Algumas reflexões para a hora do duche

Precisei de ir à arrecadação buscar qualquer coisa e encontrei um livro que já nem me lembrava de ter. 

Há dias, um dos meus filhos apontou para um conjunto de livros na estante da sala e perguntou: ‘O que são aqueles?’. Enquanto eu tentava perceber a quais se referia, ele leu com dificuldade o nome do autor (‘Lé…vi-Strau…ss’), o antropólogo francês que morreu em 2009 aos 100 anos. Talvez o tenham atraído os títulos escritos em letras coloridas, que eu fui traduzindo um a um: «O Cru e o Cozido, Do Mel às Cinzas, A Origem das Maneiras à Mesa e – aqui hesitei um pouco – O Homem Nu».

Por alguma razão, lembrei-me desse título – O Homem Nu – enquanto tomava banho hoje. E depois, enquanto me vestia, veio-me à cabeça o pensamento de que debaixo das roupas, mesmo das mais elegantes ou mais caras, existe sempre um homem nu, que se pode cobrir, mas continua lá…

Antes do almoço, já vestido, precisei de ir à arrecadação buscar qualquer coisa e encontrei um livro que já nem me lembrava de ter. Trata-se de um compêndio de frases célebres, The Penguin Dictionary of Modern Quotes. Na altura em que o comprei interessou-me porque pouco tempo antes tinha-me cruzado com uma citação muito reveladora do líder bolchevique V. I. Lenine. Lenine era um grande apreciador de música, mas preferia evitá-la. «Gostaria de a ouvir todos os dias», dizia ele. «Mas não posso ouvir música com demasiada frequência. Afeta-me os nervos, faz com que queiramos dizer coisas estúpidas e simpáticas e acariciar a cabeça das pessoas […]. Não devemos acariciar a cabeça de ninguém […] a nossa mão pode ser arrancada à dentada. Temos de lhes bater na cabeça, sem a menor piedade».

Por acaso este excerto não se encontra entre os vinte de Lenine que J. M. Cohen selecionou para o seu dicionário de citações. No prefácio, de 1970, o autor definia assim a sua intenção: «Este dicionário contém o que esperamos que será recordado no ano 2000 das coisas ditas e escritas nos primeiros dois terços do século». A citação mais recente da primeira edição era um comentário, com ecos bíblicos, do Presidente Nixon à chegada do homem à Lua: «Esta é a maior semana na história do mundo desde a Criação».

Devo dizer que, folheando o dicionário ao acaso, verifiquei algum desequilíbrio na escolha das citações: há 12 de Lawrence Durrell, 30 de W. B. Yeats, 71 de P. G. Woodehouse, 81 de D. H. Lawrence e 106 de W. Churchill… mas apenas uma de M. Gandhi!

A cultura popular está bem representada: Bob Dylan tem direito a 22 frases. E aqui regresso ao tema do início, a nudez. «But even the President of the United States», diz uma das canções de Dylan, «sometimes must have to stand naked» – ‘mesmo o Presidente dos EUA às vezes tem de estar nu’. Bem visto! E termino com uma citação de Jean Cocteau sobre o seu amigo Picasso: «Picasso insistia que tudo era miraculoso. Era miraculoso, dizia ele, que uma pessoa não se derretesse na água do banho». Amanhã, quando for tomar o meu duche, sou capaz de ficar a pensar nisso.