Eu e a Cavalaria ou O meu 25 de Abril

Na noite de 24 de Abril, por volta da uma e meia (talvez um pouco mais cedo que o “habitual”) e em pleno primeiro sono, lá se acenderam de novo as luzes da caserna e lá entram os instrutores: “Está tudo a levantar!!! Formar na parada equipados em menos de cinco minutos!!!”, batendo com bastões…

Se não me falha a memória (talvez por algumas horas) completam-se hoje, 14 de Abril de 2020, dia em que concluo este texto, 46 anos exactos sobre a minha chegada à porta de armas da Escola Prática de Cavalaria (EPC), em Santarém.
Tinha então 26 (!) anos, vinha de gozar um pequeno período de férias (que por mera coincidência corresponderam ao período pascal), e “chegava” da Escola Prática de Infantaria (EPI), em Mafra, onde fora incorporado no dia 14 de Janeiro de 1974.
Casado, com um filho, quase a completar o curso de Agronomia e trabalhando (para co-sustentar a família em conjunto com a minha mulher) como tarefeiro no Laboratório de Ensaio de Produtos Florestais – departamento do então Instituto dos Produtos Florestais, entidade Corporativa (ou Reguladora, como agora se diz…) que, em 1972, resultara da fusão da Junta Nacional da Cortiça (onde comecei), da Junta Nacional dos Produtos Resinosos e dos Grémios dos Industriais e dos Exportadores das Madeiras – estava ali, para fazer o 2º Ciclo do Curso de Oficiais Milicianos (COM), com a pouco vulgar especialidade de Carros de Combate M-47 (CCM47), julgo que como “prémio” do segundo lugar que conseguira no 1º. Ciclo do COM em Mafra.
Dizia-se – e confirmou-se – que os primeiros classificados de Mafra seriam distribuídos por especialidades com muito poucas probabilidades de serem mobilizados para África (a não ser que fossem mais tarde tornados a chamar para o designado Curso de Capitães, uma vez que o Exército completava dessa forma a sua falta de oficiais do quadro com esta patente) e eu tudo fizera para me classificar entre os primeiros para, cumprindo a minha obrigação militar, evitar uma ruptura mais drástica com a minha família.

Vinha (vínhamos, todos os que comigo entraram naquela porta de armas) com o desconforto de uma farda que vestira pela primeira vez em Mafra, com uma boina e com umas botas com que não me habituava a ver-me e com a experiência mais ou menos “soft” de uns primeiros três meses de recruta, com muito frio mas com a razoabilidade, por parte dos instrutores e oficiais, que foi “dispensada” aos mais velhos (“adiados”) que o Exército decidira incorporar todos juntos em Janeiro de 1974.
Abriu-se pois a porta de armas em Santarém e fui/fomos recebidos pelo capitão, oficial de dia, de bota alta, pingalim debaixo do braço, olhar sobranceiro e ameaçador: “Ora cá estão as novas Amèlinhas!” disse-nos com ar “simpático”.
Formámos na parada. De um lado, os cadetes do 2º ciclo do CSM – Curso de Sargentos Milicianos (três ou quatro pelotões) e, a noventa graus e de costas para a nossa caserna, os dois pelotões do dito 2º ciclo do COM.
O primeiro pelotão, com rapazes bem jovens, era o pelotão dos Atiradores, o outro, o meu, o pelotão de pessoal de mais alta média etária que englobava todas as outras especialidades: REC Panhard (de Reconhecimento), REC AML (autometralhadoras ligeiras), CCM24 (carros de combate M 24 “sobreviventes” da Guerra da Coreia), CCM47 (carros de combate M 47, maiores e mais modernos), etc..
Os dois pelotões do COM tinham como Comandante (do 2º Esquadrão de Instrução) um tipo simpático, de fácies que variava entre o muito sério e o irónico, de poucas palavras e com aspecto determinado.
Era o Capitão Salgueiro Maia que aparecia diária e pontualmente nas formaturas (quase sempre com botas iguais às nossas) e, de vez em quando, junto dos oficiais e sargentos milicianos que davam a instrução diária.
Foram pois eles que se encarregaram de nos “explicar” as novas rotinas:
– Horários de instrução apertadíssimos, sem pausas superiores a 15 minutos (mesmo no final das refeições);
– Absoluto aprumo nas formaturas;
– Proibição de circular com as mãos nos bolsos (nos estribos, como simpaticamente nos diziam);
– Absoluta proibição de deitar para o chão – onde quer que fosse – um papel, uma beata, um fósforo ou qualquer outra coisa ou resíduo;
– Se alguém fosse apanhado junto de um desses detritos (mesmo que deixado por outro) era imediatamente punido (daí ser muitíssimo raro – mas necessário – ter de apanhar e esconder no bolso um fósforo ou uma beata que algum estúpido ou descuidado tivesse deixado no chão);
– Passagem de revista cuidadosa a todos os instruendos, em farda “de sair”, onde a barba era verificada (em caso de dúvida do oficial de dia ou do de prevenção, tinha lugar a passagem das costas da mão ou de um cartão de visita ao arrepio da face, para ver se escorregava ou ressaltava), com as botas ultra engraxadas e com as espadas cruzadas – insígnia da Cavalaria – brilhando como novas;
– Mas, enorme diferença para o que vivêramos em Mafra, duas exigências para as quais nenhum de nós estava preparado: i) na dita revista ao fim do dia, as botas deviam estar luzidias e bem brunidas (muito mais do que em Mafra) mas o cadete devia igualmente ter na mão direita o outro par de botas (só nos tinham dado dois pares, em Mafra) igualmente engraxado e impecável (quinze minutos após a instrução, após uma higiene apressada que se seguia a uma instrução de campo em lamaçais e terrenos encharcados por um Abril chuvoso); ii) os cadetes do COM que pretendessem sair do quartel ao fim do dia para um breve passeio pela cidade (ao contrário do que ocorria em Mafra, era proibido pernoitar fora do quartel) teriam de se apresentar na respectiva formatura (outra) já com calças de Terylene impecavelmente vincadas, sapatos de verniz tipo “mata barata no canto” e chapéu de pala (de “músico”) (!!!) apetrechos que – salvo um ou outro mais bem informado – ninguém tinha porque não constava do material distribuído e era preciso, por ser “facultativo”, tê-lo adquirido antes, no Casão Militar, em Lisboa.
Cabe aqui explicar o nervosismo e a angústia que tal representou para todos (ou quase todos): havia apenas uma cabina telefónica, operada manualmente por um soldado, para todos os instruendos, não se podia sair para telefonar e… o telemóvel não tinha ainda sido inventado… Assim, em cada um dos escassíssimos minutos entre as actividades da instrução, lá corriam todos para a fila do telefone que, requinte de malvadez, estava aberto durante todo o dia – quando estávamos ocupados – e fechava meia hora depois da “formatura fatal”, para pedir a um qualquer familiar, para lhe trazer as calças, os sapatos e o chapéu que lhes permitiria sair do quartel depois do jantar nos dias de semana (até às 23h00), e nos fins-de- semana que se avizinhavam.

No terceiro dia lá consegui chegar ao telefone (não recordo quanto me custou… fiduciariamente, também) e no quinto dia lá estava a minha mulher à porta a deixar-me a desejada encomenda (a que acrescentei um terceiro par de botas exclusivamente destinado a estar imaculadamente pronto para a revista) que me iria permitir (se tudo corresse bem) sair do quartel onde entrara cinco dias antes.
Estas regras “simples” conviviam com um trato genericamente respeitoso e com o “requinte” de sermos servidos ao almoço e ao jantar por soldados (praças) de imaculados casacos brancos com lustrosos botões amarelos, limpos e polidos com muita solarina, mesmo quando nos apresentávamos, entre sessões de instrução, bem menos limpos do que eles. A anos-luz, pois, da gordura permanente das mesas dos refeitórios de Mafra onde os pratos de sopa eram (fisicamente) colocados nas grandes malgas de onde a sopa fora servida, logo após alguém terminar a sopa e perguntar: “Alguém mais quer sopa?”. (Não convinha repetir a sopa, o melhor do rancho, porque isso iria atrasar todos os outros e condenar a mesa a comer frio ou do que sobrasse no fundo do tacho…).
O dia a dia da instrução era principalmente composto por exercícios físicos inusitadamente violentos e exigentes (especialmente se comparados com os vividos em Mafra) a que os instruendos eram sujeitos sem aviso nem treino prévio. Quem conseguia, marcava pontos. Quem não conseguia, repetia e tornava a repetir até conseguir (sem marcar pontos) e/ou começava a ser ameaçado de chumbar a instrução.
Descer uma corda grossa e sem nós, de uns bons quatro ou cinco metros (logo no primeiro dia!), fixada num muro (alto) no recinto da Feira (de Santarém) e com um colchão fininho e manhoso no fim (da primeira vez), entrar numa (ou várias) manilha de águas pluviais (e outros lixos), com água pelos joelhos e em plena escuridão, saltar “para o desconhecido”, onde eramos “convidados” a saltar sobre o murete do outro lado da estrada, sem sabermos para onde (e de que altura) caíamos, etc. etc.. Era uma verdadeira “festa” de surpresas que complementavam as extenuantes e indispensáveis marchas diárias pela estrada fora.
A partir do quarto dia (no primeiro fim de semana só podíamos dormir fora no sábado …se tivéssemos conseguido sair…), todas as noites e a horas diferentes e por períodos variáveis, os instrutores entravam na caserna, abriam as luzes e gritavam “toca a formar na parada em 5 minutos!!!” e quem saísse da porta depois dos 5 minutos era “premiado” com qualquer coisa nas costas ou no pescoço…
Para além de não ser fácil acordar e vestir em cinco minutos de confusão, os instruendos de Santarém (CSM e COM) tinham como equipamento permanente de instrução, os suspensórios de combate (em lona semelhante à do cinto), o capacete (que andava connosco para toda a instrução fora de sala) e a G3 que nos fora distribuída (sem munições, claro) e que tinham de ir sempre devidamente colocados e limpos…
Foram 10 dias loucos! Tão exigentes e cansativos que mal conseguíamos olhar sem rancor (e sem sono) para os oficiais do quadro que se apresentavam (alguns todos os dias) nas formaturas matinais, com negras e bem brunidas botas de montar, pingalim e insígnias e esporas chocantemente elegantes e brilhantes.
(Já depois do 25 de Abril o, mais tarde nacionalmente conhecido, Major Tomé – de que ficaria amigo – era o expoente máximo desta pose militar germanófila, uma vez que a tudo isto juntava uma envergadura física invulgar, um imaculado e aparado cabelo loiro e uns olhos azuis a condizer! Só chegou à EPC depois do 25 de Abril, vindo de Moçambique, mas se o tivéssemos conhecido antes, ainda mais convictos teríamos ficado de que tínhamos aterrado no ninho dos militares mais conservadores que se poderia encontrar em Portugal!).
Eu, como quase todos os outros, tínhamos saudades dos tempos de Mafra, em que saíamos ao fim do dia – sem grandes exigências – e dormíamos fora (os de Lisboa, como eu, em casa, embora quase todos tivessem “morada oficial” numa meia dúzia de quartos imaginários que senhoras da terra “alugavam” para, a troco de uns cobres, atestarem a nossa residência em Mafra) e regressávamos ao quartel às 8h30 para novo dia de instrução.
Na noite de 24 de Abril, mais uma vez, por volta da uma e meia (talvez um pouco mais cedo que o “habitual”) e em pleno primeiro sono, lá se acenderam de novo as luzes da caserna e lá entram os instrutores: “Está tudo a levantar!!! Formar na parada equipados em menos de cinco minutos!!!”, batendo com bastões nos ferros dos beliches – como aliás faziam antes – para aumentar ainda mais a sensação de urgência.
Desta vez, ao contrário de anteriores vozes como “Instrução nocturna! ”, “a acordar, Amèlinhas!”, “rápido, estamos a ser atacados!” e outros apelos originais, o vocativo era: “está a andar! está a andar! vai tudo para Lisboa!”.

A reacção dos cadetes foi exactamente a mesma do costume: “Sacanas, estes filhos da p…, não nos deixam dormir!”.
No tempo concedido lá estávamos, sonolentos mas prontos e ajaezados, suspensórios de lona colocados, capacetes na cabeça e G3 na mão.
Mas a todos começou a saltar à vista que algo de diferente se passava naquela noite: as casernas dos soldados (praças) estavam iluminadas, as garagens das viaturas tinham as portas abertas e já se ouviam aqui e acolá barulhos de motores postos em marcha, coisas que nunca tinham acontecido antes naqueles inopinados episódios de instrução nocturna.
Do lado das casernas do 2º ciclo do CSM – que nunca se encontravam connosco na instrução nocturna – saíam igualmente estremunhados os respectivos instruendos…
Cada vez mais atentos e curiosos, fomos, os cadetes do COM, encaminhados da parada para a maior sala de instrução, em anfiteatro, onde tinham lugar algumas das aulas teóricas, à esquerda das nossas casernas e frente às garagens dos carros de combate.
Minutos depois, entra o nosso Comandante do Esquadrão, o dito Capitão Salgueiro Maia e faz-se um silêncio absoluto.
Uma pausa e começa de imediato: “Meus senhores: há os Estados comunistas, os Estados socialistas e o estado de coisas a que esta merda chegou” (assim, de chofre).
“Nestes termos”, continuou, “o MFA – Movimento das Forças Armadas – decidiu tomar conta da situação do País, razão porque a unidade vai sair para Lisboa” (nenhuns comentários ou considerações de caracter político ou social foram acrescentados).
Após o silêncio e a digestão (rápida) emocional que se seguiu, o Capitão Salgueiro Maia procurou qualquer coisa, primeiro, no bolso esquerdo do blusão da farda e, depois, no direito, que aí encontrou. Tratava-se de um papel arrancado de um qualquer caderno quadriculado ou de linhas, dobrado em quatro, que desdobrou e leu sem pausas mas com atenção (por, claramente, não o saber de cor): “Assim, o Movimento das Forças Armadas irá instituir uma Junta de Salvação Nacional que integrará os seguintes elementos”…e leu o nome de uma boa dezena de oficiais superiores de onde retive/retivemos o nome do General Silvino Silvério Marques (então, julgo que em Angola), o do General Galvão de Melo e o facto de nem o nome do General Spínola nem o nome do General Costa Gomes constarem entre os nomes dos restantes desconhecidos, a maioria dos quais, aliás, nunca viria a aparecer na dita Junta!

Mau sinal para quem, como os cadetes presentes, das chefias militares só conhecia a opinião de Spínola (que escrevera meses antes um livro sobre a sua visão sobre o futuro das colónias) e, de nome, Costa Gomes por ter sido mediaticamente exonerado, há pouco mais de um mês (juntamente com Spínola), do cargo de Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas do regime.
Conclusão: A mudança previsível que se anunciava não tinha nem caras nem rumos conhecidos (pelo menos para os mancebos ali presentes).
A este propósito Salgueiro Maia dir-me-ia uns bons meses mais tarde, quando as nossas relações institucionais e pessoais se alteraram por eu ter deixado de ser cadete e ter passado a ser (como Aspirante a Oficial Miliciano – Asp. Of. Mil – na gíria: “aspovmil”) o seu adjunto no Esquadrão de Carros de Combate – “sabes, rapaz, quando vi chegar o Spínola ao Carmo (para receber a rendição de Marcelo Caetano) todo inchado, marcha firme e muito compenetrado do seu papel de “chefe”, ignorando-me completamente – como se fosse líder (ou sequer membro) do MFA, onde ele nunca riscou – fiquei logo a saber que a coisa não ia ser como nós pensáramos e que estávamos já a ser apalpados!”
Depois da leitura (sem qualquer comentário ou adjectivo) daquele pedaço de papel – para cuja discrepância de nomes nunca tive ocasião de pedir ou ouvir explicação – Salgueiro Maia continuou: “os atiradores (eram o primeiro pelotão) saem e formam junto às viaturas de transporte (as “famosas” Berliets e alguns Unimogs) e o segundo pelotão (nós) fica aqui mais um pouco”.
Enquanto os primeiros saíam, os restantes aproveitaram o momento de pausa para olharem uns para os outros na expectativa de adivinhar uma qualquer expressão de entendimento ou de compreensão da extensão do que se estava a passar e do que iria seguir-se… e nada!
Já com apenas os instruendos não atiradores no anfiteatro (pessoal que, como referi, por força da primeira incorporação de 1974 tinha uma média etária mais elevada e correspondia aos melhores classificados de Mafra ou eram licenciados com experiência profissional anterior) Salgueiro Maia concluiu de forma surpreendente: “Meus senhores, os atiradores já foram encaminhados para a coluna que vai sair para Lisboa. Quanto aos senhores, têm cinco minutos (era tudo em cinco minutos…) para cada um decidir o que quer fazer: i) juntar-se aos atiradores; ii) ficar no quartel no contingente que vai fazer a segurança da unidade; ou iii) vestir-se à civil e sair do quartel, pelo portão das viaturas, imediatamente. Os que vão, formam junto à coluna, os que ficam, formam em frente ao portão das garagens dos carros de combate (viaturas pesadas e de lagartas que não integravam a coluna) e os outros…põem-se a andar!”.
Mal ele saiu da sala, cada um de nós – mal nos conhecíamos… – dirigiu-se tumultuosamente para junto daqueles que melhor conhecia ou confiava, para tentar perceber as respectivas escolhas e opiniões.
Entre nós, não se apercebeu ninguém particularmente politizado e activista que quisesse sobressair ou liderar as conversas, alguém lembrou e todos recordaram o golpe da Junta Militar de Pinochet no Chile, que tinha tido lugar em 11 de Setembro do ano anterior (há escassos 6 meses, portanto) e de cujos resultados e consequências já iam chegando – mesmo com a censura em Portugal – notícias sinistras e bem negras.
Estávamos pois perante um cocktail inusitado: militaristas de alto coturno anunciavam-nos um Golpe de Estado, tendo como “cartão de visita” botas altas e lustrosas, disciplina inesperadamente dura e muitas vezes excessiva (para os padrões militares que conhecêramos em Mafra) e, particularmente, mantendo um olímpico e completo silêncio sobre a eventual ligação deste Movimento ao sobressalto militar, confuso, do anterior mês de Março (a 16), num sábado em que nós, então instruendos em Mafra, já estávamos em casa de fim-de-semana. [Soube depois que quando a unidade das Caldas da Rainha comunicara, na sexta-feira 15, aos elementos do MFA que iria antecipar a saída para o dia seguinte – fora da cadeia de comando do MFA e por inspiração de elementos afectos ao General Spínola – já o Batalhão de Instrução de Mafra (uma força não negligenciável de cinco Companhias com 150 homens cada) tinha saído da Escola Prática de Infantaria para gozo do fim-de-semana].
Resultado: um bom número de nós (um pouco mais de metade do pelotão) decidiu ficar no quartel, outros tantos juntaram-se à coluna em formação e… acho eu, a ninguém passou sequer pela cabeça sair do quartel à civil.
Fomos pois, uns quinze ou vinte, formar junto às garagens dos carros de combate, juntando-nos a outros tantos praças e a uns quantos polícias militares que entretanto iam chegando.
Um Capitão do quadro permanente enquadrou esta força de defesa da Escola Prática de Cavalaria, onde também ficaram outros militares, para além do Major “nomeado” Comandante interino e do ex-Segundo Comandante da unidade que, depois de sábia e atempadamente embriagado na noite anterior nos habituais jogos de poker da sala dos oficiais (dizia-se), acordou na manhã seguinte fechado e trancado no seu quarto…
A coluna para Lisboa formou-se ordeiramente e pareceu aguardar alguns momentos, antes da ordem de “motores em marcha”. Parecia esperar…
Soube depois o que se aguardava: dois oficiais milicianos (um aspirante e um alferes) tinham saído de Santarém – à civil – um bom par de horas antes, na viatura particular de um deles (um Datsun 1000, vermelho) em direcção a Lisboa com a missão – caso entretanto ouvissem as esperadas senhas pela rádio, primeiro o Depois do Adeus (às 22h55) e, a seguir, a Grândola Vila Morena (à meia noite e vinte) – de verificarem se existiam tropas fiéis ao governo no final da auto-estrada, à entrada de Lisboa (como acontecera no 16 de Março).
Aí chegados e já sabedores que a luz verde tinha sido dada, os dois “batedores” esperaram até às 2h00 e trataram de procurar um telefone público (naquele sítio ermo não havia muitos à mão…) para transmitir para Santarém essa boa notícia.
Acontece que, exactamente por não existirem muitas cabinas telefónicas por perto, não lhes foi difícil tropeçar, com susto, em dois outros indivíduos à paisana que, “suspeitamente”, se lhes dirigiram.
Pensaram de imediato que seriam agentes da omnipresente PIDE/DGS !
Hesitação mútua e um deles, o de Lisboa que era afinal um membro do MFA no RAL 1 (Regimento de Artilharia Ligeira 1), depois rebaptizado RALIS, disse: “Coragem”. Era a senha para este caso… Os de Santarém deveriam responder “Pela Pátria”…mas esqueceram-se da contra-senha…! Nada de inultrapassável… e na boa técnica nacional do desenrascanço lá conseguiram convencer os outros que estavam todos do mesmo lado!
O telefonema foi feito e a coluna saiu, às 3h30, mais tranquila, de Santarém… à velocidade do carro mais lento que a integrava, claro… demorando cerca de duas horas para percorrer 80 km e atingir o seu objectivo no Terreiro do Paço.
Nesse intervalo foi a vez do destacamento improvisado para a defesa do quartel, onde me integrava, receber a atenção do Capitão e as balas para as G3 (e para as outras armas entretanto distribuídas, em função dos postos que cada um era suposto ocupar).
A mim, desta vez com “glória”, foi-me destinada a torre sineira (sem sino, claro) sobranceira à fachada principal do quartel e quase por cima da porta de armas, cuja posição estratégica controlava a única via de acesso rodoviário a ambas as entradas da unidade.
Posição crucial – como me foi designada pelo Capitão – que passou a ser identificada como Alerta 2 (o Alerta 1 ficou a cargo de um polícia militar colocado lá em baixo, por detrás da encerrada porta de armas), para a qual me foi entregue uma vetusta metralhadora pesada (uns 10kg!) BREN, de fabrico inglês e que tivera a sua “época de ouro”, se se pode dizer isso de uma arma de guerra, durante a Segunda Guerra Mundial e que fora posteriormente “abandonada” quando foi adoptada em Portugal a “munição NATO” (de calibre diferente). Tinha um imponente cunhete de munições de encaixar no topo da arma e destinava-se, dado o seu peso, a ficar apoiada com um bipé no parapeito do arco da torre, virada para a entrada da praça fronteira ao quartel. Uma breve descrição da arma (que apenas vira antes nos livros de banda desenhada do Major Alvega que glorificavam o herói e o exército britânico, onde a BREN era a estrela do desenhador), da sua forma de funcionamento e municiamento…e já está!
Cada um de nós, levando o áspero mas quente cobertor “de papa” regulamentar da tropa debaixo do braço, ficou onde o Capitão o deixou e eu recebi dele ordens claras: Em caso de aproximação suspeita não devia fazer fogo, devia chamar (verbalmente, claro…) o Alerta 1, com a expressão “Alerta Uumm!!, Alerta Uumm!!” e depois se veria…
Fiz a experiência na presença do capitão, gritando a plenos pulmões (estava uns bons dois ou três andares abaixo de mim) e ouvi como resposta, lá de baixo: “Alerta Dois! Alerta Dois! Escuto!” (como se estivéssemos a falar via rádio…).
Antes de precisar de perguntar, o Capitão informou-me que quando precisasse de ir à casa de banho deveria informar disso, pela mesma via, o Alerta 1 e aguardar que alguém me viesse substituir temporariamente. Quanto às refeições elas iriam ter comigo. E, de hora a hora, os dois postos deveriam chamar-se entre si.
Só. Profundamente só e pensando pela primeira vez na minha mulher e no meu filho, lá me acomodei (de pé, claro), colocando a BREN e as munições em posição, saquei do bolso o meu mini transístor Sinclair (tão mini que ainda o seria hoje!) que recolhera quando fora buscar o meu cobertor à camarata e embrulhei-me como pude para me confortar da aflição e do frio bravo, de que ainda guardo viva e dolorosa memória.
Já passava pois das duas da manhã desse 25 de Abril quando a minha “guerra” começou…
As horas foram passando (Alerta 1!, Alerta 1! Alerta 2!), o transístor debitando marchas militares, intercaladas com a leitura de um comunicado do “Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas” apelando a que os cidadãos se mantivessem em casa e a que nenhuma força militar ou militarizada se opusesse ao movimento militar em curso.
Notícias quanto ao desenvolvimento das operações…nada. Nem de dentro, nem de fora…
Olhos na rua, pequeno-almoço Alerta 1, Alerta 2, casa de banho, olhos na rua, almoço, Alerta 1, Alerta 2, casa de banho…jantar…
Caiu a noite. Alerta1, Alerta 2…até que fui visitado pelo Capitão, deveria passar pouco das 21 horas…
Disse-me que estava a visitar todos os postos e alertou-me com a seguinte mensagem: “Ainda não há informações seguras sobre como estão a correr as coisas em Lisboa. Se houver problemas aqui e existir uma tentativa de assalto ao quartel, vai ser esta noite! Atenção máxima ! Amanhã já vamos ter mais notícias”.
E lá prosseguiu a vigia, ouvindo a lengalenga do transístor, com muito sono e o coração apertado, na companhia da velha BREN e do invisível Alerta 1.
Nem vivalma na rua…
Eram umas boas três horas da manhã quando as luzes de uns faróis anunciaram uma viatura que, vinda do centro da cidade, virou à esquerda (quando os vi melhor), percorreu a rua ao longo do mercado lá longe à minha frente e, em vez de prosseguir em linha recta, afastando-se do quartel, virou à direita, entrando na praça fronteira à unidade, mesmo na minha direcção!!!
A viatura vinha devagar; não a consegui identificar de imediato com as luzes mortiças dos candeeiros de iluminação pública e o meu coração batia que nem um tambor…
Comecei então a chamar Alerta 1…e nada…e eu berrava cada vez mais alto: Alerta 1 !! Alerta 1 !!!! e… nada!
Uns momentos depois e à medida que a viatura se aproximava, pude ter a certeza que se tratava de uma viatura militar blindada, ligeira. Uma AML – 60 (autometralhadora ligeira) Panhard.

Continuei a chamar pelo Alerta1 e, perante o silêncio do polícia militar da porta de armas (soube depois que no “quentinho” do posto – não estava ao relento como eu… – tinha adormecido!), comecei a considerar seriamente que devia fazer fogo com a BREN, coisa que nunca tinha feito na minha vida!
Grito mais? Disparo? Para onde? E se…?
Estava eu nesta hesitação quando a AML, em vez de prosseguir direita à entrada das viaturas (acesso à minha esquerda), virou lentamente à esquerda, colocando-se debaixo de mim e exactamente à frente da porta de armas, onde parou e desligou as luzes.
Fiquei quase em pânico: não disparara enquanto tinha visibilidade e agora o “inimigo” estava fora da minha mira e eu só o veria se me debruçasse para fora do parapeito onde me escondia!
Enchi-me de coragem e espreitei, pensando que lá de baixo poderia estar alguém com uma arma à espera de ver surgir a minha cabeça desprotegida. Olhei, a medo, e vi então a tampa da torreta da AML a abrir-se lentamente e alguém a assomar muito cautelosamente…
“Sou eu! O Vasconcelos!” gritou e repetiu o vulto lá de dentro.
Ora o Vasconcelos era, nem mais nem menos, um dos furriéis milicianos que já nos dera instrução e que pertencia ao Esquadrão de Reconhecimento da unidade!
Ele estava claramente assustado. Tanto ou mais do que eu…
Ou os meus gritos ou os gritos do Vasconcelos terão acordado o Alerta1 e tudo se esclareceu pouco depois:
A AML do Vasconcelos (de que ele era o chefe) estivera no Terreiro do Paço, deslocara-se para o Carmo e, às tantas, acabada a “guerra” no Carmo, perdera-se da coluna de Santarém!
Certo que a missão em Lisboa (onde já se ovacionava o MFA) estava cumprida, sem rádio e com problemas eléctricos na viatura, o Vasconcelos decidiu regressar a Santarém para onde, pensava ele, a coluna de Salgueiro Maia já se dirigira. (A coluna da EPC só regressaria no final desse dia…).
Meteu-se a caminho e, para seu espanto, quando esperava encontrar a Escola Prática de Cavalaria iluminada e em festa, em torno da coluna regressada, viu-se perante um quartel silencioso e às escuras e com uma ameaçadora metralhadora pesada (era a “minha” BREN) manifestamente apontada a quem se chegasse e seguindo-o na mira!
Decidiu tentar a identificação visual no posto da porta de armas (como viria a acontecer) mas, para susto dele (e meu) quando desligou o motor para se poder fazer ouvir, o dínamo da pequena Panhard decidiu entregar a alma ao Criador… e todas as luzes se lhe apagaram.
Nem ninguém saía do quartel e lhe abria a porta, nem ele conseguia tornar a sair dali para fora!
Daí ter-se enchido de coragem (também ele), posto a cabeça de fora e tornado a gritar com toda a força “Eu sou o Vasconcelos!” (que era, de facto, um furriel conhecido e simpático).
Desfeito o equívoco e descida a adrenalina, lá saiu um dos tripulantes da AML (eram três, ao todo) que, com a ajuda do polícia militar, puseram o motor em marcha e a viatura a caminho do interior da unidade.
Foi com este anticlímax que a minha “guerra” acabou no 25 de Abril.
Outras “guerras” – não menos emocionantes e pitorescas – se seguiram no PREC e, particularmente, no Verão Quente de 1975, até ao dia 3 de Novembro desse ano, data em que fui passado à disponibilidade…para meu grande alívio!

Aroeira, em confinamento social,

por João M. A. Soares

Engenheiro Agrónomo