era para cancelarem podiam tê-lo feito logo. Mas algumas horas depois, já de cabeça fria, concordo plenamente com a decisão e fico contente porque só prova que se interessam, cuidam e estão preocupados com os atletas, não só com o lucro da empresa. Acho que foi bom ver uma atitude dessas vinda da Bellator (organização de artes marciais) e concordo a 100% com a decisão.

Neste momento estás em isolamento social. Voltaste para Portugal ou estás em Dublin?

Assim que o combate foi cancelado marquei logo um voo direto para Dublin, só para pousar as malas. Nem 24 horas depois estava a viajar para Portugal. Estava tudo cá, a minha família, não fazia sentido ficar sozinho na Irlanda. Se era para fazer a quarentena tinha que ser junto com a família.

Como tens mantido as tuas rotinas de treino?

Eu tento fazer o melhor que posso, mantenho a minha dieta o mais restrita possível. Não tenho sequer data de previsão para voltar a lutar e por isso também não estou 100% com a minha dieta, de vez em quando vou comendo qualquer coisa, mas estou a manter-me firme ao máximo para manter o peso baixo – e também faço o que posso em termos de treino. Tenho o saco de boxe na garagem, faço alguns exercícios sozinho e corro.

Este combate seria um ‘grande salto na tua carreira’, como tu próprio disseste. Mas antes de falarmos novamente desta luta, voltemos ao início. Pode dizer-se que foi um programa de televisão que mudou a tua vida?

Absolutamente, absolutamente! Eu digo sempre que não acredito no destino, afinal, nós fazemos as nossas próprias coisas e somos aquilo que escolhemos ser, mas ao mesmo tempo acredito que tudo isto ‘is meant to be’, está quase predestinado acontecer. É um bocado assim que vejo a minha vida. Foi através de um programa da SIC Radical que conheci um dos amores da minha vida, o desporto, e sem dúvida alguma de que se não fosse esse programa eu nunca na vida ia sequer saber o que era MMA.

Foi a primeira vez que tiveste contacto com a modalidade?

Foi, antes disso nunca tinha visto sequer ninguém a nível do desporto de combate com luvas tão pequenas a lutar dentro de uma jaula. Nem sabia que era um desporto. Em Portugal, agora as pessoas estão a mudar um bocado, mas há 12 anos pouca coisa chegava cá destes desportos mais invulgares.

Usas uma frase engraçada em que dizes: ‘Não nasci para isto mas escolhi lutar por tudo isto’. A verdade é que até aos 13 anos nunca tinhas ouvido falar de MMA.

Sim, eu costumo dizer isso e é nisso que acredito. Eu não nasci para estar onde estou, escolhi estar onde estou e foi sempre por esse pensamento que me regi. Acredito que não nasci com talento nenhum, na verdade quando comecei não tinha grande jeito. O que me diferenciou de toda a gente foi o meu querer e a minha consistência – todos os dias vou treinar e dou o melhor de mim. Não interessava o que acontecia, que eu voltava a dar mais e mais, foi isso que me destacou. Não nasci em nenhum berço de ouro, muito pelo contrário, e também não nasci com nenhumas habilidades especiais.

Pode dizer-se que no teu caso é 100% trabalho?

Acredito que sim. Claro que cada um pode ter a sua opinião, mas falando de mim acho que é 100% trabalho. Digo sempre, e até às pessoas que lutam comigo e que têm mais jeito, para não se fiarem no talento porque isso é muito perigoso. Quando o pessoal sabe que tem talento, fia-se muito nisso e deixa o trabalho de lado. O trabalho árduo vai sempre ultrapassar aquele que é apenas talentoso. Mas se alguém misturar talento e trabalho árduo aí vemos grandes coisas acontecer.

E como é que um menino de Guimarães começa a treinar MMA?

É curioso. Eu tinha um colega meu que jogava futebol e estava sempre a saltar de clube em clube. Certo dia perguntei-lhe em que clube estava a treinar e foi quando me disse que já não estava no futebol mas sim no MMA. Lembro-me de que nesse momento o meu mundo parou. Perguntei-lhe onde e respondeu-me que treinava em Guimarães, num ginásio à beira da estação de comboios, com o Rafael Silva.

Foi aí que pensaste que não era só ficção, que aquele programa de televisão podia, afinal, ser real?

Três dias depois desta conversa estava com a minha mãe a ir ao ginásio fazer a inscrição. Treinei logo no mesmo dia, não estava lá ninguém.

Como reagiram os teus pais quando disseste que querias praticar MMA? Bem, logo à partida fizeste a inscrição no ginásio ao lado da tua mãe…

Independentemente do que eu fazia, sempre tive o apoio da minha mãe e da minha tia, que me criaram. Já em relação ao MMA foi fácil, quando vi esse programa de UFC estava com a minha mãe, os dois à espera que o programa começasse. A minha mãe sempre foi fã! Ganhámos os dois o bichinho pelo MMA ao mesmo tempo! Quando lhe disse que sabia de um sítio em Guimarães onde havia uma equipa de MMA e que queria levar isto para a frente a minha mãe disse: «Está bem, está bem». Acho que no início não acreditou, o que também é normal. Eu tinha 13 anos!

Tens irmãos?

Tenho um irmão mais velho.

Aposto que nunca mais te mandou pôr a mesa…

[Risos]. É um bocadinho assim [risos]. Ele dizia sempre: «O que vale é que o Pedro sabe que existem hierarquias»[risos].

Quando é que começaste a ver que o desporto era a tua prioridade?

Desde miúdo que dizia a toda a gente que queria fazer do MMA a minha vida, que ia ser o melhor. A dada altura, eu queria tanto treinar, e sei que não é o melhor exemplo, mas cheguei a faltar às aulas e aos exames. Tive até algumas discussões com professores porque, como não havia nenhum exemplo de um lutador de MMA português, parecia que não havia caminho possível. Quando os professores perguntavam por que é que eu faltava, respondia sinceramente: «Faltei porque estava nos treinos». A minha mãe dizia-me que se eu queria treinar podia fazê-lo, mas o acordo era que tinha que seguir com os estudos até ao fim. Passava de ano e toda a gente ficava feliz [risos]. Alguns professores falavam por preocupação, outros nem tanto, mas o argumento final era sempre o mesmo: «Pedro, dá-me um exemplo de um atleta em Portugal que faça disso carreira». Eu respondia: «Nenhum mas eu posso ser o primeiro».

Em miúdo, andavas muito à tareia na escola?

Em doze anos que faço MMA, posso dizer que tive duas situações, e ambas por autodefesa. Uma delas nem foi comigo, foi para defender um amigo. Antes de entrar no MMA tive as minhas situações de miúdo, mas nunca fui violento nem apologista da violência.

Mas os teus amigos sentem que têm as ‘costas quentes’ por estarem contigo?

[Risos]. Não, não são pessoal de brigas, muito pelo contrário. São todos de paz e amor e é assim que eu sou também. Admito que gosto de violência, mas só dentro daquela jaula, mas aí é um Pedro à parte. O Pedro que está dentro daquela jaula fica ali. Isso dá-me uma grande liberdade – não só estou a fazer o que amo como ainda posso expressar-me.

Aos 17 anos tornas-te profissional e aos 20 mudas de país, vais para a Irlanda (Dublin) atrás de um sonho. Como é que tomas esta decisão? Percebeste que tinhas mesmo que sair de Portugal para poderes crescer no MMA?

Inicialmente fui para Dublin porque tive a minha segunda e última derrota, em 2015. A minha carreira estava completamente parada e não tinha sequer qualquer tipo de previsão de futuro promissor, porque o meu recorde na altura já estava em cinco vitórias e duas derrotas e isso não é nada bom. Estava numa má situação, então eu e a minha namorada em conversa decidimos que tínhamos que fazer alguma coisa. Enquanto falávamos, a minha namorada perguntou-me se o Conor [Mcgregor] treinava nos EUA, eu disse-lhe que não, disse-lhe que o Conor, ainda hoje, treina e vive em Dublin, a terra natal dele. Ela disse-me que Dublin fazia parte da União Europeia, que estava a duas horas de voo daqui e que era um sítio adequado para nós. Dei-lhe razão e começámos a pesquisar – o único problema era que não conhecíamos ninguém que estivesse lá.

E a partir daí, como é que fizeram?

Antes de marcarmos o voo, fui trabalhar durante um ano numa fábrica de acabamentos para conseguir juntar dinheiro para sair do país e, em novembro de 2016, marcámos uma viagem de uma semana para ir lá, para apresentar a equipa, para conhecermos a cidade e para procurar trabalho e casa. Nessa semana não arranjámos absolutamente nada e foi uma desilusão enorme porque os nossos planos tinham ido por água abaixo. No voo de regresso a Portugal ficámos os dois calados e desapontados. Quando começámos a falar surgiu-nos a mesma ideia ao mesmo tempo: «A primeira coisa que vamos fazer quando chegarmos a Portugal é marcar um voo só de ida para a Irlanda e quando aterrarmos aterramos, está feito». Assim já não havia volta a dar.

Isso também explica muito a forma como encaras a vida. Dizes: ‘O mundo está dividido entre aqueles que acreditam, os que acreditam mas com dúvidas, os que não acreditam e aqueles que não querem acreditar’.

Eu gosto muito da parte psicológica. Independentemente de quão má estivesse a minha carreira e vida pessoal, sempre fui uma pessoa super positiva e que acreditava que as coisas acontecem por uma razão. Simplesmente mantive o pensamento de que ia dar, ia acontecer e eu e a minha namorada agarrámo-nos a isso, fomos na fé. A única coisa que levava no meu saco era a minha vontade e o meu trabalho árduo. Tivemos sorte porque desta vez a minha namorada conseguiu logo trabalho e conseguimos também um apartamento a dividir com outro casal. Já tínhamos casa e forma de pagar as despesas, o único problema é que eu continuava sem conseguia arranjar nada (trabalho). Nas lutas também demorou muito a conseguir algo e era difícil.

Nesse momento já estavas inscrito no Straight Blast Gym (SBG), onde também treina o McGregor?

Já, mal cheguei inscrevi-me logo no ginásio. Eu procurava trabalho e depois treinava. Foi complicado, estávamos ali e nada estava a acontecer. Eu dizia-lhe sempre (à namorada): «as coisas vão acontecer, vão acontecer». Mas às tantas também eu começava a ficar assustado porque nada acontecia. Mas lembro-me de que tinha uma luta marcada em Liverpool, fui para lá e entretanto ligaram-me a dizer que a minha ressonância magnética ao cérebro veio com uma anomalia. Disseram-me para não me preocupar, que era normal, mas que o meu exame precisava de ser visto por um neurologista especialista para dar a aprovação para poder lutar. Essa luta em Inglaterra acabou cancelada, porque não consegui arranjar assim do pé para a mão um neurologista especialista. Os dias que se seguiram foram os piores da minha vida porque podia ser o fim ali.

Foi a primeira vez que pensaste no que poderias fazer se o MMA não resultasse?

Sim, foi! Estava no autocarro em direção ao hospital e pensava no que íamos fazer. Tinha 100% de certezas que a minha vida ia ser o MMA, nem nunca tinha feito um plano secundário.

Chegaste a alguma conclusão?

Sim, iria trabalhar em part-time para Portugal, ia para a Universidade tirar uma licenciatura para conseguir um emprego minimamente decente em alguma coisa, nem sequer sabia o que seria, mas foi esse o plano que meti na cabeça nessa altura. Mas quando cheguei ao hospital e o doutor me diz que estava tudo bem… Foi um início completamente novo para mim.

Na primeira luta que fazes no Bellator venceste o inglês Daniel Crawford. Achas que foste o escolhido para este combate para perderes? O Crawford era considerado uma promessa europeia e contra as probabilidades e previsões tu ganhaste o combate…

Essa foi a minha primeira luta no Bellator (25 de maio de 2018). Ainda antes dessa luta, certo dia estava em casa, a preparar-me para ir treinar, e a minha namorada disse-me que precisava de falar comigo. Foi estranho porque quando ela me diz que precisa de falar comigo é porque alguma coisa se passa [risos]. Disse-me que estava grávida… Durante duas semanas fiquei completamente perdido, sem saber o que fazer, até que ambos chegamos à conclusão de que ela tinha que regressar a Portugal para ter o melhor acompanhamento possível, o apoio da família, e uma gravidez segura. Eu continuaria na Irlanda a trabalhar e a treinar. Um dos meus melhores amigos veio para o lugar dela no apartamento e vivi com esse meu colega durante meio ano. Ainda antes desse combate, em março, fiz a minha segunda luta na Irlanda, pelo título “Cage Legacy”, de uma organização de lá e ganhei. Um mês depois, estava a ir para uma aula de wrestling e o John Kavanagh, o meu treinador, mandou-me uma mensagem sobre a proposta de combate para lutar em Londres, no Bellator 200, contra o Daniel Crawford, que era a principal promessa europeia. Foi naquele momento que senti que era o início de tudo.

Mas achas que foste o escolhido…

Ah, respondendo à tua pergunta, sim, fui levado para esta luta para perder. Fui levado
para perder.

Não tens dúvidas disso?

Não. O próprio patrão, em brincadeira, agora quando estivemos em Nova Iorque, a conversar com o treinador disse: «tu sabes que o Pedro foi chamado para perder [para o combate com o Daniel Crawford]» [risos]. Era o que era e todos sabemos isso. O meu próprio treinador na altura disse-me mesmo isso: «Isto é a festa de entrada dele!». Era também o primeiro combate que ele ia fazer dentro do seu contrato, mas eu não queria saber. A única coisa que me interessava era que estava ali a oportunidade para eu agarrar. Nunca disse que não a uma luta e aquilo era a oportunidade da minha vida. A duas semanas da luta despedi-me do trabalho que tinha arranjado e fui para a academia. O pessoal perguntou-me por que me tinha despedido e eu disse que não queria ir para a luta com nenhum tipo de negatividade.

Nesse momento estavas a trabalhar em quê?

Estava a limpar casas de banho num hospital. Durante um ano treinava e trabalhava. No início não tinha bem uma função, era o faz tudo: limpava os vidros do hospital, depois pediram-me para limpar o lixo da frente do hospital, e depois fui limpar as casas de banho, que foi a função que desempenhei mais tempo durante o período em que estive a trabalhar. Depois despedi-me porque não queria ir para aquele combate a pensar que se perdesse teria sempre aquele trabalho para pagar as contas. Antes de ir para Londres, pedi dinheiro emprestado ao meu colega que vivia comigo porque não tinha dinheiro nenhum na conta e disse-lhe: «Luís, eu preciso que me emprestes algum dinheiro mas vou lutar, vou ganhar, e devolvo-te o dinheiro». Foi o que aconteceu.

Quando chegas finalmente a Londres, o que sentiste?

Estava a viver um sonho! Não tinha nervos nem nada. Claro que havia alguma pressão porque eu sabia que se falhasse, pelo menos tão cedo, não teria uma oportunidade daquelas. No pior dos cenários, nunca voltaria a ter uma oportunidade.

Como é que se gere a angústia de parecer que o início pode ser logo à partida o fim?

Era a realidade, mas eu não perdia tempo a pensar nisso. Focava-me só no facto de ter que conseguir. Dizia sempre: «Eu vou conseguir, vou conseguir, vou conseguir!».

Falas muito no trabalho e na parte mental. Disseste: ‘Há umas semanas trabalhei com uma preparadora psicológica que rapidamente percebeu que não valia a pena trabalhar comigo, não havia nada que pudesse fazer no meu aspeto mental. Não me estou a gabar mas não há ninguém que me consiga bater ou quebrar no meu aspeto mental’.

Acredito nisso, sendo verdade ou não. A minha parte psicológica levou-me a isto tudo, levou-me a Londres. A minha crença em mim próprio, saber daquilo que sou capaz com o meu trabalho. O pessoal acha todo que quer algo e fala nisso, mas muitas vezes não sabem o que é o querer. O estar disposto a abdicar de tudo para ter algo.

E ainda antes dos combates, irritam-te os bate bocas? Tiveste alguns agora com o ‘Pitbull’, isso faz parte do espetáculo? Achas que podem afetar verdadeiramente o adversário?

O jogo psicológico, se a pessoa souber fazê-lo – e o que dizer nas alturas certas -, sim. Eu sempre gostei de usar isso. Até mesmo na semana da luta, altura em que nos vemos todos uns aos outros… a postura física, esses são os jogos psicológicos que sempre gostei de fazer e, bem feitos, podem ter um papel importante mas, ao mesmo tempo, temos que ter em consideração que isto é um mundo profissional, tanto pode resultar como passar completamente ao lado do teu adversário. Lanças a isca mas tens que estar ciente de que pode não dar em nada.

Mas achas que fazem parte desta indústria?

Quando eu comecei, o MMA já estava a popularizar-se e a ser mais divulgado nas redes sociais. Atualmente não basta o atleta ser bom e lutar bem, também tem que saber promover-se. O meu objetivo é ser o melhor e provar que sou o melhor mas, para querer ser lembrado, tenho que ir lá e promover-me. Se só lutar bem vou cair no esquecimento.

Como gostarias de ser recordado?

Sou o melhor do mundo mas quero provar isso. Esse é o meu maior objetivo. O meu derradeiro objetivo de carreira é ser lembrado como um dos melhores de sempre.

Aprende-se a gostar de sofrer ou a adrenalina coloca isso de parte e a dor só vem a seguir?

Nunca tive problemas porque sempre fui um bocado masoquista [risos].

Ser um bocado masoquista é um critério obrigatório para entrar no MMA?

[Risos] Não é obrigatório, acredita que há muitos que não gostam de levar. mas eu acho que isso vem também do sítio onde cresci. Era um sítio muito pobre, eu, a minha mãe e a minha tia sempre passamos muitas dificuldades. Tanto a minha mãe como a minha tia tinham dois empregos para conseguirem dar-me alguma coisa e, por vezes, deixavam de comer para que eu pudesse comer. Lembro-me de que aprendi as horas à luz das velas porque nem sempre havia dinheiro para pagar a eletricidade e, desde cedo, aprendi que se queremos algo temos que trabalhar muito para consegui-lo. Habituei-me à dor, que é diferente, mas psicologicamente aprendi a viver com a dor, a saber abraçá-la e usá-la a meu favor. Trouxe isso desde cedo comigo e foi uma vantagem enorme no desporto; é por isso que ninguém me consegue quebrar psicologicamente. Uma das perguntas que mais me fizeram para esta luta com o Patrício era se eu levava alguma pressão por estar a enfrentar um dos melhores de sempre e a lutar por um título mundial. Para mim, pressão é saber se vou ter o que comer, é não saber se vou ter dinheiro para pagar contas e não saber sequer como vou arranjar dinheiro para pagá-las. Fazer o que amo e ter o bónus de ganhar um título do mundo é apenas por divertimento e amor, mais nada.

Tens alguns medo quando vais combater? Infelizmente, temos o caso trágico do João Carvalho, que morreu em 2016 após um combate…

Não, nem me passa pela cabeça. O que aconteceu com o João Carvalho não foi por causa do combate mas, como como costumo dizer, às vezes parece que para um desporto evoluir é preciso acontecer uma tragédia. Infelizmente foi o caso.

O MMA já é olhado de lado por tantos, não achas que este tipo de tragédias atrasa ainda mais o objetivo de tentar normalizar o desporto? Aliás, o Conor Mcgregor comentou na altura, em 2016, a morte do João Carvalho e disse: ‘Isto é um jogo altamente perigoso, as pessoas chamam-lhe desporto mas isto é uma luta. Eu tento que não me aconteça a mim’.

Sim, o risco está sempre lá, é óbvio. Nós assinamos um termo de responsabilidade porque sabemos o que estamos a fazer. Mas o que aconteceu com o João Carvalho foi porque o evento em si e, qualquer tipo de evento, na altura, não exigia aos atletas os mínimos necessários, fossem exames ao sangue, ressonâncias magnéticas… O resultado da autópsia nunca veio a público e ninguém sabe realmente o porquê da sua morte. O que acredito é que o João já levava danos antes sequer de entrar no combate e isso é muito frequente acontecer. O pessoal agora treina de maneira mais inteligente e evita treinar à tresloucado nos treinos.

Falas de respeito, tolerância, disciplina – valores positivos que dizes estarem associadas ao MMA. Mas sabemos que alguns desportos podem realmente ter consequências graves. Além do raguebi, futebol americano, até mesmo no futebol, em vários países já proibiram cabeceamentos a menores de 12 anos porque há estudos que provam que podem trazer consequências no futuro…

Absolutamente. O MMA é um desporto muito recente e cada vez mais vai evoluindo. As ferramentas de treino são mais cuidadas, existem mais informações, os atletas cada vez treinam de maneira mais inteligente para que tenham carreiras mais duradouras. Há atletas super conhecidos com 40 anos e ainda estão no ativo – e estão bem física e psicologicamente. Há dez anos vias atletas com 34 anos que parecia que tinham 45. Isso revela a evolução do desporto. Estamos provavelmente na segunda ou terceira geração de atletas de MMA e cada vez existem mais dados para estudos da geração anterior. À medida que o tempo vai avançando vai haver mais informações e ferramentas que os atletas podem ter para se autoprotegerem e para terem uma carreira mais saudável e duradoura. Claro que penso nisso, principalmente depois de ter tido o meu filho, mas não é um pensamento que vá comigo para dentro do ringue.

O Pitbull é o atual campeão, razão pela qual, em caso de vitória, o título mundial passaria já para as tuas mãos, apesar de se defrontarem nos quartos-de-final do torneio. Achas que, à semelhança do que aconteceu com o Daniel Crawford, também ele te escolheu como adversário por achar que tinha uma ‘vitória garantida’?

O verdadeiro motivo pelo qual me escolheu só ele sabe – e ele já disse que não é esse. Mas é a tal coisa, existem várias possibilidades… Pode achar que de todos eu seria o combate mais acessível, ou pode também ter gostado do meu estilo, não sei. No final de contas o motivo pelo qual me escolheu não me interessa, o que me importa é que eu fui o escolhido, estou lá e vou lutar pelo título. Agora não sei, porque foi cancelado, mas na altura sabia a data em que ia tornar-me campeão do Mundo.

O Pitbull disse que tentavas imitar o McGregor. Como reages ao comentário?

Isso são comentários de alguém que não sabe do que é que está a falar e que não tem argumentos para a pessoa que está na frente dele, que neste caso sou eu.

Poderá ter sido porque foste para Dublin e para a academia onde também treina o McGregor?

É o argumento mais fácil que alguém pode ter. Como a maioria dos adversários que tenho não tem nada a dizer contra mim… Usam o argumento mais fácil. Como sou parceiro de equipa dele, sou confiante e não tenho medo de dizer o que penso vão por aí. Só prova como não sabem do que falam. Passa-me completamente ao lado.

Que tipo de contacto tens com o McGregor? Dá-te dicas e ajuda-te?

Tenho contacto, claro, já treinei com o Conor, conheço-o e falo com ele. É um colega de equipa tal como todos os outros. Tiramos sempre ilações, ajudamo-nos mutuamente, é isso que uma equipa faz. Não é por ser o Conor. É com esta ajuda mútua que somos a melhor equipa.

Quando soubeste que foste o eleito para lutares pelo título disseste: ‘Sinto-me como uma criança no Natal pois já sei o dia em que vou ser campeão mundial’. O Natal foi entretanto cancelado, mas continuas a acreditar que vai acontecer e que vais vencer?

Sim, o contrato está assinado e a luta tem que acontecer, seja daqui a um ano ou não, mas vai acontecer. Até foi bom que tenha sido cancelado. Quero que aquele momento seja especial e se fosse para uma arena completamente vazia… Quando houver o combate já será com uma arena cheia e vai ter um sabor especial. Há males que vêm por bem. Quando o combate acontecer já não haverá risco de contágios, não haverá nenhum tipo de desculpa. Eu vou lá, ganho e trago o ouro para casa!

A tua família consegue ver os teus combates?

A minha mãe sempre viu muitos mas desde que eu comecei a lutar pelo Bellator que não consegue ver um combate! Tem noção de que passo a passo a escada cada vez sobe mais, assim como a importância do combate e o grau de dificuldade é cada vez maior e, por isso, o receio também. A minha mãe já não consegue ver nenhum, mas a minha namorada prefere ver.

Qual é a diferença entre o Pedro lutador e o Pedro pai?

O pai dele é o pai dele, independentemente se é lutador ou não – e eu amo-o. Antes de ele nascer eu pensava de uma forma um bocado egoísta, o meu objetivo era eu, eu e eu: eu ser o melhor, eu ser o melhor e eu ser o melhor. Quando o Benjamim nasceu, tudo mudou porque tinha duas questões: o futuro dele e o facto de eu estar na Irlanda e eles em Portugal. Naquela altura não tinha oportunidade de trazê-los para perto de mim. Estive dezoito meses, os primeiros da vida dele, a lutar para trazê-lo para a minha beira. Cada vez que eu ia lá para dentro (para o ringue) ia com o pensamento na vitória, não só porque estava a tratar do meu futuro e do futuro dele, mas sobretudo porque se eu perdesse sabia que iria estar longe do meu filho mais sete ou oito meses.

Tornou-se mais fácil entrar no ringue desde que foste pai?

Foi uma motivação maior e a prova disso foi o meu último combate antes do nascimento do Benjamim, que foi com o Daniel Crawford. E desde que o meu filho nasceu, em três lutas eu finalizei os três atletas, nenhum deles chegou à decisão e isso mostra o foco que o meu filho veio trazer para a minha carreira. Já não estou a lutar só por mim. Eu sempre lutei pela minha família, para dar uma vida melhor à minha mãe, à minha tia e à família que estou agora a criar, mas quando trazes um ser ao mundo que depende de ti, isso muda tudo. Consegui perceber o quanto a minha mãe lutou por mim e o que fez para me dar o melhor que podia desde que o Benjamim nasceu.

O Benjamim tem agora dois anos?

Tem 19 meses.

Como é que reagirias se daqui a dez anos chegasse ao pé de ti e dissesse que queria ser lutador de MMA?

Espero que não, espero que não [risos]! Não queria porque eu sei o quão difícil e às vezes injusto este desporto pode ser. Tem a parte do negócio envolvido, não basta seres bom. Muitas vezes o desporto é injusto nisso e eu sou a prova viva, mas sou teimoso e casmurro e continuo – mas nunca tive ninguém atrás de mim a promover-me. Simplesmente fui apanhando as migalhas que foram caindo no chão até chegar onde estou. Não quero que o meu filho passe por isso, mas, se por acaso, ele ganhar amor ao desporto vai ser um orgulho para mim e vou fazer dele um atleta cinquenta vezes melhor do que aquele que eu sonho ser. Mas não vou implementar qualquer tipo de bichinho nele, até faço questão que se mantenha afastado disto.

Fizeste há umas semanas uma publicação dirigida à Liga Bellator, em que sugeres que a defesa do título (a confirmar-se a vitória) seja feita na Altice Arena. É mais um sonho que queres ver realizado?

Sem dúvida alguma que quero trazer os maiores palcos do MMA a Portugal! Tenho noção de que não só vai ser um momento super especial, já que será inédito, mas porque será muito importante para o MMA português. No dia em que um evento grande como o Bellator, UFC, pisem Portugal… o boom vai acontecer, e é disso que estamos a precisar!

Relativamente à tua entrada no MMA: Sentes que em vez de teres aberto uma porta tiveste que arrombá-la?

Sinto que tive de arrombar paredes [risos]! Sempre tive noção que esta jornada ia ser muito difícil, sacrifiquei a minha vida inteira para isto, estar perto do meu filho, da minha família, ser o adolescente normal, sacrifiquei muita coisa. É preciso traçar prioridades e manteres-te fiel a essas prioridades.

E nunca desistir?

Como diria o Rocky Balboa: «Quem vence não é quem bate mais forte, é quem recebe, cai, levanta-se e aguenta levar». A vida é mesmo assim. Ninguém te vai bater com mais força do que a vida. As partes más fazem parte da vida e é isso que a torna tão especial. Por exemplo, esta situação que vivemos agora, termos que estar presos em casa, para mim está a ser muito positivo. Passei duas semanas em casa da minha mãe – não me lembrava da última vez que tinha lá estado duas semanas! -, e foi espetacular. Foi bom rever todos os posters que a minha mãe tem guardados – revivi o meu sonho de criança. Ver onde estou agora não só me deixa bastante orgulhoso como me dá mais vontade, porque apesar do que já consegui… eu ainda estou no começo.