Como é que acha que estamos hoje, ao fim de dois meses de confinamento?
É claro que isso é variável. Nós não somos um todo homogéneo como, aliás, se verifica logo quando inevitável e sistematicamente estamos a falar dos mais frágeis, seja por serem mais velhos, seja pelas condições em que vivem – desde o facto de serem sem-abrigo, às questões financeiras, etc. Quer queiramos quer não, a expressão de que o vírus é democrático é um otimismo. O vírus é democrático, nós é que não o somos. Há desigualdades biológicas e desigualdades sociais que tornam uns mais frágeis do que outros. Em termos psicológicos, também temos de distinguir outras questões. Para pessoas, por exemplo, que já não estavam bem, em termos gerais, esta situação stressante é aquilo a que nós chamamos uma situação limite. A tendência será para piorar em termos, sobretudo, da ansiedade, da depressão. O que não significa que para determinadas pessoas isto não possa ter sido uma hipótese de parar, reavaliar situações, reavaliar prioridades.
Sentiu isso com algumas pessoas?
Na minha própria clínica, não deixei de fazer consultório, limitei-me a fazer por Skype, por indicação da Ordem dos Médicos, tenho pessoas que neste momento me estão a dizer: ‘Agora estou a ficar farto, mas isto foi muito útil’. Muitos de nós vivem uma vida alucinante. Agora, quando isto afrouxar um pouco, desde logo à cabeça há dois tipos de risco. Alguns de nós vão estar, eventualmente, demasiado parcimoniosos no a pouco e pouco, naquilo que tanto os políticos como os especialistas de saúde apelidam de ‘novo normal’. Não é o antigo normal. Você pode, por exemplo, e isso é legitimo, ter a esperança que quando houver uma vacina seja possível falar de um normal como aquele que conhecemos, agora não. E mesmo nessa altura, alguns de nós terão sofrido marcas que os modificarão na sua maneira de estar. Alguns de nós podem agora encarar com excessivo medo níveis um pouco maiores de liberdade.
E qual é o outro risco?
Em contrapartida, e isso assusta-me muito, outros podem ter uma visão eufórica da questão, que é: ‘a partir de 2 de maio é a libertação’. E isso pode ser, em termos de saúde pública, uma catástrofe. O Presidente da República já avisou e o primeiro ministro também já disse que se for necessário não haverá qualquer pejo em imediatamente meter travões às quatro rodas. Repare – em Lisboa não sei mas ficaria muito surpreendido se fosse diferente – no Porto, esta semana, já se nota um movimento muito maior nas ruas. Ou seja, as pessoas já anteciparam aquilo que, em teoria, só deveria acontecer a partir de dia 2.
Acha, portanto, que o anúncio, as notícias produziram quase um desbloquear na cabeça das pessoas…
E acho que também teve a ver com a Páscoa. Foi um marco. As pessoas estão, evidentemente, mais massacradas a cada semana que passa. Isto não é agradável para ninguém. Não vou dizer, seria injusto para nós portugueses, que estamos a fazer o que se verifica nas praias da Califórnia, mas que as pessoas, mesmo antes da autorização, já começaram a afrouxar, isso sim. E ouve-se nas televisões e nas rádios muitas delas a reconhecer que é pelo cansaço. Isso é o outro risco, as pessoas terem uma visão eufórica de maio e nós darmos um trambolhão.
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