Nunca como agora fomos bombardeados (a metáfora belicista foi inconsciente mas a propósito, todos os dias me dizem que isto é uma guerra) com tanta informação sobre um tema único, homogéneo, avassalador. De repente, todos ficamos especialistas em imunologia, epidemiologia, estatísticas, cenários económicos pós crise, e até em geomorfologia, analisando com rigor as formas de montanhas e planaltos. Contudo, não nos parece servir de muito, e trocaríamos de bom grado todo esse conhecimento por uma qualquer versão moderna do Oráculo de Delfos. Ou, pelo menos, de alguém que nos desse a resposta a uma pergunta simples: quando vamos todos sair de casa? A resposta muda todos os dias, e entre as próximas três semanas e os próximos três meses, entre uma segunda vaga desta pandemia em setembro ou no inverno, tudo e nada parece possível. Pior ainda quando se produz um festival de cinema ou qualquer outro evento cultural.
No momento em que a normalidade possível das atividades for reconquistada, não é difícil de prever que aquelas ligadas à cultura, festivais, teatro, concertos, sessões de cinema, serão das últimas a conquistar essa normalidade. Todas estas atividades se baseiam na sua capacidade de atrair e de juntar pessoas, deixando de fazer qualquer sentido sem essa participação popular, e a perceção do risco de contágio ao entrar num concerto ou numa sala de cinema poderá durar para além do fim da pandemia. Os festivais de cinema têm reagido como podem, entre o cancelamento puro e simples, versões online e adiamentos. No Curtas Vila do Conde optamos por esta última solução, apontando o mês de outubro para a sua realização, esperando que essa possibilidade se possa confirmar. Desde logo, descartamos a possibilidade de um evento online. Para tal, já basta a partilha interminável de links com filmes gratuitos e a consequente desvalorização dos trabalhos dos artistas, sobretudo daqueles mais frágeis nas leis do mercado, como são as curtas-metragens ou o cinema experimental. Para muitos filmes, os festivais são quase a única forma de serem projetados num grande ecrã, nas melhores condições de som e imagem, numa partilha e diálogo direto com o público. Os festivais apresentam obras inéditas, em estreia absoluta, num percurso cuidadosamente delineado por realizadores e distribuidores, que se segue a meses de trabalho intenso de preparação, rodagem e pós-produção. Esse trabalho não foi seguramente pensado para terminar num computador ou num i-Phone.
Muitas questões vão subsistir. Qual o papel da arte em tempos de catástrofe? Que eventos vão sobreviver para lá de 2020? Que políticas culturais a adotar? No meio das incertezas, há uma evidência que emerge: nestes tempos de isolamento, mais do que nunca, sentimos o desejo de voltar a assistir a um concerto, de voltar a ver filmes nas salas, no fundo de poder fazer de novo tudo aquilo de que gostávamos, e cuja ausência veio apenas confirmar a importância da arte nas nossas vidas.
Miguel Dias
Cofundador e diretor do Curtas Vila do Conde