A casa da morte quase certa

Os lares ilegais, num país que não tem resposta para acolher os mais velhos, multiplicam-se como um vírus. São uma realidade oculta que não é alcançada pelas estatísticas oficiais e o Estado não consegue controlar.

Jornalistas do SOL acompanharam durante uma semana enfermeiros dos Agrupamentos de Centros de Saúde do Porto (ACES) – que juntamente com o Hospital de São João, numa iniciativa pioneira liderada por Rui Moreira, num tempo recorde, rastrearam lares e outras residências coletivas públicas e privadas da autarquia antecipando a catástrofe que se foi abatendo sobre a população favorita da covid. Hoje publicamos a primeira parte deste trabalho.

O falso à-vontade da mulher ao abrir a porta não anuncia nada de bom. Brincava com a morte que já entrara em força no lar de idosos clandestino que montou há cerca de três anos. Mas isso era ainda um segredo que julgava ter o poder de controlar. Com 65 anos, Maria Idalina Gouveia parece treinada para se manter firme em volteios de um trapézio ao outro, sem cair. Depois de um desaire financeiro, descobrira neste negócio um maravilhoso filão de que não queria abrir mão. E, mesmo com a visita macabra que ali se instalara há coisa de um mês, e já com a doença estampada no rosto, continuava a sobrepor a lógica mercantil à sua própria vida e à dos outros.

Numa pose altiva, recebe os visitantes como quem abre o salão a um baile de pompa. Apesar dos progressos do vírus, a mulher atua sem prudência. Na passagem para o interior do apartamento, o silêncio tem o efeito de um biombo que separa a vida da morte.

Connosco está Isabel Morais – uma enfermeira dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES) do Porto, que, juntamente com o Hospital de São João, numa iniciativa pioneira da Câmara da cidade, começara nos finais de março a rastrear os lares de idosos, antecipando a catástrofe que se abaterá sobre eles. Isabel chegara a este apartamento na zona oriental da cidade já com a pulga atrás da orelha: «Sabemos que já há um óbito. A informação chegou-nos não pela dona da casa mas pela Saúde Pública. A casa não estava referenciada no sistema. Foi a Saúde Pública que, ao identificar o óbito no hospital, acionou todos os meios do ponto de vista epidemiológico para reconstituírem o círculo de quem contactou com essa pessoa. Entretanto, já nos avisaram que há mais um caso positivo. Toda a gente que aqui vamos encontrar são contactos de alto risco».

A enfermeira não tem parado nos últimos dias. Numa ação-relâmpago, em pouco mais de uma semana desde que a autarquia implantou o programa, começara por rastrear os 67 lares da terceira idade, separando os idosos positivos dos negativos, de forma a conter a propagação arrasadora do vírus. Já vira de tudo e ganhara calo. Conhece o poder de incubação e sementeira da doença e o resultado da primeira fase do trabalho fê-la sentir que todos os sacrifícios valeram a pena: em quase quatro mil testes, apenas 28 idosos estavam infetados, enquanto o número de funcionários atingidos não chegava às quatro dezenas.

Isabel entrava agora numa nova etapa para encurralar o vírus, que englobava o rastreio a todas as residências coletivas para idosos, públicas e privadas, e ainda estruturas para deficientes mentais e albergues para sem-abrigo. Mas nesta terça-feira, 13 de abril, o alerta de uma morte numa suposta casa de acolhimento despertava-a para outra realidade: «A informação que temos é que é uma casa de acolhimento. Os seja, são famílias que em articulação com a Segurança Social recebem idosos em suas casas, tendo assim uma fonte de rendimento. O problema é que muitas vezes recebem mais pessoas do que é permitido e sem condições para isso. O limite, penso, são quatro pessoas. Mas também pode ser um lar clandestino. Há muitos no país e isso pode ser um barril de pólvora».

À entrada, Isabel pergunta à dona da casa: «Este é o lar de acolhimento Joaquim Kopkke?». Mas Maria Idalina mantém o equívoco: «É sim, podem entrar!». A enfermeira, concentrada no seu trabalho e equipada a rigor, parece ignorá-la, mas os seus olhos indagadores vão registando todos os pormenores enquanto se dirige para um dos quartos onde irá testar idosos e funcionários.

Num espaço potencialmente infetado, a falta de precauções salta à vista. A tarde vai a meio, e, na sala, Virgínia, sem máscara no rosto ou qualquer outra proteção, sentada num sofá gasto, parece concentrada no telejornal da RTP3. No entanto, o televisor está sem som e ela já pouco ouve. Gotículas de suor ensopam-lhe o rosto e desfazem-lhe a maquilhagem, sinal de que ainda não desistiu da rixa alegre da vida. De repente, é surpreendida por estranhos à sua rotina. O olhar afunda no da jornalista, como uma âncora: «Ajude-me, tire-me daqui».

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Nota aos leitores: Por lapso, foi publicada inicialmente uma fotografia neste artigo que não correspondia ao lar retratado no texto, por esse motivo o SOL pede desculpas. O erro foi corrigido assim que a situação foi detetada.