Agora, a estranheza já não nos pede licença. Abandonou os seus modos discretos, e ganhou uma soturna altivez. Não fica ao lado, puxando a manga, pedindo uma moeda ou um minuto da nossa atenção, prometendo que nos fará pasmar. Já não está com os mendigos, mas somos nós que, com um ar um tanto siderado, diante dos seus paraísos (ou infernos) dispersos mastigando-se, buscamos os seus sacramentos. Nesta hora, estamos imensamente sugestionáveis, porque a realidade que dávamos por garantida fez as malas e desapareceu. Tudo o que nos deixou foi um bilhete num tom quase sardónico. Nesta hora, todas as garantias de nada nos servem. E a rotina nunca nos pareceu tão mesquinha, e, no entanto, o quotidiano (…essa máquina de lavar) parece estar avariado. Ou estamos sozinhos ou entregues a uma «organização menor da lepra em família» (Mário-Henrique Leiria). Isolados, entregues a tarefas frágeis, nas «pequenas fábricas do acontecer». Repomos os stocks da «esperança empacotada», cozinhamos, comemos, lavamos os pratos, e a sensação é de que estamos «todos na panela sem tempero hoje» (ainda do mesmo poema – ‘Aviso Urgente’ – de Mário-Henrique Leiria). Enquanto isso, sabemos que há vítimas nesta história, mas, para a maioria, não chegámos ainda a essa parte.
Leia o artigo na íntegra na edição impressa do SOL. Agora também pode receber o jornal em casa ou subscrever a nossa assinatura digital.