Quatro irmãos a viver em quatro países contam o seu dia a dia, as restrições que enfrentam e como comunicam entre si. Filipa vive em França (Saint-Malo), Joana em Itália (Verona), Diogo no Reino Unido (Londres) e Inês em Portugal.
Filipa Moreira da Cruz
‘Estivemos os quatro doentes’
Macron decretou o prolongamento da quarentena até 11 de maio. Anunciou que serão realizados testes à população mais exposta, assim como às pessoas que apresentem sintomas (até que enfim!). Haverá novas ajudas financeiras para as famílias mais vulneráveis e o regresso à ‘normalidade’ será progressivo e organizado por fases; não sairemos todos de casa ao mesmo tempo. Nas grandes cidades, como Paris, Marselha, Lyon ou Bordéus, alguns habitantes começam a desobedecer às regras da quarentena. O tempo é demasiado longo e o confinamento é cada vez mais difícil. Uma vontade inexplicável de fazer jogging, as constantes saídas com o cão, a imprescindível baguette, vale tudo para abandonar o lar.
Eu e a minha família contrariamos as últimas estatísticas. Após um período de incerteza e de receio passamos a aceitar esta situação com naturalidade e ficamos em casa. Para o nosso bem e o de todos os outros. O meu marido vai às compras uma vez por semana, muito contrariado.
Os meus filhos estão de férias da Páscoa entre 11 e 27 de abril. O ano letivo em França é mais longo que em Portugal, tendo várias interrupções, as quais estão organizadas por três zonas. Nós pertencemos à zona B. Este período de repouso vem mesmo a calhar! Ainda assim, as professoras enviaram fichas, a fim de evitar que as crianças se aborreçam. A Mathilde recebeu 18 e o Stan teve direito ao jackpot: 45! Obviamente, eu fiz uma pré-seleção e imprimi apenas 5 para cada um. Os meus filhos já estudaram em Portugal, Espanha e França e a obsessão das professoras pelas ditas fichinhas tem sido uma constante. A única exceção foi o País Basco. Bendito Amara Berri! O melhor modelo pedagógico que conheci até agora.
Que me desculpem as docentes (e as mães 100% cumpridoras), mas falharei. Vou privilegiar a brincadeira às propostas curriculares porque casa não é escola. E férias são férias!
Neste momento, a minha prioridade é apenas uma: a saúde física e mental. Infelizmente, a primeira escapou-nos, mas cuidarei ao máximo da segunda para o bem de toda a família. Estivemos os quatro doentes. Uns durante sete dias e outros durante mais de três semanas. Os dois médicos consultados são da opinião que foi a covid-19 que nos provocou febre, tosse constante, perda do paladar, cansaço e dificuldade em respirar. Nunca saberemos porque não realizámos os testes. Não éramos prioritários. A visita do coronavirus ou do seu irmão-gémeo foi longa e dolorosa, sobretudo para os asmáticos cá de casa. Fiz o que pude para evitar o hospital. Juntos, vencemos. Como a 9 de fevereiro de 2009 em que mãe e filho fomos reanimados quase ao mesmo tempo. O Stan foi levado para o serviço de neonatologia da maternidade onde permaneceu 21 dias e eu segui de ambulância para o hospital Georges Pompidou, ambos em Paris. A embolia amniótica empurrou-me para os cuidados intensivos e o serviço de pneumologia. Cinco dias e cinco noites. E hoje dou por mim a pensar em todos os seres humanos que dependem de um ventilador.
Felizmente, não temos televisão o que nos evita assistir à contagem em direto do número de mortes provocadas pela pandemia. Ideias para passar o tempo não nos faltam e aplicamos a terapia do riso quase diariamente.
Rir
Não sei se rir é o melhor remédio, mas ajuda muito! Rimo-nos sobretudo de nós próprios: dos disparates da Mathilde, das histórias do Stan, do meu desenho que parece um cão com bigodes de gato e orelhas de coelho, das partidas do Sébastien, das sessões improvisadas de karaoke. Ao longo do dia, somos invadidos por gargalhadas espontâneas e incontroláveis. Fazer o aerossol ao mesmo tempo que vimos os filmes do Louis de Funès é um bálsamo para o corpo e a alma.
Inventar
Acredito que o mundo não será o mesmo quando regressarmos à rua. Mas isso não tem que ser necessariamente mau. Até lá, talvez devêssemos aprender com as crianças a viver agora. Como diz a Mathilde, o presente é tão rápido que já é passado e o futuro vem daqui a pouco. Resiliência, empatia, criatividade e imaginação são as ferramentas. O Sébastien pensa em receitas sem farinha porque esta já esgotou há semanas. Os filhos inventam jogos e brincadeiras e apresentam o noticiário todas as noites para a família através do WhatsApp. Eu vou escrevendo e arranjando maneira de pôr toda a gente a fazer ginástica logo pela manhã. Descobrimos dons até então impensáveis. Arriscamos, falhamos e voltamos a tentar.
Sonhar
Os adultos voltam a ser criança e, todos juntos, ousamos sonhar. Tudo é possível no universo dos sonhos. De repente, aparecem unicórnios, dragões e discos voadores. Fechamos os olhos e estamos todos juntos em Portugal, na casa da avó. Ou então a dar um mergulho na piscina das Canárias. Sonhamos, acima de tudo, com um mundo mais justo, mais unido e mais solidário. E quem disse que os sonhos não se realizam? Basta crer!
Orar
Agradecemos todos os dias tudo o que temos: saúde, casa, família, amigos, comida, água… Damos valor a qualquer banalidade. Para muitos, a vida está presa por um fio, literalmente. Não temos o calor de Fuerteventura nem a família portuguesa, mas estamos gratos por não estarmos fechados no pequeno apartamento de Paris. Louvamos o trabalho de todos os que estão lá fora: médicos, enfermeiros, funcionários da limpeza e dos supermercados, agricultores, camionistas e tantos outros. E reconhecemos que temos muita sorte porque nos calhou o menos difícil: ficar em casa.
Joana Moreira da Cruz
‘Itália sem Pasquetta’
O Governo italiano decretou o isolamento social até 3 de maio. Já não estamos obrigados a deslocar-nos a apenas 200 metros do domicílio, mas devemos permanecer próximos do local de residência. Em contrapartida, ninguém pode sair de casa sem máscara nem luvas e há multas previstas para os que não cumprem. As máscaras continuam a ser distribuídas regularmente na cidade onde vivo pelos funcionários da Câmara Municipal. Talvez as medidas voltem a ser mais rígidas porque tem aumentado o número de pessoas que abusam. Desde que o país foi invadido pelo coronavírus as informações mudam quase diariamente e é difícil mantermo-nos atualizados.
Giuseppe Conte insiste que a quarentena é a única forma de combater esta pandemia e pede a colaboração de todos. No entanto, são cada vez mais os empresários que fazem pressão para que haja uma retoma económica. Cada região é gerida por uma Prefeitura, a qual tem autoridade para tomar certas decisões. No Veneto, região onde vivo, mais de metade das grandes empresas e indústrias reabriram. Em Veneza, Verona, Vicenza, Treviso ou Padova são muitos os que regressaram ao trabalho progressivamente, após as importantes férias da Páscoa. O país ficará marcado para sempre por uma Semana Santa passada em solitário. Algo que nunca tinha acontecido.
A Pasquetta celebra-se sempre no dia a seguir ao Domingo de Páscoa e é feriado nacional. Manda a tradição que se façam piqueniques ao ar livre, em parques e matas. Prepara-se tudo com antecedência. São várias as idas às compras para escolher os melhores produtos e longas as horas na cozinha para preparar os pitéus. Aqui faz-se salada Pasqualina com ovos cozidos, camarões e espargos, pasticcio (uma espécie de lasanha), vários tipos de arroz, carne grelhada e fugassa veneta (um doce típico desta época do ano).
Logo de manhã, enchem-se os carros com pessoas e muitas coisas. Quando chegam ao destino, é um espetáculo ver tudo o que sai de dentro dos porta-bagagens. Cestos cheios de comida, mesas e cadeiras desdobráveis, mantas, toalhas, bolas, arcos, fitas e até grelhadores! Uma vez escolhido o melhor sítio começa-se a montagem, com a ajuda de grandes e pequenos. Pode enfim começar um almoço a preceito onde nada falta! Vai-se comendo, bebendo, rindo e fazendo um pouco de algazarra, ou não estivéssemos nós em Itália! No final da refeição organizam-se jogos tradicionais e todos os participantes são aceites, os que já se conhecem de anos anteriores e os recém-chegados.
A Pasquetta é um dia especial, diferente, agradável. A confraternização é saudável e a partilha é constante. Esta festa religiosa e popular é comum a todo o país, havendo algumas variantes. Aqui perto de Verona há uma localidade onde se junta numa mesa gigante tudo o que cada grupo trouxe e depois come-se em conjunto. Na hora da despedida, já se vai combinando o encontro do próximo ano.
Pela primeira vez, não foi assim. O meu marido ficou inconsolável, assim como milhões de Italianos. Em vez da habitual reunião ao ar livre, partilharam-se vídeos nas redes sociais, fizeram-se chamadas telefónicas coletivas, improvisaram-se piqueniques em casa. Até o Papa Francisco celebrou a missa sozinho e Andrea Bocelli cantou numa Milano deserta. Teremos de esperar 2021 para celebrar a Pasquetta como reza a tradição!
Diogo Moreira da Cruz
‘Férias da Páscoa em quarentena’
O primeiro-ministro britânico, Boris Jonhson, saiu do hospital – essa é das poucas boas notícias da semana da Páscoa. O país continua em ‘lockdown’ porque é necessário continuar a contenção do coronavírus. Os números continuam a entristecer devido ao aumento exponencial de casos e mortes devido à covid-19.
Infelizmente, o Reino Unido continua a demonstrar uma falta de preparação para combater o coronavírus. Neste momento, não há testes suficientes para os trabalhadores do National Health Service (NHS), que correspondente ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), em Portugal, a isto acresce a falta de equipamento e de proteção pessoal. Mas à inglesa, há ‘politeness’ e ‘bom coração’ em abundância. Tudo serve para agradecer aos profissionais de saúde, desde músicas dedicadas aos mesmos, até colocar as crianças do país todas a desenhar arco-íris e enviar aos hospitais. Nesta última iniciativa, o disparate de envio de desenhos foi tal, que os hospitais foram obrigados a pedir para pararem de enviar os desenhos, que apesar de lindos, estão agora a rebentar com os serviços administrativos dos hospitais.
O expoente máximo nesta semana da bondade dos ingleses, foi expresso na forma de doação de mais de 12 milhões de libras ao NHS, através do pedido do veterano de guerra, captain Tom Moore, que faz 100 anos este mês e comprometeu-se a fazer caminhadas no seu jardim.
Tudo isto é fantástico, mas preferia mesmo ver o NHS bem fornecido e os testes em massa a acontecer.
Aqui em casa, tenho a minha mulher a cozinhar cada vez mais, à qual eu agradeço. Temos passado de uma casa em que toda a família tinha aversão ao fogão, a andarmos a fazer novos pratos através de vídeo receitas. Não me posso queixar, o frigorífico tem desde lasanha caseira, a perna de porco assada, isto sem contar com as três sobremesas. Tudo feito em casa.
A diversão nesta semana de férias da Páscoa fez-se na sala, onde jogo agora cada vez mais consola com amigos que vivem em Lisboa. Fazemos grupos online e jogamos, e a família à volta assiste e dá palpites, do tipo: ‘Vai, estás quase, ganha isso’. Entretenimento puro, que vou certamente sentir falta aquando de voltar à vida de escritório.
O meu trabalho está muito bem. No que me diz respeito, os meus resultados estão 40% acima do esperado, mas como estamos em pandemia e com a economia parada, isso é o mesmo que dizer, está tudo uma porcaria e em risco de ruir. A empresa fatura muito menos e o meu projeto deverá terminar no final da próxima semana. Eu e os meus colegas todos produzimos substancialmente menos, um misto de estarmos em casa e não ser necessário produzir o mesmo nível, quando tudo está a ‘meio gás’.
Neste momento, o futuro ainda é incerto e desconhecemos até quando ficaremos em casa.
Por enquanto, vivemos o dia-a-dia.
Não temos outra hipótese.
Inês Moreira da Cruz
‘Recebi de forma espontânea um prémio que não tem preço’
Ultimamente tenho acompanhado pouco as notícias. É a minha escolha como forma de me proteger do desânimo. Não quero deixar-me abater pelas circunstâncias difíceis.
No entanto, realizei algumas leituras referentes aos elogios a Portugal pelas medidas adotadas… Parece que fomos mais eficazes em relação a outros países europeus. Também é certo que se tem falado que os números apontados não correspondem à verdade.
Nem quero acreditar que só queremos ficar bem vistos! Será?!
Foi anunciado que, após as férias da Páscoa, vamos avançar com a ‘Escola em Casa’ até ao final do ano letivo.
A aprendizagem faz-se na interação com os outros. Quem o afirmou foi Vygotsky.
Portanto, eu não me vou cansar a insistir com o meu filho para ficar sentado em frente ao computador. Não se aprende à força. Freinet dizia: «Ninguém dá de beber a um cavalo que não tem sede».
Sinto-me bem em casa. Aceito o que não posso mudar. Leio, cozinho, estendo a roupa… coisas simples que faço com prazer.
Passo muitas horas apenas com o meu filho e ele não se queixa nem pede para ir à rua e agora nem fala em tarefas escolares. Dá preferência em ajudar em casa e em resolver charadas como por exemplo as do SOL, que gostou tanto de fazer. Até reparou que as palavras cruzadas já estavam feitas.
Fazemos puzzles, jogamos às cartas, ao dominó ou vólei balão e gostamos muito de entrar no faz-de-conta. Sou guarda-redes, samurai, leão, gigante ou dragão!
Há dias, o meu marido chegou a casa com uma surpresa. Uma coluna de som que foi o delírio do filho!
E passámos a dançar, dançar e cantar até cair para o lado.
E foi assim que esborrachei um pé de encontro ao sofá.
Fiquei deitada com o pé em cima de duas almofadas e com gelo até à chegada do meu marido.
Fiquei dispensada de fazer o jantar e outras tarefas similares, mas não tive grande sorte com as dores que suportei.
O meu filho ora ia à cozinha conversar com o pai ora vinha sentar-se ao meu lado a querer saber se estava melhor
Foi numa dessas vindas que me disse: ‘Tenho uma casa com espaço, com sol, com higiene, com comida boa e com pessoas que gostam umas das outras. Tenho muita sorte!’
Recebi de forma espontânea um presente que não tem preço, mas com um valor incalculável.
Gosto de dar, de me dar aos outros, sem expectativas, apenas pelo prazer que me proporciona.
Mas também gosto de receber e sentir a alegria de quem dá.
Os meus irmãos que se cuidem, pois nem sabem o que tenho para lhes dar!
Até lá, vamos continuar juntos a rir, a sonhar, a acreditar, a confiar, a chorar… de tanta felicidade!